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segunda-feira, 27 de maio de 2019

A Comuna Revolucionária I - Karl Korsch



A Comuna Revolucionária I


Karl Korsch


 O que deve saber sobre a “Comuna Revolucionária” todo operário com consciência de classe neste momento histórico em que vivemos e no qual a autolibertação revolucionária do jugo capitalista por parte da classe operária se coloca na ordem do dia? E o que sabe dela hoje inclusive a parte politicamente mais preparada e, conseqüentemente, relativamente autoconsciente do proletariado?
Existem a este respeito alguns fatos históricos e algumas palavras de Marx, Engels e Lênin relacionadas com eles que, na conjuntura atual, depois de meio século de propaganda social-democrata – durante todo o período do pré-guerra – e da série de acontecimentos verdadeiramente transcendentais dos últimos quinze anos, passaram a tomar parte decidida da consciência proletária, por muito que nas escolas da atual república “democrática” se fale, apesar de tudo, tão escassamente dessas questões como nas escolas da velha monarquia imperial. Trata-se da história e do significado profundo da gloriosa Comuna de Paris, que desfraldou a bandeira vermelha da revolução proletária em 18 de março de 1871 e a manteve desfraldada durante setenta e dois dias de lutas encarniçadas contra um mundo exterior armado até os dentes e empenhado em um ataque de morte contra ela. Trata-se, enfim, da comuna revolucionária do proletariado parisiense de 1871, da qual Marx disse no Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores de 30 de maio de 1871 sobre a guerra civil na França, que “seu verdadeiro segredo” foi ter sido, fundamentalmente, um governo da classe operária, “o resultado da luta da classe produtora contra a classe que se apropria do trabalho alheio, a forma política finalmente encontrada que permitia realizar a emancipação econômica do trabalho”. Friedrich Engels, de maneira similar, vinte anos depois, jogava na cara dos filisteus aterrorizados, no momento em que a fundação da Segunda Internacional e a instituição da comemoração proletária do primeiro de maio[1] como forma de ação direta de massas a nível internacional voltava a encher de temor as classes proprietárias, as seguintes frases cheias de orgulho: “Querem saber a forma dessa ditadura? Olhem a Comuna de Paris, eis a ditadura do proletariado”. E mais de duas décadas depois, o maior político revolucionário de nossa época, Lênin, retornou a este tema, levando a cabo, na parte central da mais importante de suas obras políticas, O Estado e a Revolução, uma detalhada análise das experiências da Comuna de Paris e da luta contra a deformação oportunista e a mistificação dos importantes ensinamentos que já Marx e Engels souberam extrair daquele período histórico. E quando, poucas semanas depois da revolução russa de 1917, que começou em fevereiro como revolução nacional e burguesa e acabou por converter-se, superando suas limitações de cunho nacional e burguês e ampliando e aprofundando suas perspectivas, em primeira revolução proletária do mundo, tanto Lênin e Trotski como as massas operárias da Europa ocidental e os setores mais progressistas da classe operária de todo mundo saudaram a nova forma de governo criada por essa ação revolucionária de massas, isto é, o sistema revolucionário dos conselhos, como o prolongamento direto da comuna revolucionária gestada meio século pelos operários de Paris.
Até aqui está tudo bem. Por mais confusa que tenha sido a ideia que os operários revolucionários, no período de ascensão e impulso revolucionários que seguiu em toda Europa as comoções políticas e econômicas desencadeadas pelos quatro anos de guerra mundial, sustentaram ao pronunciar a fórmula “todo o poder aos conselhos” e por muito profundo que tenha sido o abismo que já começava a abrir-se entre dita imagem e a realidade que ia forjando-se na nova Rússia sob o rótulo de “República socialista dos conselhos”, não cabe dúvida de que naqueles anos a luta pelos conselhos representava uma forma de evolução política da vontade política de uma classe proletária e revolucionária em plena urgência de realização. Na verdade, unicamente os filisteus amargurados podiam protestar então contra a indefinição que inevitavelmente cercava essa ideia, tal como toda ideia não realizada, e só os pedantes triviais podiam investir na tentativa de remediar esta deficiência através de “sistemas” artificialmente elaborados no terreno da imaginação, como o desacreditado “sistema de caixinhas” de Däumig e Richard Müller. Em todos aqueles lugares nos quais, da mesma forma tão efêmera na Hungria e Baviera em 1919, o proletariado constituiu sua ditadura revolucionária de classe, a concebeu, denominou e constituiu como “governo da classe operária”, governo que era o resultado da luta da classe produtora contra a classe que explora o trabalho alheio, e cujo objetivo último se consolidava na plena realização da “libertação econômica do trabalho”, um governo definido, enfim, como “governo revolucionário de conselhos”. E se o proletariado tivesse triunfado naquela época em algum dos grandes países industriais – na Alemanha, por exemplo, quando a grande greve da primavera de 1919 ou em resposta ao putsch de Kapp em 1920, ou ainda, na seqüência, da greve de 1923 contra a ocupação do Ruhr e a inflação; ou na Itália durante a época das ocupações de fábricas, em Outubro de 1923 – teria constituído seu poder sob a forma duma república dos conselhos e se unido à “república federativa socialista soviética da Rússia”, já existente, no quadro duma confederação mundial das repúblicas revolucionárias dos conselhos.
Nas atuais circunstâncias, contudo, a ideia dos conselhos e a existência de um governo dos conselhos pretensamente "socialista" e "revolucionário" têm um significado completamente distinto. Hoje – em que a superação da crise econômica mundial de 1921 e as conseqüentes derrotas dos operários alemães, poloneses e italianos, ao que se seguiu uma série de novas derrotas proletárias até a greve dos mineiros e greve geral inglesa de 1926 e o capitalismo europeu inaugurou um novo ciclo de sua ditadura sobre uma classe operária derrotada – quando, portanto, nos encontramos diante de novas condições objetivas, os lutadores da classe proletária e revolucionária de todo o mundo não podem seguir agarrando-se de maneira acrítica e estática à nossa velha fé na importância revolucionária da ideia dos conselhos e no caráter revolucionário do governo dos conselhos como manifestação recente e evoluída da forma política da ditadura proletária “encontrada” há meio século pelos comunardos franceses.
Hoje, frente às contradições flagrantes que existem entre o nome e a realidade efetiva da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, não podemos dar-nos por satisfeitos com a constatação, por exemplo, de que os atuais mandatários russos “traíram” o primitivo princípio revolucionário dos conselhos, de forma similar como Scheidemann, Müller e Leipart “traíram” seus princípios socialistas “revolucionários” do pré-guerra. Limitar-se a isso seria ao mesmo tempo superficial e errôneo. É obvio que se trata de uma dupla verdade inquestionável. Os Scheidemann, Müller e Leipart traíram, sem dúvida, seus princípios socialistas. E, por outro lado, a “ditadura” que hoje é exercida pela cúpula máxima do aparato de um partido governamental extremamente exclusivista – e que apenas o nome recorda o primitivo partido “comunista” e “bolchevique” – sobre o proletariado e toda a Rússia soviética com a ajuda de uma burocracia extremamente desenvolvida, tem em comum com as ideias revolucionárias dos conselhos de 1917 e 1918 exatamente a mesma coisa que tem com elas a ditadura do partido fascista do velho social-democrata revolucionário Mussolini na Itália. Porém, em ambos os casos é tão pouco o que se explica falando de “traição”, que é muito mais o fato da própria traição que necessita ser explicado.
A verdadeira tarefa que esta evolução contraditória – que levou do velho lema revolucionário de “todo o poder aos conselhos” ao atual regime capitalista e fascista do pretenso “estado socialista soviético” – coloca para todos nós, socialistas revolucionários com consciência de classe, de uma forma realmente urgente, não é, na verdade, senão uma tarefa de autocrítica revolucionária. Temos que reconhecer que não só para as ideias e instituições do passado feudal e burguês, mas também para as diversas formas de pensamento e organização engendradas pela própria classe operária nos anteriores e sucessivos períodos de sua luta pela autolibertação histórica, tem validade essa dialética revolucionária em virtude da qual “o bem de ontem se converte no mal de hoje”, para utilizar palavras de Goethe, ou, como Karl Marx veio a dizer de forma mais clara e incisiva, todo estágio histórico de uma forma evolutiva das forças produtivas revolucionárias e da ação revolucionária, assim como a evolução da consciência, pode converter-se, em um determinado ponto do seu processo evolutivo, em um obstáculo para o mesmo. A esta contradição dialética da evolução revolucionária estão submetidas, tal como as demais ideias e produções históricas, também essas formações na ordem do pensamento e na da organização próprias de uma determinada fase histórica da luta revolucionária de classe, como a forma política “finalmente encontrada” à quase sessenta anos pelos comunardos franceses e estruturada como forma de governo próprio da classe operária ao modo da comuna revolucionária e seu herdeiro, o “poder revolucionário dos conselhos”, oriundo de um novo período histórico de luta através dos impulsos do movimento revolucionários dos operários e camponeses russos.
Ao invés de lamentarmos a “traição” à ideia dos conselhos e a degeneração dos conselhos, devemos realizar uma síntese, de maneira sóbria, serena e historicamente objetiva, da evolução da totalidade desse processo, elaborando uma visão histórica de conjunto que dê conta de suas fases sucessivas, fazendo-nos, por último, a pergunta crítica: qual é, de acordo com essa experiência histórica, o significado real da ordem histórica e classista desta nova forma de governo, cristalizada inicialmente na comuna revolucionária de 1871, aniquilada pela força ao fim de setenta e dois dias de vida, e que encontrou sua expressão mais concreta e recente na revolução russa de 1917.
Procurar uma nova imagem, muito mais profunda e orientadora, do caráter histórico e classista da comuna revolucionária e sua continuação no sistema revolucionário dos conselhos, resulta duplamente necessário se se pensa que inclusive a crítica histórica mais superficial mostra o totalmente infundado dessa concepção tão divulgada hoje entre os revolucionários. Dita concepção, apesar de depreciar teoricamente o parlamento como instituição burguesa por sua origem e sua função e praticamente indica a necessidade de “aniquilá-lo”, no chamado “sistema de conselhos” e em sua forma precedente, a “comuna revolucionária”, vislumbra, ao mesmo tempo, uma forma de governo total e essencialmente proletária, oposta, por sua própria natureza, de maneira inconciliável e contraditória ao estado burguês. Na realidade, a “comuna” representa, ao longo de sua evolução quase milenar, não só uma forma de governo burguês mais antiga que o parlamento, mas que constitui – desde seus começos no século XI até seu ponto culminante no momento auge do movimento revolucionário da burguesia, isto é, na grande revolução francesa de 1789-1793 – a forma mais pura, precisamente, na ordem da luta de classes que, sob distintas modalidades, levou a cabo durante todo este período histórico a então revolucionária classe burguesa para conseguir a transformação da ordem social feudal existente até o momento e edificar a nova ordem social de cunho burguês.
Quando, na frase que citamos anteriormente – tomada de A Guerra Civil na França –, Marx celebrava a comuna revolucionária dos operários parisienses do ano de 1871 como “a forma finalmente encontrada que permitia realizar a emancipação econômica do trabalho” era, ao mesmo tempo, consciente de que a forma herdada das seculares lutas burguesas de libertação da “comuna” só podia assumir este caráter novo ao preço de uma transformação radical de sua essência anterior. Toma posição expressamente contra as falsas concepções de todos que queriam ver, em seu tempo, nesta “nova comuna, aniquiladora do poder de estado” uma “versão renovada das comunas medievais anteriores a dito poder estatal e que assentaram, na realidade, as bases do mesmo”. E estava muito longe, portanto, de esperar qualquer tipo de efeitos milagrosos para a luta de classes do proletariado da forma política do regime comunal enquanto tal, considerada independentemente do conteúdo classista específico com o qual, em sua opinião, haviam preenchido os operários de Paris esta forma política por eles conquistada e posta ao serviço de sua autolibertação econômica em um determinado momento histórico. De acordo com sua análise desse problema, os operários de Paris fizeram de sua forma herdada da “comuna” um instrumento de seus fins revolucionários – opostos radicalmente à finalidade histórica original da mesma – em virtude, precisamente, de seu caráter pouco evoluído e relativamente indeterminado. Enquanto que no estado burguês plenamente desenvolvido, tal e como foi formando-se – na França, por exemplo – em sua versão clássica, isto é, como estado representativo moderno centralizado, o poder estatal não é mais do que, de acordo com a conhecida expressão do Manifesto Comunista, outra coisa que “um comitê de administração do conjunto de negócios da burguesia”, nas formas provisórias e pouco desenvolvidas da estrutura estatal burguesa, entre as quais é preciso situar a comuna “livre” medieval, este caráter classista especificamente burguês, consubstancial a todo estado, exige uma fisionomia completamente diferente. Frente ao posterior e cada vez mais evidente e cada vez mais elaborado caráter do poder estatal burguês de “instrumento público repressivo para a opressão da classe operária”, de “máquina para o domínio classista” (Marx), nesta fase primitiva de sua evolução pesa, todavia, mais a finalidade original da organização burguesa de classe como órgão da luta revolucionária de libertação da classe burguesa oprimida contra o domínio feudal medieval. Por muito pouco que esta luta da burguesia medieval tinha em comum com a luta proletária de emancipação da época histórica contemporânea, era, não obstante, uma luta de classes histórica, e nesta medida – ainda que, desde já, somente nela – os instrumentos criados pela burguesia de acordo com as necessidades de sua luta revolucionária não deixam de oferecer também um ponto de partida puramente formal para a luta de emancipação revolucionária que atualmente, sobre bases totalmente distintas, em condições extremamente diferentes e com vista a outros objetivos, protagoniza a classe proletária.
Marx chamou prontamente a atenção sobre a especial importância que essa série de experiências e conquistas provisórias da luta de classes realizada pela burguesia, cuja expressão mais importante pode ver-se nas diversas fases evolutivas da comuna revolucionária burguesa da Idade Média, foi-lhe correspondendo na formação tanto da moderna consciência proletária de classe como da luta de classe do proletariado, e o fez muito antes, inclusive, do que o grande acontecimento histórico da sublevação dos comunardos parisienses de 1871 lhe induzira a saudar esta nova comuna revolucionária dos operários de Paris como a forma política finalmente encontrada da emancipação econômica do trabalho. Devemos a Marx, a este respeito, a demonstração da analogia histórica existente entre a evolução política da burguesia como classe oprimida e em luta por sua libertação no seio do estado feudal medieval e a evolução do proletariado na moderna sociedade capitalista. Uma analogia da que se serviu, por certo, como importante ponto de partida em sua teoria dialética e revolucionária sobre a importância dos sindicatos e das lutas sindicais – uma teoria ainda não compreendida plena e adequadamente, nem sequer em nossos dias, por um bom número de marxistas tanto de inspiração esquerdista como direitista. Marx, nessa teoria, comparou as modernas coalizões de operários com as comunas da burguesia medieval, sublinhando o fato histórico de que também a classe burguesa começou sua luta contra a ordem social feudal com a formação de coalizões. Já em seu escrito polêmico contra Proudhon encontramos a seguinte referência, hoje verdadeiramente clássica, sobre esta questão:
“Fizeram-se não poucos estudos para apresentar as diferentes fases históricas percorridas pela burguesia desde a comunidade urbana (comuna) até sua constituição com classe. Porém, quando se trata de tomar boa nota das greves, coalizões e outras formas das que os proletários se servem para culminar ante nós sua organização como classe, alguns são presa de verdadeiro espanto e outros fazem gala de um desdém transcendental” (A Miséria da Filosofia, cap. 2, parágrafo 5).
O que aqui expressa o jovem Marx em meados dos anos quarenta, quando ainda é recente sua evolução ao socialismo proletário, e repete sem maiores variações anos depois em sua exposição dos diversos estágios evolutivos da burguesia e do proletariado no Manifesto Comunista, volta novamente a expressá-lo vinte anos depois na conhecida Resolução do Congresso de Genebra da Associação Internacional dos Trabalhadores concernente aos sindicatos. Ali se afirma destes que já em sua anterior evolução, e sem ser conscientes disso, mas além de suas tarefas cotidianas imediatas de defesa dos salários e da jornada de trabalho dos operários contra as incessantes investidas do capital, “haviam chegado a converter-se em pontos verdadeiramente culminantes da organização da classe operária, de maneira similar a como as municipalidades e comunidades medievais haviam sido para a burguesia”, de tal modo que no futuro haveriam de trabalhar já de maneira consciente como bases da organização do conjunto da classe operária.



[1] A chamada Segunda Internacional, acatando proposta de Raymond Lavigne, em 20 de junho de 1889, convoca uma manifestação anual com o objetivo de lutar pela redução da jornada de trabalho a oito horas diárias. O dia escolhido foi o 1º de Maio, em homenagem às lutas dos trabalhadores de Chicago/EUA, quando pelo mesmo motivo e no mesmo dia, os trabalhadores norte-americanos fizeram manifestações de ruas que se desdobraram em conflitos e mortes no dia seguinte.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.

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