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segunda-feira, 27 de maio de 2019

A Comuna Revolucionária II - Karl Korsch


A Comuna Revolucionária II


Karl Korsch




Para compreender a posição tardia de Marx sobre a comuna revolucionária dos operários parisienses em seu autêntico significado, é preciso partir da visão marxista inicial da relação histórica existente entre as formas de organização da moderna luta de classes proletária e as da luta burguesa de classes, anterior àquela no tempo. Marx, ao celebrar estava nova comuna – resultante da luta da classe produtora contra a classe exploradora e capaz de destruir em um ato revolucionário a anterior máquina estatal burguesa – como a forma finalmente encontrada para levar a cabo a emancipação do trabalho, não se propunha, absolutamente – diferentemente do que fizeram alguns de seus seguidores, depois de sua morte e inclusive nos dias atuais – assinalar uma forma determinada de organização política, chame-se comuna revolucionária ou sistema revolucionário de conselhos como única forma válida patenteada da ditadura revolucionária de classe do proletariado. Na frase imediatamente anterior alude expressamente à “diversidade de interpretações que se fizeram da comuna e a diversidade de interesses que nela estavam expressos” e, conseqüentemente, o caráter extraordinariamente flexível da forma política representada por esta nova modalidade de governo. Precisamente esta ilimitada flexibilidade das novas formas de poder político criada pelos comunardos de Paris no ardor da luta e pelas quais esta veio diferenciar-se da “clássica evolução do governo burguês” – do poder estatal centralizado da moderna república parlamentar – constitui para Marx o pressuposto mais importante da possibilidade de utilização em última instância dessa forma, mantendo-se rigorosamente fiel aos verdadeiros interesses da classe operária, como alavanca inclusive para derrubar os fundamentos econômicos sobre os quais repousa a existência das classes, em suma, a dominação estatal e classista. O regime revolucionário comunal acaba convertendo-se assim, em determinadas condições históricas, na forma política de um processo de evolução, isto é, expressando de forma mais clara, de uma ação revolucionária cujo objetivo essencial não consiste já na manutenção de uma determinada forma de dominação estatal, nem na realização, tampouco, de um novo tipo “superior” de estado, mas, muito mais, na definitiva criação dos pressupostos materiais para a dissolução de todo tipo de estado. “Sem esta última condição, o regime comunal não passaria de uma impossibilidade e um erro”, disse Marx, nesse contexto com toda a clareza desejável.
Contudo, entre a caracterização marxista da Comuna de Paris como “forma política” finalmente encontrada para a autoemancipação econômica e social da classe operária e a ênfase que simultaneamente coloca ao sublinhar que se a comuna revolucionária ajustava-se a este fim, era devido, fundamentalmente, à indeterminação e ambigüidade desta forma política, isto é, em sua carência de forma, não deixa de existir uma contradição não resolvida. Só em um ponto parece estar totalmente clara a posição adotada por Marx nesta época, sob a impressão de determinadas teorias políticas com as quais foi tomando contato e incorporando à sua concepção política inicial e como reação prática, e não em pequena medida, à poderosa experiência da Comuna parisiense: se no Manifesto Comunista de 1847-1848 e no Manifesto Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores de 1864 fala da necessidade da conquista do poder político pelo proletariado, após as experiências da Comuna de Paris aprendeu claramente que “a classe operária não pode limitar-se apenas a apoderar-se da máquina estatal em sua organização atual, colocando-a em movimento de acordo com seus próprios fins, mas deve aniquilar revolucionariamente a máquina estatal burguesa existente”. Desde então e, mais especialmente, a partir de Lênin em 1917, ao desenvolver estas manifestações no plano teórico – em seu escrito O Estado e a Revolução – e na prática – com a Revolução de Outubro – convertendo-se assim no novo intérprete desta teoria marxista do estado, ainda não falsificada, tais manifestações foram aceitas como elemento nuclear e medular da teoria política do marxismo, globalmente considerada.
Pois bem, não deixa de resultar evidente que com esta determinação puramente negativa da essência do novo poder estatal revolucionário do proletariado, de acordo com o qual dito poder não pode ser “a máquina estatal já organizada”, do anterior estado burguês, “assumida, apenas, pela classe operária e posta em movimento de acordo com seus próprios fins”, não afirma, em realidade, nada positivo acerca do caráter formal deste novo poder estatal proletário. Temos que perguntar, em virtude de quê a “comuna” representa, em sua forma específica, tal como Marx a definiu em sua A Guerra Civil na França e vinte anos depois Engels voltou a descrevê-la em sua detalhada introdução à terceira edição desta obra como “a forma política enfim encontrada de governo da classe operária”? Como Marx e Engels, os ardentes admiradores do sistema centralista da ditadura burguesa revolucionária edificada pela Convenção da grande Revolução Francesa, chegaram a considerar como “forma política” da ditadura revolucionária do proletariado precisamente a “comuna”, isto é, algo total e evidentemente oposto aquele sistema?
Na realidade, uma análise medianamente rigorosa dos programas políticos e dos objetivos apresentados por ambos fundadores do socialismo científico, tanto na época anterior a sublevação da Comuna de Paris como também depois do mesmo, evidencia a insustentabilidade da tese de que a forma da ditadura proletária elaborada em 1871 pela Comuna de Paris resulta de certo modo conciliável com ditas teorias políticas. Parece muito mais, pelo contrário, que neste ponto concreto a verdade histórica correspondia ao grande adversário de Marx na Primeira Internacional, Mikhail Bakunin, quando acerca da adesão posterior do marxismo à Comuna de Paris se expressa nos seguintes termos não pouco jocosos:
“A impressão que causou esta sublevação comunista foi tão poderosa, que inclusive os marxistas, cujas ideias haviam sido lançadas ao mar, em virtude precisamente de tal sublevação, se viram obrigados a tirar o chapéu para ela. E mais, contra toda lógica e contra seus mais íntimos sentimentos fizeram seus o programa e os objetivos da comuna. Era um disfarce cômico e forçado. Porém, não tinha mais como remediar, pois, caso contrário, teriam sido repudiados e abandonados por todos, tão forte era a paixão que esta revolução havia despertado em todo o mundo” (citado segundo Brupbacher, Marx e Bakunin, p. 114-115).
As ideias revolucionárias dos comunardos parisienses de 1871 derivavam, por um lado, do programa federalista de Bakunin e Proudhon, e, por outro lado, da acumulação de ideias jacobinas sobreviventes sob o nome de blanquismo, porém, só em medida muito escassa do marxismo. Quando Friedrich Engels, vinte anos depois, afirmou que os blanquistas, a maioria da Comuna parisiense, foram obrigados pela força dos fatos a proclamar, no lugar do seu próprio programa de “centralização ditatorial rigorosa de todo o poder em mãos do novo governo revolucionário” justamente o contrário, isto é, a livre federação de todas as comunas francesas com a Comuna de Paris, estava aludindo a uma contradição bastante familiar ao que ocorreu com Marx e Engels e seu incondicional reconhecimento da comuna como “a forma finalmente encontrada” do governo da classe operária. Quando Lênin, em seu escrito O Estado e a Revolução, expõe a evolução da teoria marxista do estado, como se, já em 1852, Marx tivesse dado a sua abstrata formulação – apresentada no Manifesto Comunista de 1847-1848 – da tarefa política do proletariado revolucionário no período de transição, cujo conteúdo concreto seria a destruição e aniquilação do velho poder estatal burguês por parte da classe operária vitoriosa, comete um erro. Contra esta tese leninista pode-se, inclusive, lançar mão do próprio testemunho de Marx e Engels, que declararam repetidas vezes que foi precisamente as experiências da Comuna de Paris de 1871 o que proporcionou a prova incontrovertida de que “a classe operária não podia limitar-se a apenas apoderar-se da máquina estatal em sua organização atual, colocando-a de acordo com os seus próprios fins”. O próprio Lênin revela um salto lógico que neste ponto incorre sua exposição do processo evolutivo da teoria marxista revolucionária do estado em virtude, precisamente, desse salto extremo de todo um período de vinte anos que simplesmente efetua em sua análise do conjunto dos escritos e considerações de Marx e Engels sobre o tema. Análise extraordinariamente exata, tanto no plano histórico quanto no filológico. Do 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852) passa diretamente para A Guerra Civil na França (1871), esquecendo-o – ou passando por alto – entre outras coisas, que, inclusive no Manifesto Inaugural da Primeira Internacional de 1864, Marx havia sintetizado o “programa político” global da classe operária na seguinte frase lapidar: “conquistar o poder político é agora, portanto, a grande tarefa da classe operária”.
Não obstante, nem sequer depois de 1871 – uma vez feita sua, de maneira muito mais clara e unívoca, depois da experiência da Comuna de Paris, a necessidade indispensável da aniquilação da máquina estatal burguesa e da edificação da ditadura de classe do proletariado – decidiu postular como forma política de dita ditadura proletária uma forma de governo do tipo da Comuna revolucionária de Paris. Toma posição, segundo parece, a favor deste ponto de vista unicamente no momento histórico preciso em que em seu Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra civil na França, escrito com sangue e fogo, se depara contra a reação triunfante em nome desta primeira organização do proletariado revolucionário, isto é, a favor dos heróicos lutadores e das vítimas da Comuna. Graças à essência revolucionária da Comuna de Paris, sufocou a crítica que, a partir de suas bases teóricas, deveria ter feito a esta forma histórica específica da mesma. Se apesar de tudo ainda avançou um passo a mais, chegando a celebrar a forma política do regime comunal revolucionário com a “forma finalmente encontrada” de ditadura proletária, isso não é coisa que possa ser explicada em virtude, simplesmente, da óbvia solidariedade de Marx em relação aos operários revolucionários de Paris, mas, sobretudo, graças a um objetivo secundário realmente importante. Com este Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, escrito por ele imediatamente após a gloriosa luta e derrota dos comunardos de Paris, Marx não propunha unicamente aproximar o marxismo da comuna, mas, sobretudo e simultaneamente, aproximar a comuna do marxismo. Se se pretende compreender adequadamente seu sentido e alcance, este escrito singular não deve ser lido tão só como um documento histórico clássico, como um simultâneo canto épico e elegíaco, mas como um escrito polêmico e comprometido de Marx contra seu mais próximo inimigo, um inimigo contra o qual já então tinha se empenhado em uma série de lutas sem quartel que logo levariam a Primeira Internacional ao seu desmoronamento definitivo. Este objetivo tão declaradamente faccioso fez com que Marx não apreciasse em seu escrito com a necessária exatidão histórica esse coerente movimento revolucionário do proletariado francês que começou com as sublevações comunais Lyon e Marselha em 1870 e culminou em 1871 com a sublevação da Comuna de Paris. Este objetivo lhe obrigou também a apresentar o regime comunal revolucionária, saudada como a “forma política finalmente encontrada” da ditadura da classe proletária, ao modo de um governo centralista, violentando assim sua essência
Já em Marx e Engels, e mais ainda em Lênin, encontramos, pois, que o caráter essencialmente federalista da Comuna de Paris é deixado de lado. Embora Marx não pudesse dar-se conta, em sua breve interpretação do Esquema de constituição comunal panfrancesa elaborado pela Comuna de Paris, dos traços inequivocamente federalistas deste regime, não deixa, contudo, de sublinhar premeditadamente o fato (por outra parte de nenhum modo negado, obviamente, por federalistas do tipo de Proudhon e Bakunin) de que por meio deste regime “não só não deveria ser destruída a unidade da nação, mas que deveria ser, ao contrário, reorganizada”. Subscreve as “escassas, porém importantes funções” que até em um regime comunal como esta segue correspondendo-lhe um “governo central”. E acrescenta que de acordo com o plano da comuna, estas funções “não deveriam ser abolidas, como se afirmou falsamente, mas que, pelo contrário, deveriam ser encomendadas a funcionários comunais, isto é, a funcionários rigorosamente responsáveis”. Lênin explica depois, sobre esta base, que nos estudos de Marx sobre a tentativa da comuna “não resulta sequer perceptível nenhum traço de federalismo”. "Marx é centralista, e nos seus escritos que acabamos de citar não se vê contido o menor desvio em relação ao centralismo”. Completamente certo, porém, precisamente por isso – e embora Lênin se esqueça de aludir a isso neste ponto – esta exposição marxista da Comuna de Paris é tudo menos uma caracterização historicamente válida do regime comunal revolucionário à que aspiravam os comunardos parisienses e que chegaram a realizar nos primeiros momentos.
Com o fim de se opor, na medida do possível, ao caráter federalista e anticentralista da Comuna de Paris, tanto Marx e Engels, mas sobretudo Lênin, sublinharam a dimensão negativa da Comuna, isto é, sua ideia da destruição do velho poder estatal burguês. No tocante a esse ponto não há disputa alguma entre os revolucionários. Marx, Engels e Lênin insistiram, com toda razão, na necessidade de revelar o motivo determinante do caráter proletário e revolucionário da forma de poder político representado pela Comuna em sua essência social como realização da ditadura de classe do proletariado. Diante seus oponentes “federalistas” insistiram várias vezes que a forma federal e descentralizada do estado é, em si, tão burguesa como a centralista própria do moderno estado burguês. De toda forma, não deixa de resultar perceptível neles um erro bastante similar ao que combateram sempre em seus inimigos com tanta energia, na medida em que, apesar de sua postura de reserva em relação do caráter “federalista” do regime comunal, não deixaram de conceder excessiva importância a certas diferenças formais existentes entre a Comuna de Paris e a constituição estatal parlamentar e outras formas próprias de governo da burguesia. Por exemplo, a substituição do exército pela milícia, a unificação efetuada entre os poderes legislativo e executivo e a responsabilidade e possibilidade de destituição dos funcionários “comunais”. Com isso eles deram lugar a uma considerável confusão conceitual, que não só reportou graves danos no que se refere à postura dos marxistas em relação à Comuna de Paris, mas também, e sobretudo, precisamente diante da ulterior posição da linha marxista revolucionária em relação ao novo fenômeno histórico do estado revolucionário dos conselhos.
Se é inexato pensar como Proudhon e Bakunin que a forma “federalista” é uma superação do estado burguês, não o é menos acreditar, como fazem hoje alguns marxistas partidários da comuna revolucionária – isto é, do sistema revolucionário dos conselhos, influenciados pelas exposições confusionistas de Marx, Engels e Lênin – que um deputado com mandato breve, revogável a qualquer momento e com funções perfeitamente delimitadas, ou um funcionário estatal vinculado mediante contrato privado e com um “salário” ordinário, constituem uma instituição menos burguesa que a de um parlamentar eleito.
É totalmente errôneo, por um lado, acreditar que existe algum tipo de regime “comunal” ou “conselhista” em virtude da qual sua execução por um estado comandado pelo partido proletário revolucionário possa resultar factível a eliminação do caráter, consubstancial a todo estado, de instrumento de opressão classista. Toda a teoria de Marx e Engels acerca da morte do estado na sociedade comunista, herdada da tradição do socialismo utópico e aperfeiçoada sobre a base da experiência prática das lutas proletárias de classe de sua época, perde seu sentido revolucionário, se, com Lênin, acredita-se que há um estado no qual a minoria deixa de oprimir a maioria, de tal modo que, antes de tudo, é a maioria do próprio povo” que “oprime os seus próprios opressores” e que semelhante estado de ditadura do proletariado pode converter-se, por sua própria natureza, no realizador da verdadeira democracia, isto é, da democracia proletária, devido ao que já pode ser considerado como “um estado em processo de desaparição”.
Urge chamar novamente a atenção, com toda clareza, acerca dos dois ensinamentos básicos da autêntica teoria proletária e revolucionária, que devido sua adequação temporal às exigências práticas de fases da luta com as da sublevação da Comuna de Paris de 1871 e da revolução russa de outubro de 1917 acabaram por cair no perigo de perder toda sua vigência. A autêntica meta final da luta proletária de classes não é um determinado estado, por “democrático”, “comunal” ou “conselhista” que seja, mas a sociedade comunista sem classe e sem estado, cuja forma de conjunto não é representada por tal ou qual poder político, mas por essa “associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é condição necessária para o livre desenvolvimento de todos” (Manifesto Comunista).
Até esse momento, esse estado só se diferenciará do estado burguês, no período de transformação revolucionária da sociedade capitalista em comunista, em virtude de sua essência de classe e de sua função social, porém, não de sua forma política. Isso tanto no caso da classe proletária “conquistar”, com maiores ou menores variações, o aparato estatal anterior, de acordo com a ilusão dos reformistas, quanto no caso de, segundo a teoria marxista revolucionária, só poder apropriar-se dele verdadeiramente com base em seu “aniquilamento” sem resíduos da forma anterior, “substituindo-a” por uma nova forma, constituída revolucionariamente. Neste conteúdo social da forma política, e não em tal ou qual peculiaridade artificialmente elaborada ou implantada em momentos ou circunstâncias bastante especiais, enraíza o “verdadeiro segredo” da comuna revolucionária, do sistema revolucionário dos conselhos e de qualquer outra forma histórica de realização do governo da classe operária”.  
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.

A Comuna Revolucionária I - Karl Korsch



A Comuna Revolucionária I


Karl Korsch


 O que deve saber sobre a “Comuna Revolucionária” todo operário com consciência de classe neste momento histórico em que vivemos e no qual a autolibertação revolucionária do jugo capitalista por parte da classe operária se coloca na ordem do dia? E o que sabe dela hoje inclusive a parte politicamente mais preparada e, conseqüentemente, relativamente autoconsciente do proletariado?
Existem a este respeito alguns fatos históricos e algumas palavras de Marx, Engels e Lênin relacionadas com eles que, na conjuntura atual, depois de meio século de propaganda social-democrata – durante todo o período do pré-guerra – e da série de acontecimentos verdadeiramente transcendentais dos últimos quinze anos, passaram a tomar parte decidida da consciência proletária, por muito que nas escolas da atual república “democrática” se fale, apesar de tudo, tão escassamente dessas questões como nas escolas da velha monarquia imperial. Trata-se da história e do significado profundo da gloriosa Comuna de Paris, que desfraldou a bandeira vermelha da revolução proletária em 18 de março de 1871 e a manteve desfraldada durante setenta e dois dias de lutas encarniçadas contra um mundo exterior armado até os dentes e empenhado em um ataque de morte contra ela. Trata-se, enfim, da comuna revolucionária do proletariado parisiense de 1871, da qual Marx disse no Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores de 30 de maio de 1871 sobre a guerra civil na França, que “seu verdadeiro segredo” foi ter sido, fundamentalmente, um governo da classe operária, “o resultado da luta da classe produtora contra a classe que se apropria do trabalho alheio, a forma política finalmente encontrada que permitia realizar a emancipação econômica do trabalho”. Friedrich Engels, de maneira similar, vinte anos depois, jogava na cara dos filisteus aterrorizados, no momento em que a fundação da Segunda Internacional e a instituição da comemoração proletária do primeiro de maio[1] como forma de ação direta de massas a nível internacional voltava a encher de temor as classes proprietárias, as seguintes frases cheias de orgulho: “Querem saber a forma dessa ditadura? Olhem a Comuna de Paris, eis a ditadura do proletariado”. E mais de duas décadas depois, o maior político revolucionário de nossa época, Lênin, retornou a este tema, levando a cabo, na parte central da mais importante de suas obras políticas, O Estado e a Revolução, uma detalhada análise das experiências da Comuna de Paris e da luta contra a deformação oportunista e a mistificação dos importantes ensinamentos que já Marx e Engels souberam extrair daquele período histórico. E quando, poucas semanas depois da revolução russa de 1917, que começou em fevereiro como revolução nacional e burguesa e acabou por converter-se, superando suas limitações de cunho nacional e burguês e ampliando e aprofundando suas perspectivas, em primeira revolução proletária do mundo, tanto Lênin e Trotski como as massas operárias da Europa ocidental e os setores mais progressistas da classe operária de todo mundo saudaram a nova forma de governo criada por essa ação revolucionária de massas, isto é, o sistema revolucionário dos conselhos, como o prolongamento direto da comuna revolucionária gestada meio século pelos operários de Paris.
Até aqui está tudo bem. Por mais confusa que tenha sido a ideia que os operários revolucionários, no período de ascensão e impulso revolucionários que seguiu em toda Europa as comoções políticas e econômicas desencadeadas pelos quatro anos de guerra mundial, sustentaram ao pronunciar a fórmula “todo o poder aos conselhos” e por muito profundo que tenha sido o abismo que já começava a abrir-se entre dita imagem e a realidade que ia forjando-se na nova Rússia sob o rótulo de “República socialista dos conselhos”, não cabe dúvida de que naqueles anos a luta pelos conselhos representava uma forma de evolução política da vontade política de uma classe proletária e revolucionária em plena urgência de realização. Na verdade, unicamente os filisteus amargurados podiam protestar então contra a indefinição que inevitavelmente cercava essa ideia, tal como toda ideia não realizada, e só os pedantes triviais podiam investir na tentativa de remediar esta deficiência através de “sistemas” artificialmente elaborados no terreno da imaginação, como o desacreditado “sistema de caixinhas” de Däumig e Richard Müller. Em todos aqueles lugares nos quais, da mesma forma tão efêmera na Hungria e Baviera em 1919, o proletariado constituiu sua ditadura revolucionária de classe, a concebeu, denominou e constituiu como “governo da classe operária”, governo que era o resultado da luta da classe produtora contra a classe que explora o trabalho alheio, e cujo objetivo último se consolidava na plena realização da “libertação econômica do trabalho”, um governo definido, enfim, como “governo revolucionário de conselhos”. E se o proletariado tivesse triunfado naquela época em algum dos grandes países industriais – na Alemanha, por exemplo, quando a grande greve da primavera de 1919 ou em resposta ao putsch de Kapp em 1920, ou ainda, na seqüência, da greve de 1923 contra a ocupação do Ruhr e a inflação; ou na Itália durante a época das ocupações de fábricas, em Outubro de 1923 – teria constituído seu poder sob a forma duma república dos conselhos e se unido à “república federativa socialista soviética da Rússia”, já existente, no quadro duma confederação mundial das repúblicas revolucionárias dos conselhos.
Nas atuais circunstâncias, contudo, a ideia dos conselhos e a existência de um governo dos conselhos pretensamente "socialista" e "revolucionário" têm um significado completamente distinto. Hoje – em que a superação da crise econômica mundial de 1921 e as conseqüentes derrotas dos operários alemães, poloneses e italianos, ao que se seguiu uma série de novas derrotas proletárias até a greve dos mineiros e greve geral inglesa de 1926 e o capitalismo europeu inaugurou um novo ciclo de sua ditadura sobre uma classe operária derrotada – quando, portanto, nos encontramos diante de novas condições objetivas, os lutadores da classe proletária e revolucionária de todo o mundo não podem seguir agarrando-se de maneira acrítica e estática à nossa velha fé na importância revolucionária da ideia dos conselhos e no caráter revolucionário do governo dos conselhos como manifestação recente e evoluída da forma política da ditadura proletária “encontrada” há meio século pelos comunardos franceses.
Hoje, frente às contradições flagrantes que existem entre o nome e a realidade efetiva da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, não podemos dar-nos por satisfeitos com a constatação, por exemplo, de que os atuais mandatários russos “traíram” o primitivo princípio revolucionário dos conselhos, de forma similar como Scheidemann, Müller e Leipart “traíram” seus princípios socialistas “revolucionários” do pré-guerra. Limitar-se a isso seria ao mesmo tempo superficial e errôneo. É obvio que se trata de uma dupla verdade inquestionável. Os Scheidemann, Müller e Leipart traíram, sem dúvida, seus princípios socialistas. E, por outro lado, a “ditadura” que hoje é exercida pela cúpula máxima do aparato de um partido governamental extremamente exclusivista – e que apenas o nome recorda o primitivo partido “comunista” e “bolchevique” – sobre o proletariado e toda a Rússia soviética com a ajuda de uma burocracia extremamente desenvolvida, tem em comum com as ideias revolucionárias dos conselhos de 1917 e 1918 exatamente a mesma coisa que tem com elas a ditadura do partido fascista do velho social-democrata revolucionário Mussolini na Itália. Porém, em ambos os casos é tão pouco o que se explica falando de “traição”, que é muito mais o fato da própria traição que necessita ser explicado.
A verdadeira tarefa que esta evolução contraditória – que levou do velho lema revolucionário de “todo o poder aos conselhos” ao atual regime capitalista e fascista do pretenso “estado socialista soviético” – coloca para todos nós, socialistas revolucionários com consciência de classe, de uma forma realmente urgente, não é, na verdade, senão uma tarefa de autocrítica revolucionária. Temos que reconhecer que não só para as ideias e instituições do passado feudal e burguês, mas também para as diversas formas de pensamento e organização engendradas pela própria classe operária nos anteriores e sucessivos períodos de sua luta pela autolibertação histórica, tem validade essa dialética revolucionária em virtude da qual “o bem de ontem se converte no mal de hoje”, para utilizar palavras de Goethe, ou, como Karl Marx veio a dizer de forma mais clara e incisiva, todo estágio histórico de uma forma evolutiva das forças produtivas revolucionárias e da ação revolucionária, assim como a evolução da consciência, pode converter-se, em um determinado ponto do seu processo evolutivo, em um obstáculo para o mesmo. A esta contradição dialética da evolução revolucionária estão submetidas, tal como as demais ideias e produções históricas, também essas formações na ordem do pensamento e na da organização próprias de uma determinada fase histórica da luta revolucionária de classe, como a forma política “finalmente encontrada” à quase sessenta anos pelos comunardos franceses e estruturada como forma de governo próprio da classe operária ao modo da comuna revolucionária e seu herdeiro, o “poder revolucionário dos conselhos”, oriundo de um novo período histórico de luta através dos impulsos do movimento revolucionários dos operários e camponeses russos.
Ao invés de lamentarmos a “traição” à ideia dos conselhos e a degeneração dos conselhos, devemos realizar uma síntese, de maneira sóbria, serena e historicamente objetiva, da evolução da totalidade desse processo, elaborando uma visão histórica de conjunto que dê conta de suas fases sucessivas, fazendo-nos, por último, a pergunta crítica: qual é, de acordo com essa experiência histórica, o significado real da ordem histórica e classista desta nova forma de governo, cristalizada inicialmente na comuna revolucionária de 1871, aniquilada pela força ao fim de setenta e dois dias de vida, e que encontrou sua expressão mais concreta e recente na revolução russa de 1917.
Procurar uma nova imagem, muito mais profunda e orientadora, do caráter histórico e classista da comuna revolucionária e sua continuação no sistema revolucionário dos conselhos, resulta duplamente necessário se se pensa que inclusive a crítica histórica mais superficial mostra o totalmente infundado dessa concepção tão divulgada hoje entre os revolucionários. Dita concepção, apesar de depreciar teoricamente o parlamento como instituição burguesa por sua origem e sua função e praticamente indica a necessidade de “aniquilá-lo”, no chamado “sistema de conselhos” e em sua forma precedente, a “comuna revolucionária”, vislumbra, ao mesmo tempo, uma forma de governo total e essencialmente proletária, oposta, por sua própria natureza, de maneira inconciliável e contraditória ao estado burguês. Na realidade, a “comuna” representa, ao longo de sua evolução quase milenar, não só uma forma de governo burguês mais antiga que o parlamento, mas que constitui – desde seus começos no século XI até seu ponto culminante no momento auge do movimento revolucionário da burguesia, isto é, na grande revolução francesa de 1789-1793 – a forma mais pura, precisamente, na ordem da luta de classes que, sob distintas modalidades, levou a cabo durante todo este período histórico a então revolucionária classe burguesa para conseguir a transformação da ordem social feudal existente até o momento e edificar a nova ordem social de cunho burguês.
Quando, na frase que citamos anteriormente – tomada de A Guerra Civil na França –, Marx celebrava a comuna revolucionária dos operários parisienses do ano de 1871 como “a forma finalmente encontrada que permitia realizar a emancipação econômica do trabalho” era, ao mesmo tempo, consciente de que a forma herdada das seculares lutas burguesas de libertação da “comuna” só podia assumir este caráter novo ao preço de uma transformação radical de sua essência anterior. Toma posição expressamente contra as falsas concepções de todos que queriam ver, em seu tempo, nesta “nova comuna, aniquiladora do poder de estado” uma “versão renovada das comunas medievais anteriores a dito poder estatal e que assentaram, na realidade, as bases do mesmo”. E estava muito longe, portanto, de esperar qualquer tipo de efeitos milagrosos para a luta de classes do proletariado da forma política do regime comunal enquanto tal, considerada independentemente do conteúdo classista específico com o qual, em sua opinião, haviam preenchido os operários de Paris esta forma política por eles conquistada e posta ao serviço de sua autolibertação econômica em um determinado momento histórico. De acordo com sua análise desse problema, os operários de Paris fizeram de sua forma herdada da “comuna” um instrumento de seus fins revolucionários – opostos radicalmente à finalidade histórica original da mesma – em virtude, precisamente, de seu caráter pouco evoluído e relativamente indeterminado. Enquanto que no estado burguês plenamente desenvolvido, tal e como foi formando-se – na França, por exemplo – em sua versão clássica, isto é, como estado representativo moderno centralizado, o poder estatal não é mais do que, de acordo com a conhecida expressão do Manifesto Comunista, outra coisa que “um comitê de administração do conjunto de negócios da burguesia”, nas formas provisórias e pouco desenvolvidas da estrutura estatal burguesa, entre as quais é preciso situar a comuna “livre” medieval, este caráter classista especificamente burguês, consubstancial a todo estado, exige uma fisionomia completamente diferente. Frente ao posterior e cada vez mais evidente e cada vez mais elaborado caráter do poder estatal burguês de “instrumento público repressivo para a opressão da classe operária”, de “máquina para o domínio classista” (Marx), nesta fase primitiva de sua evolução pesa, todavia, mais a finalidade original da organização burguesa de classe como órgão da luta revolucionária de libertação da classe burguesa oprimida contra o domínio feudal medieval. Por muito pouco que esta luta da burguesia medieval tinha em comum com a luta proletária de emancipação da época histórica contemporânea, era, não obstante, uma luta de classes histórica, e nesta medida – ainda que, desde já, somente nela – os instrumentos criados pela burguesia de acordo com as necessidades de sua luta revolucionária não deixam de oferecer também um ponto de partida puramente formal para a luta de emancipação revolucionária que atualmente, sobre bases totalmente distintas, em condições extremamente diferentes e com vista a outros objetivos, protagoniza a classe proletária.
Marx chamou prontamente a atenção sobre a especial importância que essa série de experiências e conquistas provisórias da luta de classes realizada pela burguesia, cuja expressão mais importante pode ver-se nas diversas fases evolutivas da comuna revolucionária burguesa da Idade Média, foi-lhe correspondendo na formação tanto da moderna consciência proletária de classe como da luta de classe do proletariado, e o fez muito antes, inclusive, do que o grande acontecimento histórico da sublevação dos comunardos parisienses de 1871 lhe induzira a saudar esta nova comuna revolucionária dos operários de Paris como a forma política finalmente encontrada da emancipação econômica do trabalho. Devemos a Marx, a este respeito, a demonstração da analogia histórica existente entre a evolução política da burguesia como classe oprimida e em luta por sua libertação no seio do estado feudal medieval e a evolução do proletariado na moderna sociedade capitalista. Uma analogia da que se serviu, por certo, como importante ponto de partida em sua teoria dialética e revolucionária sobre a importância dos sindicatos e das lutas sindicais – uma teoria ainda não compreendida plena e adequadamente, nem sequer em nossos dias, por um bom número de marxistas tanto de inspiração esquerdista como direitista. Marx, nessa teoria, comparou as modernas coalizões de operários com as comunas da burguesia medieval, sublinhando o fato histórico de que também a classe burguesa começou sua luta contra a ordem social feudal com a formação de coalizões. Já em seu escrito polêmico contra Proudhon encontramos a seguinte referência, hoje verdadeiramente clássica, sobre esta questão:
“Fizeram-se não poucos estudos para apresentar as diferentes fases históricas percorridas pela burguesia desde a comunidade urbana (comuna) até sua constituição com classe. Porém, quando se trata de tomar boa nota das greves, coalizões e outras formas das que os proletários se servem para culminar ante nós sua organização como classe, alguns são presa de verdadeiro espanto e outros fazem gala de um desdém transcendental” (A Miséria da Filosofia, cap. 2, parágrafo 5).
O que aqui expressa o jovem Marx em meados dos anos quarenta, quando ainda é recente sua evolução ao socialismo proletário, e repete sem maiores variações anos depois em sua exposição dos diversos estágios evolutivos da burguesia e do proletariado no Manifesto Comunista, volta novamente a expressá-lo vinte anos depois na conhecida Resolução do Congresso de Genebra da Associação Internacional dos Trabalhadores concernente aos sindicatos. Ali se afirma destes que já em sua anterior evolução, e sem ser conscientes disso, mas além de suas tarefas cotidianas imediatas de defesa dos salários e da jornada de trabalho dos operários contra as incessantes investidas do capital, “haviam chegado a converter-se em pontos verdadeiramente culminantes da organização da classe operária, de maneira similar a como as municipalidades e comunidades medievais haviam sido para a burguesia”, de tal modo que no futuro haveriam de trabalhar já de maneira consciente como bases da organização do conjunto da classe operária.



[1] A chamada Segunda Internacional, acatando proposta de Raymond Lavigne, em 20 de junho de 1889, convoca uma manifestação anual com o objetivo de lutar pela redução da jornada de trabalho a oito horas diárias. O dia escolhido foi o 1º de Maio, em homenagem às lutas dos trabalhadores de Chicago/EUA, quando pelo mesmo motivo e no mesmo dia, os trabalhadores norte-americanos fizeram manifestações de ruas que se desdobraram em conflitos e mortes no dia seguinte.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.

terça-feira, 7 de maio de 2019

IDEOLOGIA DO GÊNERO E HOMOFOBIA SEGUNDO CAMILLE PAGLIA


IDEOLOGIA DO GÊNERO E HOMOFOBIA SEGUNDO CAMILLE PAGLIA

Homofobia de hoje é resultado direto dos erros da esquerda, diz Camille Paglia
Escritora americana apoia posição de Bolsonaro contra ideologia de gênero e afirma que assunto serve para fortalecer a direita



Em sua cruzada contra o avanço da ideologia de gênero na educação,  o presidente Jair Bolsonaro tem uma aliada de peso: a escritora feminista americana Camille Paglia.

Em entrevista à Folha, Paglia comemora a insurreição contra o ensino da teoria segundo a qual o gênero e orientação sexual são construções sociais, e não determinações biológicas. “Eu estava vendo as estúpidas teorias de gênero lentamente se infiltrando nas universidades brasileiras”, disse.

A acadêmica só lamenta que essa resistência venha apenas dos evangélicos. “Por que as classes instruídas brasileiras permitiram que essa questão fosse abraçada pela direita, e deixaram que a extrema direita explorasse a questão de gênero? Por que as vozes progressistas na esquerda não estão dizendo claramente que não deveria existir no Brasil essa teoria de gênero?”

Para ela, a esquerda exagerou em sua tentativa de impor agendas como combate ao aquecimento global, igualdade entre gêneros e proteção para minorias. “A homofobia que vemos hoje é resultado direto dos erros cometidos pelos progressistas, essa tentativa de empurrar uma agenda goela abaixo."

Polemista contumaz, Paglia acaba de se ver envolvida em mais uma controvérsia. Um grupo de alunos da instituição onde leciona, a Universidade das Artes, na Filadélfia, protestou contra comentários que a acadêmica fez em uma entrevista e pediu que ela fosse destituída de seu posto. Paglia criticara universitárias que denunciam supostos estupros meses depois do ocorrido, e também questionara o alto número de jovens identificados como transgênero.

Os estudantes que pedem a sua destituição afirmam que a senhora “ridicularizou descaradamente as vítimas de agressões sexuais e  humilhou pessoas transgênero”...

Isso é absurdo, eles pinçaram da internet só uns trechos do que eu falei e tiraram do contexto. Uma das reclamações se refere à minha oposição ao feminismo de vitimização, que é algo incapacitante para as mulheres, que não as prepara para sobreviverem sozinhas.

É uma estupidez ver as jovens adquirirem o hábito de pensar que figuras de autoridade vão sempre estar presentes para protegê-las. Isso não é feminismo, é uma continuação da era vitoriana, em que as mulheres eram caracterizadas como criaturas vulneráveis, que precisavam de proteção paternalista.

As mulheres jovens precisam desenvolver a habilidade de se pronunciar, se um homem fizer alguma coisa que as deixe desconfortáveis, puser as mãos nelas, a própria mulher precisa falar. Minha família é formada por imigrantes. Meus familiares na Itália não tinham nenhum poder, mas as mulheres nunca toleraram que um homem dissesse coisas de natureza sexual para elas, o que dizer de encostar nelas.

Obviamente, também acho que devem existir normas sobre assédio sexual, mas não acho que mulheres podem aparecer anos ou décadas depois e fazer acusações contra homens sem nenhuma prova concreta. Elas precisam agir de forma justa. Está errado fazer acusações sem provas. 

Criaram esse novo dogma: precisamos acreditar em todas as mulheres. Desculpe, não acredito que uma mulher seja inerentemente mais honesta que um homem. E isso é um retrocesso para o feminismo, porque é uma injustiça. O movimento #MeToo é louvável, mas, infelizmente, também pode se transformar em uma caça às bruxas.


Em 1991, a senhora disse que “uma garota que vai com um cara para o quarto dele, em uma festa de fraternidade, é uma idiota. Para as feministas, isso é culpar a vítima. Para mim, isso é bom senso”. Hoje mantém a  mesma opinião?

Mantenho a minha filosofia de feminismo das amazonas: as mulheres precisam aprender a ler os sinais, verbais e não verbais. Se você está numa festa de uma irmandade, está todo mundo bêbado, e um cara te convida para entrar no quarto dele, ele está racionalmente partindo do pressuposto que você está concordando em manter relações sexuais com ele. 

Sexo também é movido por impulsos biológicos. A biologia foi totalmente eliminada dos estudos de gênero. Para poder falar sobre sexo é preciso ter estudado história, antropologia e psicologia, mas também biologia. Isso está faltando totalmente. E no discurso sobre estupro, homens jovens com 18, 20 anos, estão em sua fase mais perigosa. São meninos que estiverem sob controle das mães e da família por muitos anos, estão em seu pico hormonal e procurando sua identidade.

Em todos os meus anos enquanto lésbica tentando namorar, eu era um desastre, e uma das razões era minha frustração completa com as mulheres. Eu consigo ver as mulheres da mesma maneira que os homens veem as mulheres, provavelmente por eu também me identificar como transgênero. Tinha muitas frustrações ao lidar com  elas.  

Em meu trabalho, tento alertar essas meninas. Saiam dessa névoa burguesa em que vocês vivem, o mundo é perigoso, vocês precisam ser responsáveis. O meu feminismo é para mulheres que ascendem no mundo profissional e político. Outras pessoas querem manter as mulheres acorrentadas, é isso o que faz o feminismo de vitimização.

Não é a primeira vez que a senhora diz se identificar como transgênero. A senhora já pensou em passar por alguma intervenção?

Minha sorte é que não existia essa conversa sobre cirurgia e hormônios quando eu tinha 20 anos, porque eu teria sido muito suscetível. Todos têm o direito de definir sua própria identidade e modificar seu corpo. Eu apoio a ideia de você se identificar como quiser nos documentos, e acho que o governo não tem o direito de se intrometer no que você faz com o seu corpo. Não sou contra a escolha de fazer cirurgia ou de receber hormônios. No entanto, estou tentando influenciar mulheres jovens, em especial, a não serem precipitadas, e pensarem como podem se sentir mais tarde.

A senhora acha que as pessoas estão mergulhando nessas intervenções médicas de forma pouco refletida?

Exatamente, eu me oponho completamente ao uso de bloqueadores de puberdade em adolescentes, é uma violação de direitos humanos. No futuro, as pessoas vão olhar para o período atual e ficar horrorizadas, porque os pais estão permitindo que usem bloqueadores. Um menino desconfortável em relação a seu pênis vai usar bloqueadores e depois terá que viver o resto da vida com um pênis pequeno. 

A esquerda costumava abraçar a bandeira da defesa da liberdade de expressão. Agora, a direita é que se apresenta como a defensora dessa liberdade. Mas, nessa cruzada contra o politicamente correto, às vezes também se abrem as portas para declarações e ações homofóbicas. Há um risco de irmos de um extremo de patrulha de discurso, de exagero do politicamente correto, para o outro extremo, de que tudo é permitido, inclusive disseminar preconceitos?

A homofobia que vemos hoje é resultado direto dos erros cometidos pelos progressistas, essa tentativa de empurrar uma agenda goela abaixo. Excessos da esquerda é que empurram os eleitores para a direita. Essa discussão de gênero é politicamente contraproducente. Está empoderando vozes na direita, podemos ver isso no Brasil... uma reação contra a propaganda dos estudos de gênero que nega que existem diferenças fundamentais entre os sexos.

As pessoas comuns acham que negar as diferenças entre os sexos é um disparate absoluto, não querem que imponham isso a eles. E isso leva a consequências políticas, força os eleitores para a direita. Empodera políticos da direita a falarem pelas classes populares contra a maluquice da suposta classe instruída. 

Como isso se transforma em homofobia?

Homofobia é uma condição específica, em que um indivíduo, normalmente um homem, é obcecado pelo ódio a homossexuais, como uma maneira de expurgar seus próprios impulsos de  comportamento homossexual. Agora, não adianta nada aprovar leis contra alguém que se sinta desconfortável com comportamento homossexual, só faz com que as pessoas escondam suas críticas. 

Eu sou contra a ideia de legislação contra crimes de ódio, ofende a minha filosofia libertária. O governo não deve interferir em nossas vidas privadas, nem se intrometer nos pensamentos que passam pela nossa cabeça. Separar as pessoas em grupos especiais e torná-las uma classe protegida, na realidade, cria mais animosidade contra gays. Hoje em dia, é só no mundo islâmico que a homossexualidade é perseguida de verdade, lá há homens gays que são mortos por sua homossexualidade.

O presidente Bolsonaro já afirmou: “prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”. Isso não é homofóbico?

Sim, este caso claramente mostra hostilidade à homossexualidade. Se eu ouvisse essa frase de qualquer pessoa, não apenas do líder do Brasil, diria: essa pessoa demonstra uma ansiedade em relação à homossexualidade por causa de uma possível atração. É uma pessoa que vê a sexualidade como um campo de batalha em que se precisam suprimir certos impulsos. No Brasil e em outros lugares, os evangélicos condenam a homossexualidade dizendo que ela não é natural, baseando-se no mandamento bíblico “seja fecundo e se multiplique”. Como se deve lidar com esse tipo de mentalidade? Impondo leis? Ou tentando entender quais são as raízes psicológicas e culturais desse sentimento? A ideia de que a homossexualidade é universalmente aceita é absurda. 

Em muitas regiões, inclusive em áreas mais conservadoras da África, até hoje, a homossexualidade é uma grande questão. O governo não pode imaginar que vai conseguir controlar o pensamento das pessoas. As mudanças sociais levam tempo. 

No entanto, quando o governo tenta apressar as coisas e ser punitivo, produz uma reação na direção oposta. Você tem figuras da direita sendo eleitas como um sintoma de que os progressistas passaram dos limites e cometeram erros táticos sérios. Os progressistas precisam assumir a responsabilidade por essa guinada para a direita. Eu sou registrada como democrata, votei em Bernie Sanders, então eu falo vindo da esquerda. É um absurdo a esquerda não fazer uma autocrítica e admitir que perdeu o apoio das pessoas. Em vez de reconhecer seu fracasso, os progressistas se isolam no mundo midiático. Todo mundo na mídia tem agora uma visão única sobre todas essas questões.

Progressistas olham ao redor e dizem: nossa, estamos cercados por políticos de extrema direita, como isso aconteceu? E aí eles resolvem dobrar a aposta e  ser ainda mais enfáticos em suas crenças. Progressistas precisam fazer uma autocrítica e se dar conta da arrogância e estupidez de seu mundo tão isolado da vida real dos eleitores verdadeiros, que estão profundamente ressentidos de serem vistos de forma condescendente. 

Há tempos a senhora critica a suposta dominação da esquerda nas universidades. Bolsonaro, além de fazer essa crítica, afirma que um dos principais problemas é que os professores ensinam ideologia de gênero.

Eu tenho visto a estúpida ideologia de gênero lentamente se infiltrando nas universidades brasileiras por meio dos departamentos de estudos de gênero. Tenho acompanhado isso. Pensei: isso vai ser um desastre, vai apagar a essência dos brasileiros.

A visão brasileira é autêntica, real, profunda, e essa ideologia de gênero é uma contaminação estrangeira. Eu torcia para que os brasileiros fizessem um movimento de resistência à ideologia de gênero. E aconteceu, mas, infelizmente, a resistência veio dos evangélicos em vez de vir de figuras mais progressistas da esquerda. Por que as classes instruídas brasileiras permitiram que essa questão fosse abraçada pela direita, e permitiram que a extrema direita explorasse a questão de gênero? Por que as vozes progressistas na esquerda não estão dizendo claramente que não deveria existir no Brasil essa teoria de gênero?
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6.mai.2019 às 2h00
Folha de São Paulo
Patrícia Campos Mello
São Paulo