A Comuna Revolucionária II
Karl Korsch
Para compreender
a posição tardia de Marx sobre a comuna
revolucionária dos operários parisienses em seu autêntico significado, é
preciso partir da visão marxista inicial da relação histórica existente entre
as formas de organização da moderna luta de classes proletária e as da luta
burguesa de classes, anterior àquela no tempo. Marx, ao celebrar estava nova
comuna – resultante da luta da classe produtora contra a classe exploradora e
capaz de destruir em um ato revolucionário a anterior máquina estatal burguesa
– como a forma finalmente encontrada para levar a cabo a emancipação do
trabalho, não se propunha, absolutamente – diferentemente do que fizeram alguns
de seus seguidores, depois de sua morte e inclusive nos dias atuais – assinalar
uma forma determinada de organização
política, chame-se comuna
revolucionária ou sistema
revolucionário de conselhos como única forma válida patenteada da ditadura
revolucionária de classe do proletariado. Na frase imediatamente anterior alude
expressamente à “diversidade de interpretações que se fizeram da comuna e a
diversidade de interesses que nela estavam expressos” e, conseqüentemente, o
caráter extraordinariamente flexível
da forma política representada por esta nova modalidade de governo.
Precisamente esta ilimitada flexibilidade das novas formas de poder político
criada pelos comunardos de Paris no
ardor da luta e pelas quais esta veio diferenciar-se da “clássica evolução do
governo burguês” – do poder estatal centralizado da moderna república
parlamentar – constitui para Marx o pressuposto mais importante da
possibilidade de utilização em última instância dessa forma, mantendo-se
rigorosamente fiel aos verdadeiros interesses da classe operária, como alavanca
inclusive para derrubar os fundamentos econômicos sobre os quais repousa a
existência das classes, em suma, a dominação estatal e classista. O regime revolucionário comunal acaba
convertendo-se assim, em determinadas condições históricas, na forma política
de um processo de evolução, isto é,
expressando de forma mais clara, de uma ação
revolucionária cujo objetivo essencial não consiste já na manutenção de uma determinada forma de
dominação estatal, nem na realização,
tampouco, de um novo tipo “superior” de
estado, mas, muito mais, na definitiva criação dos pressupostos materiais
para a dissolução de todo tipo de estado. “Sem
esta última condição, o regime comunal não passaria de uma impossibilidade e um
erro”, disse Marx, nesse contexto com toda a clareza desejável.
Contudo, entre a
caracterização marxista da Comuna de Paris como “forma política” finalmente
encontrada para a autoemancipação econômica e social da classe operária e a
ênfase que simultaneamente coloca ao sublinhar que se a comuna revolucionária
ajustava-se a este fim, era devido, fundamentalmente, à indeterminação e ambigüidade
desta forma política, isto é, em sua carência de forma, não deixa de existir
uma contradição não resolvida. Só em um ponto parece estar totalmente clara a
posição adotada por Marx nesta época, sob a impressão de determinadas teorias
políticas com as quais foi tomando contato e incorporando à sua concepção
política inicial e como reação prática, e não em pequena medida, à poderosa
experiência da Comuna parisiense: se no Manifesto
Comunista de 1847-1848 e no Manifesto
Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores de 1864 fala da
necessidade da conquista do poder político pelo proletariado, após as
experiências da Comuna de Paris aprendeu claramente que “a classe operária não
pode limitar-se apenas a apoderar-se da máquina estatal em sua organização
atual, colocando-a em movimento de acordo com seus próprios fins, mas deve aniquilar revolucionariamente a
máquina estatal burguesa existente”. Desde então e, mais especialmente, a
partir de Lênin em 1917, ao desenvolver estas manifestações no plano teórico –
em seu escrito O Estado e a Revolução
– e na prática – com a Revolução de Outubro – convertendo-se assim no novo
intérprete desta teoria marxista do estado, ainda não falsificada, tais
manifestações foram aceitas como elemento nuclear e medular da teoria política
do marxismo, globalmente considerada.
Pois
bem, não deixa de resultar evidente que com esta determinação puramente negativa
da essência do novo poder estatal revolucionário do proletariado, de acordo com
o qual dito poder não pode ser “a máquina estatal já organizada”, do
anterior estado burguês, “assumida, apenas, pela classe operária e posta em
movimento de acordo com seus próprios fins”, não afirma, em realidade, nada positivo
acerca do caráter formal deste novo poder estatal proletário. Temos que
perguntar, em virtude de quê a “comuna” representa, em sua forma específica,
tal como Marx a definiu em sua A Guerra Civil na França e vinte anos
depois Engels voltou a descrevê-la em sua detalhada introdução à terceira
edição desta obra como “a forma política enfim encontrada de governo da classe
operária”? Como Marx e Engels, os ardentes admiradores do sistema centralista
da ditadura burguesa revolucionária edificada pela Convenção da grande
Revolução Francesa, chegaram a considerar como “forma política” da ditadura
revolucionária do proletariado precisamente a “comuna”, isto é, algo total e
evidentemente oposto aquele sistema?
Na
realidade, uma análise medianamente rigorosa dos programas políticos e dos
objetivos apresentados por ambos fundadores do socialismo científico, tanto na
época anterior a sublevação da Comuna de Paris como também depois do
mesmo, evidencia a insustentabilidade da tese de que a forma da ditadura
proletária elaborada em 1871 pela Comuna de Paris resulta de certo modo
conciliável com ditas teorias políticas. Parece muito mais, pelo contrário, que
neste ponto concreto a verdade histórica correspondia ao grande adversário de
Marx na Primeira Internacional, Mikhail Bakunin, quando acerca da adesão
posterior do marxismo à Comuna de Paris se expressa nos seguintes termos não
pouco jocosos:
“A impressão que causou esta sublevação
comunista foi tão poderosa, que inclusive os marxistas, cujas ideias
haviam sido lançadas ao mar, em virtude precisamente de tal sublevação, se
viram obrigados a tirar o chapéu para ela. E mais, contra toda lógica e contra
seus mais íntimos sentimentos fizeram seus o programa e os objetivos da comuna.
Era um disfarce cômico e forçado. Porém, não tinha mais como remediar, pois,
caso contrário, teriam sido repudiados e abandonados por todos, tão forte era a
paixão que esta revolução havia despertado em todo o mundo” (citado segundo
Brupbacher, Marx e Bakunin, p.
114-115).
As
ideias revolucionárias dos comunardos parisienses de 1871 derivavam, por um
lado, do programa federalista de Bakunin e Proudhon, e, por outro lado, da
acumulação de ideias jacobinas sobreviventes sob o nome de blanquismo,
porém, só em medida muito escassa do marxismo. Quando Friedrich Engels,
vinte anos depois, afirmou que os blanquistas, a maioria da Comuna parisiense,
foram obrigados pela força dos fatos a proclamar, no lugar do seu próprio
programa de “centralização ditatorial rigorosa de todo o poder em mãos do novo
governo revolucionário” justamente o contrário, isto é, a livre federação de
todas as comunas francesas com a Comuna de Paris, estava aludindo a uma
contradição bastante familiar ao que ocorreu com Marx e Engels e seu incondicional
reconhecimento da comuna como “a forma finalmente encontrada” do governo da
classe operária. Quando Lênin, em seu escrito O Estado e a Revolução,
expõe a evolução da teoria marxista do estado, como se, já em 1852, Marx
tivesse dado a sua abstrata formulação – apresentada no Manifesto Comunista
de 1847-1848 – da tarefa política do proletariado revolucionário no período
de transição, cujo conteúdo concreto seria a destruição e aniquilação do
velho poder estatal burguês por parte da classe operária vitoriosa, comete um
erro. Contra esta tese leninista pode-se, inclusive, lançar mão do próprio
testemunho de Marx e Engels, que declararam repetidas vezes que foi
precisamente as experiências da Comuna de Paris de 1871 o que
proporcionou a prova incontrovertida de que “a classe operária não podia
limitar-se a apenas apoderar-se da máquina estatal em sua organização atual,
colocando-a de acordo com os seus próprios fins”. O próprio Lênin revela um
salto lógico que neste ponto incorre sua exposição do processo evolutivo da
teoria marxista revolucionária do estado em virtude, precisamente, desse salto
extremo de todo um período de vinte anos que simplesmente efetua em sua
análise do conjunto dos escritos e considerações de Marx e Engels sobre o tema.
Análise extraordinariamente exata, tanto no plano histórico quanto no
filológico. Do 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852) passa diretamente
para A Guerra Civil na França (1871), esquecendo-o – ou passando por
alto – entre outras coisas, que, inclusive no Manifesto Inaugural da
Primeira Internacional de 1864, Marx havia sintetizado o “programa
político” global da classe operária na seguinte frase lapidar: “conquistar o
poder político é agora, portanto, a grande tarefa da classe operária”.
Não
obstante, nem sequer depois de 1871 – uma vez feita sua, de maneira
muito mais clara e unívoca, depois da experiência da Comuna de Paris, a
necessidade indispensável da aniquilação da máquina estatal burguesa e da
edificação da ditadura de classe do proletariado – decidiu postular como forma
política de dita ditadura proletária uma forma de governo do tipo da
Comuna revolucionária de Paris. Toma
posição, segundo parece, a favor deste ponto de vista unicamente no momento
histórico preciso em que em seu Manifesto do Conselho Geral da Associação
Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra civil na França, escrito com
sangue e fogo, se depara contra a reação triunfante em nome desta primeira
organização do proletariado revolucionário, isto é, a favor dos heróicos
lutadores e das vítimas da Comuna. Graças à essência revolucionária da
Comuna de Paris, sufocou a crítica que, a partir de suas bases teóricas,
deveria ter feito a esta forma histórica específica da mesma. Se apesar
de tudo ainda avançou um passo a mais, chegando a celebrar a forma política do
regime comunal revolucionário com a “forma finalmente encontrada” de
ditadura proletária, isso não é coisa que possa ser explicada em virtude,
simplesmente, da óbvia solidariedade de Marx em relação aos operários
revolucionários de Paris, mas, sobretudo, graças a um objetivo secundário
realmente importante. Com este Manifesto do Conselho Geral da Associação
Internacional dos Trabalhadores, escrito por ele imediatamente após a
gloriosa luta e derrota dos comunardos de Paris, Marx não propunha unicamente
aproximar o marxismo da comuna, mas, sobretudo e simultaneamente, aproximar a
comuna do marxismo. Se se pretende compreender adequadamente seu sentido e
alcance, este escrito singular não deve ser lido tão só como um documento
histórico clássico, como um simultâneo canto épico e elegíaco, mas como um
escrito polêmico e comprometido de Marx contra seu mais próximo inimigo, um
inimigo contra o qual já então tinha se empenhado em uma série de lutas sem
quartel que logo levariam a Primeira Internacional ao seu desmoronamento
definitivo. Este objetivo tão declaradamente faccioso fez com que Marx não
apreciasse em seu escrito com a necessária exatidão histórica esse coerente
movimento revolucionário do proletariado francês que começou com as sublevações
comunais Lyon e Marselha em 1870 e culminou em 1871 com a sublevação da
Comuna de Paris. Este objetivo lhe obrigou também a apresentar o regime
comunal revolucionária, saudada como a “forma política finalmente encontrada”
da ditadura da classe proletária, ao modo de um governo centralista, violentando
assim sua essência
Já
em Marx e Engels, e mais ainda em Lênin, encontramos, pois, que o caráter
essencialmente federalista da Comuna de Paris é deixado de lado. Embora Marx
não pudesse dar-se conta, em sua breve interpretação do Esquema de
constituição comunal panfrancesa elaborado pela Comuna de Paris, dos traços
inequivocamente federalistas deste regime, não deixa, contudo, de sublinhar
premeditadamente o fato (por outra parte de nenhum modo negado, obviamente, por
federalistas do tipo de Proudhon e Bakunin) de que por meio deste regime “não
só não deveria ser destruída a unidade da nação, mas que deveria ser, ao
contrário, reorganizada”. Subscreve as “escassas, porém importantes
funções” que até em um regime comunal como esta segue correspondendo-lhe um
“governo central”. E acrescenta que de acordo com o plano da comuna,
estas funções “não deveriam ser abolidas, como se afirmou falsamente, mas
que, pelo contrário, deveriam ser encomendadas a funcionários comunais, isto é,
a funcionários rigorosamente responsáveis”. Lênin explica depois, sobre esta base, que nos estudos de Marx
sobre a tentativa da comuna “não resulta sequer perceptível nenhum traço de
federalismo”. "Marx é centralista, e nos seus escritos que acabamos de
citar não se vê contido o menor desvio em relação ao centralismo”.
Completamente certo, porém, precisamente por isso – e embora Lênin se esqueça
de aludir a isso neste ponto – esta exposição marxista da Comuna de Paris é
tudo menos uma caracterização historicamente válida do regime comunal
revolucionário à que aspiravam os comunardos parisienses e que chegaram
a realizar nos primeiros momentos.
Com
o fim de se opor, na medida do possível, ao caráter federalista e
anticentralista da Comuna de Paris, tanto Marx e Engels, mas sobretudo Lênin,
sublinharam a dimensão negativa da Comuna, isto é, sua ideia da destruição
do velho poder estatal burguês. No tocante a esse ponto não há disputa
alguma entre os revolucionários. Marx, Engels e Lênin insistiram, com toda
razão, na necessidade de revelar o motivo determinante do caráter proletário e
revolucionário da forma de poder político representado pela Comuna em sua essência
social como realização da ditadura de classe do proletariado. Diante seus
oponentes “federalistas” insistiram várias vezes que a forma federal e
descentralizada do estado é, em si, tão burguesa como a centralista própria do
moderno estado burguês. De toda forma, não deixa de resultar perceptível
neles um erro bastante similar ao que combateram sempre em seus inimigos com
tanta energia, na medida em que, apesar de sua postura de reserva em relação do
caráter “federalista” do regime comunal, não deixaram de conceder excessiva
importância a certas diferenças formais existentes entre a Comuna de Paris e
a constituição estatal parlamentar e outras formas próprias de governo da
burguesia. Por exemplo, a substituição do exército pela milícia, a
unificação efetuada entre os poderes legislativo e executivo e a
responsabilidade e possibilidade de destituição dos funcionários “comunais”.
Com isso eles deram lugar a uma considerável confusão conceitual, que não só
reportou graves danos no que se refere à postura dos marxistas em relação à
Comuna de Paris, mas também, e sobretudo, precisamente diante da ulterior
posição da linha marxista revolucionária em relação ao novo fenômeno histórico
do estado revolucionário dos conselhos.
Se é inexato pensar como Proudhon e Bakunin que a
forma “federalista” é uma superação do estado burguês, não o é menos acreditar,
como fazem hoje alguns marxistas partidários da comuna revolucionária – isto é,
do sistema revolucionário dos conselhos, influenciados pelas exposições
confusionistas de Marx, Engels e Lênin – que um deputado com mandato breve,
revogável a qualquer momento e com funções perfeitamente delimitadas, ou um
funcionário estatal vinculado mediante contrato privado e com um “salário”
ordinário, constituem uma instituição menos burguesa que a de um parlamentar
eleito.
É
totalmente errôneo, por um lado, acreditar que existe algum tipo de regime
“comunal” ou “conselhista” em virtude da qual sua execução por um estado
comandado pelo partido proletário revolucionário possa resultar factível a
eliminação do caráter, consubstancial a todo estado, de instrumento de opressão
classista. Toda a teoria de Marx e Engels acerca da morte do estado na
sociedade comunista, herdada da tradição do socialismo utópico e
aperfeiçoada sobre a base da experiência prática das lutas proletárias de
classe de sua época, perde seu sentido revolucionário, se, com Lênin, acredita-se
que há um estado no qual a minoria deixa de oprimir a maioria, de tal modo que,
antes de tudo, é a maioria do próprio povo” que “oprime os seus próprios
opressores” e que semelhante estado de ditadura do proletariado pode
converter-se, por sua própria natureza, no realizador da verdadeira democracia,
isto é, da democracia proletária, devido ao que já pode ser considerado como
“um estado em processo de desaparição”.
Urge
chamar novamente a atenção, com toda clareza, acerca dos dois ensinamentos
básicos da autêntica teoria proletária e revolucionária, que devido sua adequação
temporal às exigências práticas de fases da luta com as da sublevação da
Comuna de Paris de 1871 e da revolução russa de outubro de 1917 acabaram
por cair no perigo de perder toda sua vigência. A autêntica meta final da luta
proletária de classes não é um determinado estado, por “democrático”,
“comunal” ou “conselhista” que seja, mas a sociedade comunista sem
classe e sem estado, cuja forma de conjunto não é representada por tal ou qual
poder político, mas por essa “associação na qual o livre desenvolvimento de
cada um é condição necessária para o livre desenvolvimento de todos” (Manifesto
Comunista).
Até
esse momento, esse estado só se diferenciará
do estado burguês, no período de transformação revolucionária da sociedade
capitalista em comunista, em virtude de sua essência de classe e de sua
função social, porém, não de sua forma política. Isso tanto no caso da classe proletária “conquistar”,
com maiores ou menores variações, o aparato estatal anterior, de acordo com a
ilusão dos reformistas, quanto no caso de, segundo a teoria marxista
revolucionária, só poder apropriar-se dele verdadeiramente com base em seu “aniquilamento”
sem resíduos da forma anterior, “substituindo-a” por uma nova forma,
constituída revolucionariamente.
Neste conteúdo social da forma política, e não em tal ou qual
peculiaridade artificialmente elaborada ou implantada em momentos ou
circunstâncias bastante especiais, enraíza
o “verdadeiro segredo” da comuna revolucionária, do sistema revolucionário dos
conselhos e de qualquer outra forma histórica de realização do governo da
classe operária”.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.