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segunda-feira, 27 de maio de 2019

A Comuna Revolucionária II - Karl Korsch


A Comuna Revolucionária II


Karl Korsch




Para compreender a posição tardia de Marx sobre a comuna revolucionária dos operários parisienses em seu autêntico significado, é preciso partir da visão marxista inicial da relação histórica existente entre as formas de organização da moderna luta de classes proletária e as da luta burguesa de classes, anterior àquela no tempo. Marx, ao celebrar estava nova comuna – resultante da luta da classe produtora contra a classe exploradora e capaz de destruir em um ato revolucionário a anterior máquina estatal burguesa – como a forma finalmente encontrada para levar a cabo a emancipação do trabalho, não se propunha, absolutamente – diferentemente do que fizeram alguns de seus seguidores, depois de sua morte e inclusive nos dias atuais – assinalar uma forma determinada de organização política, chame-se comuna revolucionária ou sistema revolucionário de conselhos como única forma válida patenteada da ditadura revolucionária de classe do proletariado. Na frase imediatamente anterior alude expressamente à “diversidade de interpretações que se fizeram da comuna e a diversidade de interesses que nela estavam expressos” e, conseqüentemente, o caráter extraordinariamente flexível da forma política representada por esta nova modalidade de governo. Precisamente esta ilimitada flexibilidade das novas formas de poder político criada pelos comunardos de Paris no ardor da luta e pelas quais esta veio diferenciar-se da “clássica evolução do governo burguês” – do poder estatal centralizado da moderna república parlamentar – constitui para Marx o pressuposto mais importante da possibilidade de utilização em última instância dessa forma, mantendo-se rigorosamente fiel aos verdadeiros interesses da classe operária, como alavanca inclusive para derrubar os fundamentos econômicos sobre os quais repousa a existência das classes, em suma, a dominação estatal e classista. O regime revolucionário comunal acaba convertendo-se assim, em determinadas condições históricas, na forma política de um processo de evolução, isto é, expressando de forma mais clara, de uma ação revolucionária cujo objetivo essencial não consiste já na manutenção de uma determinada forma de dominação estatal, nem na realização, tampouco, de um novo tipo “superior” de estado, mas, muito mais, na definitiva criação dos pressupostos materiais para a dissolução de todo tipo de estado. “Sem esta última condição, o regime comunal não passaria de uma impossibilidade e um erro”, disse Marx, nesse contexto com toda a clareza desejável.
Contudo, entre a caracterização marxista da Comuna de Paris como “forma política” finalmente encontrada para a autoemancipação econômica e social da classe operária e a ênfase que simultaneamente coloca ao sublinhar que se a comuna revolucionária ajustava-se a este fim, era devido, fundamentalmente, à indeterminação e ambigüidade desta forma política, isto é, em sua carência de forma, não deixa de existir uma contradição não resolvida. Só em um ponto parece estar totalmente clara a posição adotada por Marx nesta época, sob a impressão de determinadas teorias políticas com as quais foi tomando contato e incorporando à sua concepção política inicial e como reação prática, e não em pequena medida, à poderosa experiência da Comuna parisiense: se no Manifesto Comunista de 1847-1848 e no Manifesto Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores de 1864 fala da necessidade da conquista do poder político pelo proletariado, após as experiências da Comuna de Paris aprendeu claramente que “a classe operária não pode limitar-se apenas a apoderar-se da máquina estatal em sua organização atual, colocando-a em movimento de acordo com seus próprios fins, mas deve aniquilar revolucionariamente a máquina estatal burguesa existente”. Desde então e, mais especialmente, a partir de Lênin em 1917, ao desenvolver estas manifestações no plano teórico – em seu escrito O Estado e a Revolução – e na prática – com a Revolução de Outubro – convertendo-se assim no novo intérprete desta teoria marxista do estado, ainda não falsificada, tais manifestações foram aceitas como elemento nuclear e medular da teoria política do marxismo, globalmente considerada.
Pois bem, não deixa de resultar evidente que com esta determinação puramente negativa da essência do novo poder estatal revolucionário do proletariado, de acordo com o qual dito poder não pode ser “a máquina estatal já organizada”, do anterior estado burguês, “assumida, apenas, pela classe operária e posta em movimento de acordo com seus próprios fins”, não afirma, em realidade, nada positivo acerca do caráter formal deste novo poder estatal proletário. Temos que perguntar, em virtude de quê a “comuna” representa, em sua forma específica, tal como Marx a definiu em sua A Guerra Civil na França e vinte anos depois Engels voltou a descrevê-la em sua detalhada introdução à terceira edição desta obra como “a forma política enfim encontrada de governo da classe operária”? Como Marx e Engels, os ardentes admiradores do sistema centralista da ditadura burguesa revolucionária edificada pela Convenção da grande Revolução Francesa, chegaram a considerar como “forma política” da ditadura revolucionária do proletariado precisamente a “comuna”, isto é, algo total e evidentemente oposto aquele sistema?
Na realidade, uma análise medianamente rigorosa dos programas políticos e dos objetivos apresentados por ambos fundadores do socialismo científico, tanto na época anterior a sublevação da Comuna de Paris como também depois do mesmo, evidencia a insustentabilidade da tese de que a forma da ditadura proletária elaborada em 1871 pela Comuna de Paris resulta de certo modo conciliável com ditas teorias políticas. Parece muito mais, pelo contrário, que neste ponto concreto a verdade histórica correspondia ao grande adversário de Marx na Primeira Internacional, Mikhail Bakunin, quando acerca da adesão posterior do marxismo à Comuna de Paris se expressa nos seguintes termos não pouco jocosos:
“A impressão que causou esta sublevação comunista foi tão poderosa, que inclusive os marxistas, cujas ideias haviam sido lançadas ao mar, em virtude precisamente de tal sublevação, se viram obrigados a tirar o chapéu para ela. E mais, contra toda lógica e contra seus mais íntimos sentimentos fizeram seus o programa e os objetivos da comuna. Era um disfarce cômico e forçado. Porém, não tinha mais como remediar, pois, caso contrário, teriam sido repudiados e abandonados por todos, tão forte era a paixão que esta revolução havia despertado em todo o mundo” (citado segundo Brupbacher, Marx e Bakunin, p. 114-115).
As ideias revolucionárias dos comunardos parisienses de 1871 derivavam, por um lado, do programa federalista de Bakunin e Proudhon, e, por outro lado, da acumulação de ideias jacobinas sobreviventes sob o nome de blanquismo, porém, só em medida muito escassa do marxismo. Quando Friedrich Engels, vinte anos depois, afirmou que os blanquistas, a maioria da Comuna parisiense, foram obrigados pela força dos fatos a proclamar, no lugar do seu próprio programa de “centralização ditatorial rigorosa de todo o poder em mãos do novo governo revolucionário” justamente o contrário, isto é, a livre federação de todas as comunas francesas com a Comuna de Paris, estava aludindo a uma contradição bastante familiar ao que ocorreu com Marx e Engels e seu incondicional reconhecimento da comuna como “a forma finalmente encontrada” do governo da classe operária. Quando Lênin, em seu escrito O Estado e a Revolução, expõe a evolução da teoria marxista do estado, como se, já em 1852, Marx tivesse dado a sua abstrata formulação – apresentada no Manifesto Comunista de 1847-1848 – da tarefa política do proletariado revolucionário no período de transição, cujo conteúdo concreto seria a destruição e aniquilação do velho poder estatal burguês por parte da classe operária vitoriosa, comete um erro. Contra esta tese leninista pode-se, inclusive, lançar mão do próprio testemunho de Marx e Engels, que declararam repetidas vezes que foi precisamente as experiências da Comuna de Paris de 1871 o que proporcionou a prova incontrovertida de que “a classe operária não podia limitar-se a apenas apoderar-se da máquina estatal em sua organização atual, colocando-a de acordo com os seus próprios fins”. O próprio Lênin revela um salto lógico que neste ponto incorre sua exposição do processo evolutivo da teoria marxista revolucionária do estado em virtude, precisamente, desse salto extremo de todo um período de vinte anos que simplesmente efetua em sua análise do conjunto dos escritos e considerações de Marx e Engels sobre o tema. Análise extraordinariamente exata, tanto no plano histórico quanto no filológico. Do 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852) passa diretamente para A Guerra Civil na França (1871), esquecendo-o – ou passando por alto – entre outras coisas, que, inclusive no Manifesto Inaugural da Primeira Internacional de 1864, Marx havia sintetizado o “programa político” global da classe operária na seguinte frase lapidar: “conquistar o poder político é agora, portanto, a grande tarefa da classe operária”.
Não obstante, nem sequer depois de 1871 – uma vez feita sua, de maneira muito mais clara e unívoca, depois da experiência da Comuna de Paris, a necessidade indispensável da aniquilação da máquina estatal burguesa e da edificação da ditadura de classe do proletariado – decidiu postular como forma política de dita ditadura proletária uma forma de governo do tipo da Comuna revolucionária de Paris. Toma posição, segundo parece, a favor deste ponto de vista unicamente no momento histórico preciso em que em seu Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra civil na França, escrito com sangue e fogo, se depara contra a reação triunfante em nome desta primeira organização do proletariado revolucionário, isto é, a favor dos heróicos lutadores e das vítimas da Comuna. Graças à essência revolucionária da Comuna de Paris, sufocou a crítica que, a partir de suas bases teóricas, deveria ter feito a esta forma histórica específica da mesma. Se apesar de tudo ainda avançou um passo a mais, chegando a celebrar a forma política do regime comunal revolucionário com a “forma finalmente encontrada” de ditadura proletária, isso não é coisa que possa ser explicada em virtude, simplesmente, da óbvia solidariedade de Marx em relação aos operários revolucionários de Paris, mas, sobretudo, graças a um objetivo secundário realmente importante. Com este Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, escrito por ele imediatamente após a gloriosa luta e derrota dos comunardos de Paris, Marx não propunha unicamente aproximar o marxismo da comuna, mas, sobretudo e simultaneamente, aproximar a comuna do marxismo. Se se pretende compreender adequadamente seu sentido e alcance, este escrito singular não deve ser lido tão só como um documento histórico clássico, como um simultâneo canto épico e elegíaco, mas como um escrito polêmico e comprometido de Marx contra seu mais próximo inimigo, um inimigo contra o qual já então tinha se empenhado em uma série de lutas sem quartel que logo levariam a Primeira Internacional ao seu desmoronamento definitivo. Este objetivo tão declaradamente faccioso fez com que Marx não apreciasse em seu escrito com a necessária exatidão histórica esse coerente movimento revolucionário do proletariado francês que começou com as sublevações comunais Lyon e Marselha em 1870 e culminou em 1871 com a sublevação da Comuna de Paris. Este objetivo lhe obrigou também a apresentar o regime comunal revolucionária, saudada como a “forma política finalmente encontrada” da ditadura da classe proletária, ao modo de um governo centralista, violentando assim sua essência
Já em Marx e Engels, e mais ainda em Lênin, encontramos, pois, que o caráter essencialmente federalista da Comuna de Paris é deixado de lado. Embora Marx não pudesse dar-se conta, em sua breve interpretação do Esquema de constituição comunal panfrancesa elaborado pela Comuna de Paris, dos traços inequivocamente federalistas deste regime, não deixa, contudo, de sublinhar premeditadamente o fato (por outra parte de nenhum modo negado, obviamente, por federalistas do tipo de Proudhon e Bakunin) de que por meio deste regime “não só não deveria ser destruída a unidade da nação, mas que deveria ser, ao contrário, reorganizada”. Subscreve as “escassas, porém importantes funções” que até em um regime comunal como esta segue correspondendo-lhe um “governo central”. E acrescenta que de acordo com o plano da comuna, estas funções “não deveriam ser abolidas, como se afirmou falsamente, mas que, pelo contrário, deveriam ser encomendadas a funcionários comunais, isto é, a funcionários rigorosamente responsáveis”. Lênin explica depois, sobre esta base, que nos estudos de Marx sobre a tentativa da comuna “não resulta sequer perceptível nenhum traço de federalismo”. "Marx é centralista, e nos seus escritos que acabamos de citar não se vê contido o menor desvio em relação ao centralismo”. Completamente certo, porém, precisamente por isso – e embora Lênin se esqueça de aludir a isso neste ponto – esta exposição marxista da Comuna de Paris é tudo menos uma caracterização historicamente válida do regime comunal revolucionário à que aspiravam os comunardos parisienses e que chegaram a realizar nos primeiros momentos.
Com o fim de se opor, na medida do possível, ao caráter federalista e anticentralista da Comuna de Paris, tanto Marx e Engels, mas sobretudo Lênin, sublinharam a dimensão negativa da Comuna, isto é, sua ideia da destruição do velho poder estatal burguês. No tocante a esse ponto não há disputa alguma entre os revolucionários. Marx, Engels e Lênin insistiram, com toda razão, na necessidade de revelar o motivo determinante do caráter proletário e revolucionário da forma de poder político representado pela Comuna em sua essência social como realização da ditadura de classe do proletariado. Diante seus oponentes “federalistas” insistiram várias vezes que a forma federal e descentralizada do estado é, em si, tão burguesa como a centralista própria do moderno estado burguês. De toda forma, não deixa de resultar perceptível neles um erro bastante similar ao que combateram sempre em seus inimigos com tanta energia, na medida em que, apesar de sua postura de reserva em relação do caráter “federalista” do regime comunal, não deixaram de conceder excessiva importância a certas diferenças formais existentes entre a Comuna de Paris e a constituição estatal parlamentar e outras formas próprias de governo da burguesia. Por exemplo, a substituição do exército pela milícia, a unificação efetuada entre os poderes legislativo e executivo e a responsabilidade e possibilidade de destituição dos funcionários “comunais”. Com isso eles deram lugar a uma considerável confusão conceitual, que não só reportou graves danos no que se refere à postura dos marxistas em relação à Comuna de Paris, mas também, e sobretudo, precisamente diante da ulterior posição da linha marxista revolucionária em relação ao novo fenômeno histórico do estado revolucionário dos conselhos.
Se é inexato pensar como Proudhon e Bakunin que a forma “federalista” é uma superação do estado burguês, não o é menos acreditar, como fazem hoje alguns marxistas partidários da comuna revolucionária – isto é, do sistema revolucionário dos conselhos, influenciados pelas exposições confusionistas de Marx, Engels e Lênin – que um deputado com mandato breve, revogável a qualquer momento e com funções perfeitamente delimitadas, ou um funcionário estatal vinculado mediante contrato privado e com um “salário” ordinário, constituem uma instituição menos burguesa que a de um parlamentar eleito.
É totalmente errôneo, por um lado, acreditar que existe algum tipo de regime “comunal” ou “conselhista” em virtude da qual sua execução por um estado comandado pelo partido proletário revolucionário possa resultar factível a eliminação do caráter, consubstancial a todo estado, de instrumento de opressão classista. Toda a teoria de Marx e Engels acerca da morte do estado na sociedade comunista, herdada da tradição do socialismo utópico e aperfeiçoada sobre a base da experiência prática das lutas proletárias de classe de sua época, perde seu sentido revolucionário, se, com Lênin, acredita-se que há um estado no qual a minoria deixa de oprimir a maioria, de tal modo que, antes de tudo, é a maioria do próprio povo” que “oprime os seus próprios opressores” e que semelhante estado de ditadura do proletariado pode converter-se, por sua própria natureza, no realizador da verdadeira democracia, isto é, da democracia proletária, devido ao que já pode ser considerado como “um estado em processo de desaparição”.
Urge chamar novamente a atenção, com toda clareza, acerca dos dois ensinamentos básicos da autêntica teoria proletária e revolucionária, que devido sua adequação temporal às exigências práticas de fases da luta com as da sublevação da Comuna de Paris de 1871 e da revolução russa de outubro de 1917 acabaram por cair no perigo de perder toda sua vigência. A autêntica meta final da luta proletária de classes não é um determinado estado, por “democrático”, “comunal” ou “conselhista” que seja, mas a sociedade comunista sem classe e sem estado, cuja forma de conjunto não é representada por tal ou qual poder político, mas por essa “associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é condição necessária para o livre desenvolvimento de todos” (Manifesto Comunista).
Até esse momento, esse estado só se diferenciará do estado burguês, no período de transformação revolucionária da sociedade capitalista em comunista, em virtude de sua essência de classe e de sua função social, porém, não de sua forma política. Isso tanto no caso da classe proletária “conquistar”, com maiores ou menores variações, o aparato estatal anterior, de acordo com a ilusão dos reformistas, quanto no caso de, segundo a teoria marxista revolucionária, só poder apropriar-se dele verdadeiramente com base em seu “aniquilamento” sem resíduos da forma anterior, “substituindo-a” por uma nova forma, constituída revolucionariamente. Neste conteúdo social da forma política, e não em tal ou qual peculiaridade artificialmente elaborada ou implantada em momentos ou circunstâncias bastante especiais, enraíza o “verdadeiro segredo” da comuna revolucionária, do sistema revolucionário dos conselhos e de qualquer outra forma histórica de realização do governo da classe operária”.  
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.

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