As Lições
das Ruas
Nildo Viana
A rua é um lugar público e de mobilidade dos indivíduos. É também o
lugar onde, geralmente, ocorrem manifestações. Ontem, domingo, elas estavam
lotadas. O protesto era contra o governo de Dilma Roussef e a corrupção. Algumas
pessoas aprendem com as experiências, outras não. As que aprendem com as experiências
possuem uma tendência de não repetir os erros do passado. As que não aprendem,
ao contrário, possuem a tendência contrária, ou seja, repetir os erros do
passado. É por isso que poderíamos aprender com as manifestações de ontem, que
deram algumas lições que deveríamos analisar e aprender com elas. No entanto,
vamos analisar as lições das ruas apenas no que se refere ao público intelectualizado,
especialmente o setor alinhado à ala governista do bloco dominante (petistas e
aliados) e ao bloco progressista (expresso pelos partidos políticos de “esquerda”
não aliados do governo, mas envolvidos ou iludidos com ele).
A primeira lição é não subestimar o descontentamento da população.
Alguns só conseguem ver o descontentamento nas eleições. A crise financeira
atinge toda a população e, sem dúvida, gera um alto grau de descontentamento,
que se amplifica ainda mais com as denúncias de corrupção e com a percepção de
um governo inoperante que não consegue esboçar nenhuma reação diante da mesma.
O descontentamento pode ficar latente e pode não ser facilmente perceptível,
mas tende a emergir quando ocorrem determinadas situações que permitem sua manifestação.
O pensamento burguês – em sua variante conservadora ou progressista – tende a não
perceber esse processo e ver no fato apenas o fato, se iludindo com o “empírico”,
tornando-se incapaz de perceber as potencialidades e tendências.
A segunda lição é não reproduzir os esquemas de pensamento simplistas,
tal como a oposição entre governistas e oposicionistas conservadores como a
única coisa existente. Sem dúvida, a ala governista do bloco dominante (Governo
Dilma, PT e aliados) tem interesse nessa polarização e dicotomização tanto
quanto a ala oposicionista (partidos da oposição parlamentar, como PSDB, DEM e
outros), pois assim podem inibir atos e falas de pessoas que não querem ser
confundidos com um ou outro. Em termos populares (e popularizados pelos
defensores de ambos os lados), a oposição simplista entre “petralhas” e “coxinhas”
beneficia aos dois, gerando não só estereótipos negativos do lado adversário,
mas inibindo um terceiro lado. A polarização entre os dois lados existe, mas não
é absoluta e só serve para reproduzir a falta de opção, que pode gerar
extremismos no interior da dicotomização ou explosões de violência por falta de
opção.
A terceira lição, intimamente ligada com a segunda, é que os
setores intelectualizados da população alinhados à ala governista (ou ao bloco progressista,
que parece imobilizado pela polarização e por isso não se apresenta como oposição
e assim deixa a população sem opção institucional, já que a dicotomização é
entre duas alas do bloco dominante, pois o bloco revolucionário é
anticapitalista e antiparlamentar), deveriam ao invés de menosprezar a população,
desde o que chamam de “classe média” aos trabalhadores, que alguns chamaram de “inocentes
úteis”.
A classe intelectual, devido sua profissão e ofício, deveria
ser mais profunda em suas análises da realidade política nacional. Mais ainda
os das ciências humanas, pois isto faria parte do seu “objeto de estudo” (claro
que não para certas tendências, submetidas ao “fetichismo do corpo” ou “fetichismo
da identidade”, entre outras aberrações intelectuais). Infelizmente, os meios
intelectualizados acabam reproduzindo a superficialidade dos partidários da ala
governista ou da ala oposicionista do bloco dominante. No primeiro caso, o que
é mais comum nos meios acadêmicos na área de humanas, onde a análise deveria
ser mais profunda, é desqualificar os indivíduos que participaram das manifestações
e, mais ainda, os trabalhadores, que seriam “inocentes úteis”. O mesmo poderia
ser dito desses meios intelectualizados (mais ainda os das universidades federais),
pois ao reproduzirem o discurso governista, funcionam como “inocentes úteis”. Eles acabam reproduzindo, acriticamente, as correntes de opinião dos partidos mais influentes. Obviamente que valores e interesses são poderosos nesses casos, mas lembrando
de que as greves nas universidades (em 2012 e 2015) tiveram como alvo o Governo
Federal e sua política de precarização dessas instituições, isto é, no mínimo,
incoerente. A única explicação para a reprodução do discurso governista e
simplista, no caso dos meios acadêmicos, é a ilusão da polarização que impede a
capacidade de reflexão crítica. O mais curioso é que justamente os meios
intelectualizados, aqueles que deveriam ser mais ativos e apresentar projetos
alternativos, ou se aliam ao discurso governista que está totalmente perdido e
inoperante, ou ficam na defensiva com medo de ser rotulado como estando do lado
oposto, o que reforça esse mesmo lado ao não se produzir uma alternativa. A
maioria das pessoas que estavam nas manifestações não era favorável à ala oposicionista
do bloco dominante, mas estavam perdidos por não ter alternativa (não querem
nem a ala governista, nem a oposicionista). O bloco progressista (expresso pelo
PSOL, PSTU, etc.) acaba se mostrando tão inoperante na ação política e sem
iniciativa quanto do governo Dilma e junto com ele uma grande camada da classe
intelectual que não é exatamente pró-governista, mas que teme ser confundida
com a ala oposicionista do bloco dominante.
A quarta lição é entender que não é apenas a suposta “esquerda”
(nome problemático e que pode se incluir coisas distintas e até antagônicas)
que consegue mobilizar a população. Ela se mobiliza espontaneamente e pode ser
mobilizada por outros setores da sociedade (o capital comunicacional é poderoso
nesse aspecto). A grande questão é quando a suposta “esquerda” fica ausente da mobilização,
deixando campo livre para as forças conservadoras, pois eles reforçam o que
combatem, contraditoriamente. Um grande contingente de pessoas com baixa politização,
com alta desilusão, buscando uma alternativa que não se apresenta, vai para as
ruas e o bloco progressista fica alheio (“esperando a banda passar”). O elogio
de certos setores e indivíduos durante as manifestações mostra justamente isso.
A miséria do bloco progressista e a fraqueza do bloco revolucionário tornam
possível um juiz federal ser a figura de maior destaque nas manifestações de 13
de março.
A quinta lição é que a insatisfação da população é mais
ampla do que se imaginava. A política institucional (democracia representativa,
governo, etc.) enfrentou sua primeira grande crise nas manifestações de 2013 e
ela foi varrida para debaixo do tapete com o circo armado no ano seguinte da
Copa do Mundo de futebol e eleições presidenciais (com o reforço da repressão policial
pelo governo federal). Em 2015, ela esboçou um reaparecimento, mas a polarização
entre ala governista e ala oposicionista do bloco dominante acabou
enfraquecendo a sua tendência de ressurgimento. A luta pelo poder e a crise
financeira, criando uma situação institucional insustentável, juntando com a incompetência
generalizada dos partidos, escândalos de corrupção e falta de alternativas, já
mostra um novo esboço de seu ressurgimento. A crise da política institucional
aumentou com a visibilidade da corrupção (e a percepção de que ninguém escapa
dela) e vem reforçar o alto grau de descontentamento que já existia. Assim, a
direita e a esquerda capitalista estão imobilizadas e sem capacidade de forjar
uma alternativa. A solução em curto prazo seria a deposição (via impeachment ou
cassação) de Dilma Roussef e novas eleições, nas quais a classe dominante
esperaria, desesperada, o surgimento de alguém que pudesse relegitimar a política
institucional, um salvador da pátria, que assumisse a imagem de honesto e
anticorrupção (trajeto que vem sendo trilhado por Ciro Gomes), tal como
aconteceu com Fernando Collor de Melo, o que é suficiente para demonstrar o seu
caráter ilusório.
Resta, então, o bloco revolucionário apresentar a única alternativa
possível e viável e que realmente resolve o problema: a auto-organização e autoformação
da população, especialmente as classes desprivilegiadas, as mais prejudicadas
por este estado de coisas, visando constituir uma nova sociedade ao invés de remendar
a atual. Para isso, precisa se fortalecer, aglutinar os descontentes sem rumo,
se aproximar mais da população, não temer a confusão com a ala oposicionista do
bloco dominante e romper definitivamente com qualquer ilusão com a ala governista
e petista. É preciso deixar claro que tanto faz se são “petralhas” ou “coxinhas”,
são farinha do mesmo saco, só a cor é diferente. A crise financeira e a crise
político-institucional estão se arrastando e arrastando também as classes
desprivilegiadas para uma situação de precariedade cada vez mais intensa. A insatisfação
tende a crescer cada vez mais e as ruas tendem a ganhar novas cores e pessoas,
o que vai marcar a retirada de outras. Por isso, mais do que nunca, a formação intelectual
e política da população e sua auto-organização se torna a única forma de se ver
uma luz no final do túnel.
Versão em Áudio:
https://www.youtube.com/watch?v=SVUQ2Fm1Hgw
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