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terça-feira, 19 de novembro de 2019

Precarização e insatisfação dos trabalhadores europeus

Falta de garantias em novos empregos alimenta insatisfação de trabalhadores na Europa

O desemprego europeu está em seu nível mais baixo em uma geração, mas persistem queixas por falta de benefícios e de segurança.

Daniel Michaels Paul Hannon
Nova York | The Wall Street Journal

O mercado de trabalho da Europa está se expandindo. Por que tantos trabalhadores estão zangados, então?

O desemprego na Europa está em seu patamar mais baixo em uma geração. Há 10 milhões a mais de pessoas empregadas hoje do que antes da crise financeira, uma década atrás.

A demanda por trabalhadores continua forte, com mais oportunidades de emprego disponíveis do que em qualquer momento do passado, em toda a União Europeia. Dos 22 países da União Europeia onde há um salário mínimo em vigor, todos exceto a Letônia decretaram aumentos do salário mínimo este ano.

Mas por trás dos números está uma virada que está mudando a Europa. Proporção crescente dos empregos novos é de período parcial, temporária ou representa trabalho autônomo desprovido dos benefícios que os trabalhadores europeus há muito se acostumaram a ter.

No ano passado, 14,2% dos empregos na Europa eram temporários, ante apenas 4% nos Estados Unidos – o que deixa muitos trabalhadores desprovidos de seguros, aposentadoria ou benefícios médicos.

O resultado é um avanço no número de europeus que estão empregados e ainda assim enfrentam dificuldade para manter as contas em dia, enquanto assistem à melhora das vidas de outras pessoas.

“Estão sendo criados empregos, mas esses empregos são muito ruins”, disse Victor Gerardo Ponce Arevalo, um soldador espanhol que teve de deixar de pagar sua hipoteca em 2014, durante a crise do euro, perdeu a casa e agora vive com as duas filhas em um projeto de habitação pública subsidiado.
A proporção de trabalhadores da zona do euro em risco de recair na pobreza subiu a 9,2% em 2018 (depois de atingir um pico de 9,5% em 2016), ante 7,9% em 2007.

Mais de 15 milhões de europeus enfrentam empregos precários, e cortes em seus benefícios desemprego e nos programas sociais dos governos, causados pela crise financeira. Na Espanha, Grécia, Itália e outros países da Europa Ocidental, essa crescente instabilidade alimentou o entusiasmo por movimentos políticos marginais e esvaziou o apoio dos partidos sociais-democratas que representaram os sindicatos por décadas.

Na França, o movimento dos coletes amarelos, que abalou o governo por meses, foi deflagrado no ano passado pela ira dos trabalhadores sobre a alta no custo de vida, o que inclui um aumento no imposto sobre a gasolina que tornou as viagens de casa para o trabalho e vice-versa mais caras.
O emprego dele – uma posição que no passado o teria colocado no rumo de um carreira estável – foi obtido por meio de uma agência de emprego temporário, e trazia o risco de ser cancelado em curto prazo. Na Europa, empregos como esses raramente servem como ponto de partida para o trabalho definitivo ou em período integral, como pode acontecer nos Estados Unidos.

“Não posso fazer planos”, disse Perrotin, que vive em um apartamento de um quarto com seu filho de dois anos.

A mãe de Perrotin, que vive confortavelmente no sopé dos Alpes, jamais imaginou que seu filho teria dificuldade para encontrar um emprego firme. Ela participou dos protestos dos coletes amarelos no ano passado.

A crescente insegurança no emprego que existe na Europa está mudando um continente um dia conhecido por seus direitos trabalhistas sólidos e por um desemprego persistentemente alto. Para as companhias, a flexibilidade crescente na contratação, nos últimos anos, ajudou a reforçar os lucros ou limitar os prejuízos. Durante a crise financeira, isso foi crítico para a sobrevivência de muitas delas. Os economistas apelaram por muito tempo por normas trabalhistas mais flexíveis, a fim de recolocar a economia europeia no caminho do crescimento.

Ao mesmo tempo, a demanda morna da parte dos consumidores deixou a zona do euro dependente de exportações. Depois que as exportações começaram a perder força, este ano, o Banco Central Europeu (BCE) decidiu reiniciar seus programas de estímulo econômico.

O impacto da ascensão do emprego “atípico” na Europa – temporário, de tempo parcial ou outras formas legais de emprego não associadas a um percurso tradicional de carreira – vai além do consumo. Pessoas que trocam frequentemente de emprego ou trabalham apenas alguns dias por semana em geral recebem menos treinamento e menos promoções do que os trabalhadores de período integral dotados de contratos de trabalho de longo prazo, o que limita o avanço da produtividade e as perspectivas de renda.

A dependência maior de trabalhadores temporários na Europa, ante a situação dos Estados Unidos, também expõe as diferenças estruturais entre as duas economias. Ainda que os governos europeus tenham reduzido os obstáculos para a contratação de trabalhadores de período integral, as demissões ainda requerem pagamento de indenizações dispendiosas, o que representa um desincentivo para as companhias europeias na hora de contratar trabalhadores permanentes e de período integral. Nos Estados Unidos, os planos de saúde estão em geral vinculados ao emprego, enquanto na Europa são universais, o que significa que os trabalhadores americanos têm mais incentivo para buscar empregos permanentes de acordo com o Conference Board, um instituto de pesquisa empresarial do Estados Unidos.

A mudança da situação trabalhista na Europa Ocidental vem acontecendo em paralelo com o colapso do equilíbrio político que perdurava há seis décadas na região, sob o qual partidos ligeiramente à direita ou à esquerda do centro se alternavam no poder, ou governavam em coalizão. Isso foi substituído em muitos países por uma instabilidade política que não se via desde a década de 1930.
“Os trabalhadores que perdem a segurança no emprego e as aposentadorias se sentem traídos”, disse Charles Verhoef, presidente da Zelfstandigen Bouw, uma organização sem fins lucrativos que ajuda os operários de construção da Holanda que perderam seus empregos de período integral a se tornarem empreiteiros e trabalhadores autônomos. “Eles sentem não ter coisa alguma a perder e começam a recorrer ao voto de protesto”.

Os trabalhadores temporários em muitos casos favorecem pequenos partidos de inclinação esquerdista que promovem programas como seguro-desemprego e creches, disse Paul Marx, professor de ciência política na Universidade de Duisberg, em Essen, Alemanha.

Os trabalhadores temporários tendem a rejeitar os partidos sociais-democratas estabelecidos, ligados aos sindicatos, porque o foco deles está principalmente nas preocupações dos trabalhadores de período integral, como por exemplo aposentadoria em idade relativamente baixa, disse Marx.

A virada europeia na direção do emprego atípico resulta de medidas governamentais para relaxar as leis trabalhistas rígidas, e dos esforços dos empregadores para aproveitar a flexibilidade criada nas regras.

Os países prósperos do norte da Europa por volta da virada do século decidiram flexibilizar as normas trabalhistas rígidas que vigoraram por todo o período pós-guerra, porque a globalização estava prejudicando sua competitividade. Hoje, quase 27% dos trabalhadores da Alemanha e quase 47% dos trabalhadores da Holanda trabalham em tempo parcial.

Alguns europeus apreciam o emprego flexível. John Tuerlings trabalhou por 33 anos para uma construtora na Holanda, começando aos 15 nos, e ficou assustado quando seu emprego desapareceu, uma década atrás.

“Eu não sabia o que viria a seguir”, ele recorda. Agora ele diz amar a liberdade do trabalho autônomo. Tuerlings prosperou graças às suas “mãos de ouro”, que ele mostra erguendo os dedos fortes e desgastados. “E eu sei como divulgar meu trabalho. Outros artesãos às vezes encontram dificuldades para conseguir trabalho”.

Porque ele não vai poder contar com uma pensão de empresa, Tuerlings dentro de alguns anos planeja vender sua casa, que é grande, comprar uma menor e viver dos lucros. “Minha casa é minha aposentadoria”, ele disse.

Na França, por muito tempo um dos países com leis trabalhistas mais favoráveis aos empregados, o uso de trabalhadores temporários por empresas subiu para 16,2% do total de empregados no país em 2018, ante 13% em 2009 – avanço suficiente para que o presidente Emmanuel Macron tomasse medidas algumas semanas atrás para limitar a dependência das companhias quanto à mão de obra temporária.

Macron e outros líderes europeus não foram capazes de transformar os empregos atípicos em postos de trabalho de período integral dotados de benefícios. Embora as respostas dos governos à disparada no desemprego europeu uma década atrás tenham variado, um traço comum foi um relaxamento das regras de segurança no emprego.

As reformas permitiram que empresas demitissem trabalhadores de tempo integral e contratassem temporários, mas isso não resultou em elevação no número de contratados para postos integrais, como se esperava. Na Holanda, a proporção de trabalhadores com emprego em tempo parcial subiu a 20,1% em 2018 ante 16,4% em 2009; na Itália, a alta foi de 10,8% para 16,5%.

Os países mais pobres do sul da Europa tentaram repetidamente combater o desemprego elevado e persistente. Em 1984, a Espanha desregulamentou os contratos de trabalho temporários, tentando romper o controle que os sindicatos do país haviam adquirido sobre o emprego na época de Franco. O trabalho temporário cresceu muito, especialmente nos setores de construção e hospitalidade, que passaram por expansões.

Depois que a crise financeira explodiu e a Espanha caiu em recessão, em 2008, os trabalhadores temporários, facilmente demissíveis, foram descartados rapidamente. O desemprego disparou para quase 27% em 2013. De lá para cá, a proporção caiu para 14,2% - mas com a ajuda de contratos de trabalho de duração cada vez mais curta.

A Espanha tinha a maior proporção de trabalhadores temporários da Europa no ano passado, 26,4%, de acordo com os dados mais recentes da União Europeia. Mais de um quarto dos novos contratos de trabalho espanhóis têm duração de menos de uma semana, e cerca de 40% deles duram menos de um mês, de acordo com pesquisas comandadas pelo economista Florentino Felgueroso.

Antes que a recessão de 2008 eclodisse, Miriam Suarez limpava 13 quartos de hotel em Barcelona em uma jornada diária de trabalho de oito horas, e recebia almoço durante uma pausa de 20 minutos. O emprego dela, não sindicalizado e arranjado por meio de uma agência de temporários, ainda assim era coberto por um acordo coletivo negociado por um sindicato que lhe garantia um pagamento mínimo por hora e lhe propiciava renda mensal de 1,3 mil euros (US$ 1,43 mil).

As mudanças nas leis trabalhistas causadas pela crise do euro em 2012 liberaram os hotéis para abandonar o acordo coletivo e estabelecer termos. Hoje, Suarez diz que limpa até 25 quartos em uma jornada diária de trabalho de cinco horas, e ganha um euro por quarto. Ela não recebe almoço nem pausa para almoço, e ganha cerca de 700 euros por mês.

“Agora não temos tempo nem para beber um copo de água”, disse Suarez, que afirmou ter sofrido lesões nos braços e costas devido ao trabalho e ao estresse. Ela terminou demitida depois de tirar uma licença médica.

Suarez expressou sua frustração votando em abril no Podemos, um partido de extrema esquerda que dirigiu sua campanha a trabalhadores como ela. “Não acredito mais nos políticos”, ela disse.
Em poucos lugares o deslocamento econômico se combinou à desilusão política de forma mais poderosa que no Reino Unido.

O mercado de trabalho britânico é visto como uma história de sucesso, nos últimos 10 anos. O índice de desemprego chegou perto de um recorde de baixa no começo deste ano. A proporção de adultos empregados atingiu os 76,1% em setembro, a marca mais alta desde que essa estatística começou a ser acompanhada, em 1971.

A maior parte desse crescimento aconteceu em forma de trabalho atípico, de acordo com a Resolution Foundation, uma organização independente de pesquisa cujo foco é melhorar as condições de vida das pessoas de baixa e média renda. Dois terços dos empregos criados no Reino Unido de 2008 para cá são atípicos, e variam de trabalhadores “on demand”, que têm contratos mas nenhuma garantia quanto ao número de horas que trabalharão, a trabalhadores autônomos, estimou a Resolution Foundation em janeiro.

Essas mudanças no mercado de trabalho contribuíram indiretamente para o resultado na votação no referendo sobre a saída britânica da União Europeia [brexit], em 2016, de acordo com Thiemo Fetzer, economista da Universidade de Warwick.

Fetzer disse que seu exame do que influenciou a votação do brexit demonstra que empregos menos seguros e de remuneração mais baixa resultaram em uma alta no número de britânicos que dependiam do Estado para manter as contas em dia. E isso também os deixou mais vulneráveis aos cortes dos gastos sociais pelo governo.

Fetzer constatou que o apoio ao brexit cresceu significativamente nos distritos mais prejudicados pelos cortes, depois de verem uma debilitação anterior de seus mercados de trabalho.

Organizadores sindicais dizem que o avanço dos empregos precários, cortes nos gastos governamentais e redução no apoio aos trabalhadores de renda mais baixa estabeleceram as bases para o resultado.

“É como se o país estivesse dizendo ao Parlamento que os cidadãos não foram beneficiados, e eles não querem saber”, disse Liane Groves, do sindicato Unite, que representa trabalhadores de diversas ocupações.

“Esses empregos tiram todo o poder dos trabalhadores”, disse Kristiyan Peev, 29, faxineiro na Universidade de Notingham. “Você não tem muito a dizer sobre coisa alguma”.

Na atual campanha eleitoral britânica, todos os partidos defendem redução nas medidas de austeridade.

Na França, Macron realizou uma série de reuniões com cidadãos para ouvir suas queixas, uma decisão que ajudou a atenuar os protestos do movimento dos coletes amarelos.

“Nós não vivemos, sobrevivemos”, disse Chantal Perrotin, que aderiu ao movimento perto de Lyon depois de ver os problemas enfrentados por seu filho, Yoann, o bancário.

Yoann, que estudou finanças por dois anos depois de concluir o segundo grau, se candidatou a empregos em bancos mas sua única oferta veio de um agência de trabalho temporário.

Ele começou em março sob um contrato de curta duração e logo sentiu o aperto financeiro. Seu salário mensal líquido de 1,3 mil euros lhe deixava apenas 150 euros, depois de cobrir as despesas básicas com o aluguel e comida, para bancar sua família – ele, a namorada e o filho e dois anos.
Antes de começar no banco, ele recebia seguro-desemprego e ganhava quase a mesma coisa que seu novo salário líquido, disse Perrotin. E o emprego também cria despesas, como ternos e o custo do carro, ele afirmou.

Perrotin disse que gostaria de comprar uma casa, mas não consegue uma hipoteca. “Os bancos não concedem empréstimos a pessoas que têm empregos temporários”, ele disse.

Porque estudou finanças, Perrotin disse compreender que as companhias e o emprego precisam evoluir. “Não estou interessado em manter um emprego por toda a vida”, ele disse. “Mas precisamos desenvolver uma maneira de dar benefícios e propiciar empréstimos aos trabalhadores temporários”.

No final de setembro, a agência de trabalho temporário o informou de que seu contrato não seria renovado. “Eu esperava que o trabalho levasse a um contrato permanente”, ele disse. “Mas estava preparado caso isso não acontecesse”. Ele está de volta ao seguro-desemprego.
 Adrià Calatayud contribuiu para este artigo, em Barcelona.
 The Wall Street Journal, tradução de Paulo Migliacci

Leia Mais:
Capitalismo e Desemprego - O Lumpemproletariado na Dinâmica da Acumulação Integral - Nildo Viana

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

A ELEIÇÃO DE DONALD TRUMP E O FIM DO NEOLIBERALISMO PROGRESSISTA



A ELEIÇÃO DE DONALD TRUMP E O FIM DO NEOLIBERALISMO PROGRESSISTA

Nancy Fraser*


A eleição de Donald Trump faz parte de uma série de grandes revoltas políticas que, juntas, sinalizam o colapso da hegemonia neoliberal. Elas incluem a votação pelo Brexit, no Reino Unido, a rejeição das reformas do então primeiro-ministro Matteo Renzi, na Itália, a campanha de Bernie Sanders pela nomeação como candidato do Partido Democrático, nos Estados Unidos, e o crescente apoio à direitista Frente Nacional francesa, dentre outras. Embora sejam diferentes em ideologia e objetivos, estas insurreições eleitorais compartilham a mesma meta: todas elas rejeitam a globalização corporativa, o neoliberalismo e o establishment político que os promove. Em todos estes casos, os eleitores disseram “Não!” à combinação letal de austeridade, livre comércio, débito predatório e empregos precários e mal pagos, elementos que caracterizam o capitalismo financeiro dos dias atuais. Seus votos são uma resposta à crise estrutural desta forma de capitalismo, que se tornou patente a partir do colapso quase total da ordem financeira mundial em 2008.

Até recentemente, no entanto, a principal resposta à crise foi o protesto popular – dramático e intenso, certamente, mas em grande medida efêmero. Os sistemas políticos, em contraste, pareceram relativamente imunes, sendo ainda controlados por funcionários partidários e pelas elites do establishment, ao menos em Estados capitalistas poderosos, como os Estados Unidos, o Reino Unido e a Alemanha. Hoje, contudo, o impacto eleitoral reverbera em todo o mundo, incluindo as grandes capitais financeiras do mundo. Os que votaram em Trump, assim como os que votaram pelo Brexit e contra as reformas na Itália, revoltaram-se na verdade contra os grandes donos da política. Torcendo o nariz para o establishment partidário, repudiaram o sistema que erodiu sua qualidade de vida ao longo dos últimos 30 anos. A surpresa não é que tenham feito isso, mas que tenham demorado tanto tempo.

Ainda assim, a vitória de Trump não é unicamente uma revolta contra as finanças globais. O que seus eleitores rejeitaram não foi simplesmente o neoliberalismo, mas o neoliberalismo progressista. A expressão pode soar como um oxímoro, mas é um alinhamento político real e perverso que explica os resultados da eleição norte-americana e, talvez, alguns dos desenvolvimentos políticos em outras partes do mundo. Nos EUA, o neoliberalismo progressista é uma aliança entre, de um lado, correntes majoritárias dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBT) e, do outro lado, um setor de negócios baseado em serviços com alto poder “simbólico” (Wall Street, o Vale do Silício e Hollywood). Nesta aliança, as forças progressistas se unem às forças do capitalismo cognitivo, especialmente à “financeirização”. Embora involuntariamente, o primeiro oferece ao segundo o carisma que lhe falta. Ideais como diversidade e empoderamento, que poderiam em princípio servir a diferentes fins, hoje dão brilho a políticas que destruíram a indústria e tudo aquilo que antes fazia parte da vida da classe média.

O neoliberalismo progressista foi desenvolvido nos Estados Unidos ao longo das três últimas décadas, tendo sido ratificado pela eleição de Bill Clinton em 1992. Clinton foi o principal arquiteto e defensor dos ideais dos “Novos Democratas”, o equivalente americano do “Novo Trabalhismo” de Tony Blair. No lugar da coalização à la New Deal entre trabalhadores sindicalizados do setor industrial, afro-americanos e classes médias urbanas, Clinton forjou uma nova aliança entre empresários, a classe média dos subúrbios, novos movimentos sociais e juventude, levando-os a proclamar juntos sua boa fé moderna e progressista, sua aceitação da diversidade, do multiculturalismo e dos direitos das mulheres. Ao mesmo tempo em que apoiava estas ideais progressistas, o governo Clinton cortejava Wall Street. Entregando a economia à Goldman Sachs, ele desregulou o sistema bancário e negociou acordos de livre comércio que aceleraram o processo de desindustrialização. Isso significou o fim do cinturão da ferrugem (o “Rust Belt”), outrora a maior fortaleza da democracia social do New Deal, que corresponde à região que na última eleição entregou a vitória a Donald Trump. O cinturão, assim como os novos centros industriais do sul, sofreu um grande baque à medida que a financeirização se desenvolveu ao longo das últimas duas décadas. Continuadas por seus sucessores, incluindo Barack Obama, as políticas de Clinton degradaram as condições de vida de toda a classe trabalhadora, mas especialmente a dos funcionários do setor industrial. Em suma, o clintonismo carrega uma grande parcela de culpa pelo enfraquecimento dos sindicatos, pela queda dos salários reais, pela crescente precariedade das condições de trabalho e pelo surgimento da família com dois provedores.

Aliás, conforme sugerido pelo último item, o ataque à segurança social foi reinterpretado por meio de um discurso emancipatório carismático, emprestado dos novos movimentos sociais. Ao longo dos anos, à medida que o setor industrial ruía, o país ouviu falar muito de “diversidade”, “empoderamento” e “não discriminação”. Ao identificar “progresso” com meritocracia, em vez de igualdade, o discurso igualou o termo “emancipação” à ascensão de uma pequena elite de mulheres “talentosas”, minorias e gays na hierarquia corporativista exclusivista. Esta compreensão individualista e liberal de “progresso” gradualmente substituiu o entendimento de emancipação mais abrangente, anti-hierárquico, igualitário, sensível às questões de classe e anticapitalista, que prosperou nos anos 1960 e 70. À medida que a Nova Esquerda sucumbia, sua crítica estrutural da sociedade capitalista desapareceu, e o pensamento individualista e liberal característico de nosso país se reafirmou, abalando imperceptivelmente as aspirações dos “progressistas” e autodeclarados esquerdistas. O que selou o acordo, no entanto, foi o fato de tais acontecimentos terem sido simultâneos à ascensão do neoliberalismo. Um partido que apoie a liberalização da economia capitalista é o parceiro perfeito para o feminismo corporativo e meritocrático focado em “assumir riscos” e “superar as barreiras da discriminação de gênero no trabalho”.

O resultado foi um “neoliberalismo progressista” que misturou ideais truncados de emancipação com formas letais de financeirização. Foi esta a mistura que os eleitores de Trump rejeitaram. Dentre os que foram deixados para trás neste admirável mundo novo e cosmopolita estão os operários, mas também gerentes, pequenos empresários, e todos aqueles que dependem da indústria do cinturão da ferrugem e do sul, bem como as populações rurais devastadas pelo desemprego e pelas drogas. Para estas populações, os danos causados pela desindustrialização foram acrescentados aos insultos do moralismo progressista, que os acusa frequentemente de serem culturalmente atrasados. Rejeitando a globalização, os eleitores de Trump também repudiaram o cosmopolitismo liberal que a ela associavam. Para alguns (embora de maneira alguma isto se aplique a todos), não foi difícil culpar, pela deterioração de suas condições de vida, a cultura do politicamente correto, as pessoas negras e as latinas, os imigrantes e os muçulmanos. Aos olhos deles, as feministas e os poderosos de Wall Street são figuras semelhantes, perfeitamente reunidas na pessoa de Hillary Clinton.

O que tornou possível esta percepção foi a ausência de uma esquerda genuína. Apesar de comoções periódicas, como o Occupy Wall Street, que acabou não durando muito tempo, há décadas a esquerda não se apresenta como uma força estável na política dos Estados Unidos. Também não havia qualquer narrativa de esquerda compreensível, que poderia relacionar as queixas legítimas dos apoiadores de Trump a uma crítica abrangente da financeirização, por um lado, e a uma visão antirracista, antimachista e anti-hierárquica da emancipação, por outro. Igualmente devastador foi o fato de que as possíveis relações entre novos movimentos trabalhistas e sociais foram simplesmente ignoradas. Apartados um do outro, estes dois polos indispensáveis para uma militância viável de esquerda chegaram a ser vistos como antíteses.

Foi assim pelo menos até o início da notável campanha pelas primárias de Bernie Sanders, que lutou para reuni-los, embora tenha enfrentado certa resistência inicial da parte do movimento Black Lives Matter. Dinamitando o senso comum neoliberal em vigência, a revolta de Sanders foi o equivalente democrata ao que ocorria com Trump entre os republicanos. Enquanto Trump ainda estava lutando pela aprovação do establishment republicano, Bernie chegou muito perto de derrotar a sucessora ungida de Obama, cujos lacaios controlavam todas as alavancas do poder no Partido Democrata. Entre si, Sanders e Trump obtiveram a aprovação da grande maioria dos eleitores americanos, mas apenas o populismo reacionário de Trump sobreviveu. Trump venceu com facilidade seus rivais republicanos, incluindo os que eram favorecidos por grandes doadores e chefes do partido, mas a insurreição pró-Sanders foi efetivamente minada por um Partido Democrata muito menos democrático. No momento das eleições gerais, uma alternativa de esquerda havia sido efetivamente solapada. O que sobrou foi o “pegar ou largar” da escolha entre o populismo reacionário e o neoliberalismo progressista. Quando a chamada esquerda se resolveu em prol de Hillary Clinton, o rumo dos acontecimentos já estava traçado.

Esta é uma alternativa que a esquerda teria de recusar. Em vez de aceitar os termos apresentados a nós pelas classes políticas, que opõem emancipação a proteção social, deveríamos trabalhar no sentido de redefini-los, tendo como apoio a crescente repulsa da sociedade contra a ordem atual. Em vez de nos aliarmos ao ideal da financeirização-com-emancipação contra a proteção social, deveríamos construir uma nova aliança entre emancipação e proteção social, contra a financeirização. Neste projeto, que se alinha ao de Sanders, emancipação não significaria diversificar a hierarquia corporativa, mas antes aboli-la. Da mesma forma, prosperidade não significaria aumento de valor acionário ou lucro corporativo, mas a disponibilização a todos os cidadãos dos requisitos materiais necessários para uma vida confortável. Esta combinação continua sendo a única resposta digna e vitoriosa na conjuntura atual.

Eu não derramo lágrimas pela derrota do neoliberalismo progressista. Certamente, há muito o que temer de uma administração Trump racista, anti-imigrantes e antiecológica. No entanto, não deveríamos entrar em luto nem pela implosão da hegemonia neoliberal, nem pelo desmantelamento do poder do clintonismo sobre o Partido Democrata. A vitória de Trump foi uma derrota para a aliança entre emancipação e financeirização. Mas sua presidência não oferecerá nenhuma resposta à crise atual, nenhuma promessa de um novo regime, nenhuma hegemonia segura. O que veremos, em vez disso, é um interregnum, uma situação instável de abertura em que novas mentes e corações poderão ser conquistados. Nesta situação, não há apenas perigo, mas também oportunidade: é a chance de construir uma nova nova esquerda.

Se isso ocorrerá ou não depende, em parte, de uma reflexão profunda da parte dos progressistas que apoiaram a campanha de Hillary Clinton. Eles terão de deixar de lado a cômoda, mas falsa narrativa de que perderam para um “grupo de deploráveis” (racistas, misóginos, islamofóbicos e homofóbicos) ajudados por Vladimir Putin e pelo FBI. Eles terão de reconhecer que têm sua parcela de culpa, ao sacrificar a causa da proteção social, do bem estar material e a dignidade da classe trabalhadora em prol de uma falsa compreensão de emancipação, definida em termos de meritocracia, diversidade e empoderamento. Eles terão de refletir profundamente sobre como podemos transformar a economia política do capitalismo financeiro, revivendo o chamado de Sanders por um “socialismo democrático” e descobrindo o que isto pode significar no século 21. Terão, acima de tudo, de se dirigir às massas que elegeram Trump – ao menos àquela parcela que não é composta por racistas ou extremistas de direita, mas é igualmente vítima de um sistema efetivamente “fraudado”. Estes cidadãos podem e devem ser recrutados para um projeto antineoliberal de uma esquerda renovada.

Isto não significa que teremos de nos calar sobre as urgentes questões colocadas pelo racismo e pelo machismo. O que teremos de fazer é mostrar como estas antiquíssimas formas de opressão encontram nova expressão e terreno nos dias de hoje por meio do capitalismo financeiro. Rebatendo a falsa noção de uma cisão irreconciliável, devemos relacionar os preconceitos sofridos pelas mulheres e por minorias étnicas às dificuldades enfrentadas pelos eleitores de Trump. Desta forma, uma esquerda revitalizada poderia lançar as bases de uma nova e poderosa coalizão, comprometida com a luta em prol de todos os oprimidos.






* *Nancy Fraser é professora de filosofia e política na New School for Social Research (Nova York) e autora, mais recentemente, de "Fortunes of Feminism: From State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis" ("Fortunas do Feminismo: do Capitalismo de Estado à Crise Neoliberal", em tradução livre) pela editora Verso em 2013. Artigo publicado originalmente na revista Dissent Magazine.
Tradução: Henrique Mendes

sábado, 21 de setembro de 2019

A União Operária contra Partidos e Sindicatos - Otto Rühle

Linhas de Orientação para a AAU-E* 

Otto Rühle

junho de 1921

A. AAU-E [1] é uma organização unitária política e econômica do proletariado revolucionário.
A AAU-E luta pelo comunismo, socialização da produção das matérias primas, dos meios de produção e das forças produtivas, assim como dos bens de consumo que deles são produto. A AAU-E quer estabelecer a produção e a repartição planificadas em substituição da produção e da repartição capitalistas atuais.
O fim último da AAU-E é a sociedade em que todo o Poder foi abolido, o caminho para esta sociedade passa pela ditadura do proletariado, que é a vontade dos operários determinando exclusivamente a organização política e econômica da sociedade comunista graças à organização dos conselhos.

4. As tarefas mais urgentes da AAU-E são:

a) destruição dos sindicatos e partidos políticos, principais obstáculos à unificação da classe proletária e ao ulterior desenvolvimento da revolução social, que não pode ser tarefa de partido ou sindicato;
b) união do proletariado revolucionário nas empresas, células de produção, fundamento da sociedade futura. A forma de toda a união é a organização de empresa;
c) desenvolvimento da consciência de si e da solidariedade dos trabalhadores;
d) preparação de todas as medidas que serão necessárias para a edificação política e econômica do comunismo.

5. A AAU-E rejeita todos os métodos reformistas e oportunistas de combate, opõe-se a qualquer participação parlamentarista e aos conselhos de empresa legais, pois tal participação significa sabotagem da ideia dos conselhos.

6. A AAU-E rejeita fundamentalmente todos os chefes profissionais. Tais chefes funcionaram só como conselheiros.

7. Todas as funções nas AAU-E são voluntárias.

8. A AAU-E considera o combate de libertação do proletariado não como um assunto nacional, mas como uma tarefa internacional. Por isso se esforça por conseguir a reunião do conjunto do proletariado mundial numa internacional dos conselhos.


Notas:

* Estas teses foram apresentadas pelos distritos de Saxe Oriental e de Hamburgo à 4ª Conferências da AAUD (União Geral dos Trabalhadores da Alemanha) - Junho de 1921. Foram adoptadas como definitivas pela 1ª Conferência Autônoma da Oposição em Outubro de 1921.

[1] AAU-E - União Geral dos Trabalhadores - Organização Unitária. Ela foi uma das duas uniões operárias que reuniam conselhos operários durante a Revolução Alemã. A AAU era ligada ao KAPD (Partido Comunista Operária da Alemanha), do qual Rühle fez parte e redigiu seu programa (incluindo a crítica dos partidos políticos em geral e por isso ele se autodeclarava um "não-partido), apesar do nome. Devido a divergência sobre a ação que deveria ser efetivada na Rússia no encontro da Internacional Comunista (a posição de Gorter e da maioria é que era preciso participar do congresso e articular uma oposição internacional ao bolchevismo e Rühle, depois de um debate com Lênin, que leu trechos do seu livro O Esquerdismo, A Doença Infantil do Comunismo, resolver retornar da Rússia e não participou do congresso), houve uma cisão entre Gorter (que era um dos mais destacados militantes do KAPD) e Rühle, que foi expulso do partido e aglutinou conselhos operários numa nova União Operária, a AAU-E. Após a derrota da Revolução Alemã, Gorter e Rühle voltam a se reunir numa organização revolucionária de comunistas de conselhos. 

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Marx: Uma Ideologia do Estatismo ou a Legitimação de uma mentira?


Resultado de imagem para IDEOLOGOS
Uma ideologia do estatismo
(seguido de comentário crítico de Nildo Viana)
Legitimação de uma burguesia de Estado não veio de Lênin, mas do próprio Marx




"Os proletários não têm nada a perder numa revolução comunista, além de seus grilhões. Proletários de todos os países, uni-vos!" (Marx e Engels).


LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES *

especial para a Folha


Escrever algo novo sobre o "Manifesto" é uma pretensão que esse artigo não tem. Quero apenas levantar alguns pontos provavelmente já tratados por outros. Sem dúvida, o "Manifesto" não é, nem se destinava a ser, um escrito estritamente teórico, mas de militância política. Esse objetivo, amplamente atingido, talvez tenha sido uma das razões de seu êxito. A vantagem do "Manifesto", em matéria de difusão, sobre outros escritos de Marx e Engels (M&E) deve-se à combinação hábil (mas superficial) de uma interpretação da evolução da história, da descrição de aspectos da industrialização e da situação do trabalho na Inglaterra com uma doutrina política militante recheada de frases de efeito, mas de difícil comprovação empírica: "Na sociedade burguesa, o passado domina o presente; na sociedade comunista, é o presente que domina o passado". "Nossos burgueses, não contentes em ter à sua disposição as mulheres e as filhas dos proletários, sem falar da prostituição oficial, têm o singular prazer em se cornearem uns aos outros." Segundo P. Johnson, algumas das frases mais famosas do "Manifesto" não vieram de M&E: de Karl Shapper teria vindo: "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!"; de Marat: "os trabalhadores não têm pátria" e os "trabalhadores não têm nada a perder, a não ser suas cadeias". Ademais, do ângulo comercial, trata-se de um livro pequeno, barato, acessível em matéria de preço e compreensão para os milhões de trabalhadores que aderiam aos sindicatos e partidos de esquerda. Além disso, era aceito por todas as tendências marxistas e um investimento editorial seguro, com mercado garantido e sem direitos autorais.

Os marxistas, especialmente os que não passaram da leitura do "Manifesto", tendem a relacionar a força do "Manifesto" ao fato de ter dado bases científicas ao socialismo (daí a tese do "socialismo científico"). O socialismo não resultaria mais (ou apenas) de uma vontade política, de um repúdio moral ao mundo burguês, mas de um desenvolvimento fatal de leis econômicas ligadas a uma filosofia da história que trazia também um método de interpretação. Desse ponto de vista, o "Manifesto" é modelar: mistura observações econômicas e sociológicas corretas com outras que não são nem falsas nem verdadeiras porque são inespecíficas e, assim, irrefutáveis. É o caso da afirmação de que a história da humanidade é a história da luta de classes, cientificamente tão válida como dizer que a história da humanidade é o desenvolvimento da tecnologia, da cooperação dos homens entre si ou do conflito entre religiões.

Outras vezes, seguem-se conclusões que não derivam das proposições anteriores ou proposições contraditórias diante do que havia sido dito antes, tal como a afirmação de que a mesma burguesia, que em páginas anteriores é a classe dinâmica e revolucionária, seria apenas um "agente passivo e inconsciente do progresso da indústria". Mas o êxito do "Manifesto" vem também da parte formal, do estilo adotado, ou seja, o tom apocalíptico, profético, irônico, indignado, auto-suficiente, nada acadêmico e muito adequado para a mobilização política. Desse ângulo, poucos escritos foram tão perfeitos.

O início do "Manifesto" começa com uma síntese do papel revolucionário e civilizatório da burguesia na modernização do mundo: "Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. (...) Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos países. Para o desespero dos reacionários, ela retirou da indústria sua base local". Os marxistas mais empedernidos podem dizer que M&E já haviam previsto a globalização... se bem que talvez não endossassem a conclusão de que "a burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras".

Mas subitamente a exaltação da ação civilizatória da burguesia e do colonialismo é deixada de lado. O "Manifesto" passa a apontar os malefícios do capitalismo. A classe capaz de levar a civilização aos quatro cantos do mundo e para dentro de seus próprios países deve desaparecer. Aqui vem uma das teses centrais no pensamento marxista: a revolta das forças produtivas contra as relações de produção e de propriedade. E por quê? Porque as forças produtivas liberadas não mais favoreceriam a expansão de relações de propriedade burguesa. A única evidência oferecida no "Manifesto" seriam as crises, que destruiriam regularmente parte das forças produtivas e da massa de produtos. É aí que entra o proletariado salvador. Como um messias, sofredor sob o capitalismo, ele se levantaria para conduzir a humanidade ao paraíso. Mas o raciocínio é falho do ponto de vista lógico, para não falar da prova dos fatos. M&E citam a ocorrência das crises econômicas como um fator desencadeador da revolução.

Não discutamos a evidência de que sob o capitalismo há crises. Acontece, porém, que acontecimentos econômicos não encontram a mesma expressão política. Historicamente, nenhum regime socialista resultou de uma crise econômica, mas de eventos políticos e militares (guerras e crises institucionais profundas). Crises econômicas (e políticas) no mais das vezes conduzem é a regimes ditatoriais de direita. Do ponto de vista lógico, como conciliar a ideia de aumento constante da produção (e do consumo) com o crescente aumento da miséria de uma massa cada vez maior de pessoas, quer dizer, com a diminuição geral do poder de compra? "O trabalhador cai no pauperismo... (A burguesia) não pode exercer o seu domínio porque não pode assegurar a existência de seu escravo (...)". Note-se que M&E não estão se referindo a uma crise econômica súbita, mas a um processo contínuo de empobrecimento marchando junto com o aumento da produção e dos lucros capitalistas.

Essas contradições (não-dialéticas) do "Manifesto" atormentaram os intelectuais marxistas. Longas discussões (e comparações com outros escritos, em especial "O Capital") foram travadas para saber se se trataria da pauperização relativa ou absoluta do proletariado. Uma das soluções foi introduzir o papel do mercado externo para explicar que uma parte minoritária do proletariado (a "aristocracia operária") se beneficiaria com as migalhas que cairiam da mesa farta da burguesia devido à exploração dos povos coloniais. Finalmente, diante da evidências do aumento geral do padrão de vida das classes trabalhadoras sob o capitalismo, o tema da pauperização caiu no esquecimento.

Mas não cremos que o sucesso do "Manifesto" deva ser avaliado somente (ou principalmente) em termos da correção de suas interpretações e previsões. Nenhuma doutrina se impõe pela validez científica de seu corpo de idéias, mas dos interesses sociais a que acaba servindo. O êxito do "Manifesto" não se deve às suas "verdades", mas a outros fatores.

Começou servindo a uma parte do movimento operário, especialmente a social-democracia da Europa do Norte. No entanto, as lideranças sindicais, mais pragmáticas, assim que obtiveram um espaço no sistema de poder das sociedades capitalistas, logo se desinteressaram pelas complicadas e esotéricas análises da "intelligentsia ligada à classe operária". O marxismo foi saindo do movimento sindical, mas encontrou novos porta-bandeiras: deslocou-se para as universidades. Deixou de ser o marxismo militante de uma "intelligentsia" marginal (como era o próprio Marx). Transformou-se na ideologia de um segmento da intelectualidade de classe média burocrática, dando origem ao marxismo acadêmico. Já nos países em que os partidos comunistas chegaram ao poder, transformou-se na doutrina oficial da nova classe dominante que controlava o partido-Estado.

Entendo que esses desenvolvimentos não aconteceram por acaso. O marxismo (e o "Manifesto", sua melhor vulgarização) servem admiravelmente bem para a legitimação (e ocultação) do poder de uma burguesia de Estado e de uma intelectualidade (quer dizer, dos que têm saber, instrução, informação) na sua disputa com a burguesia privada e com as estruturas de poder e riqueza decorrentes do mercado. Pela ótica marxista, todas as desigualdades sociais e políticas vêm da propriedade privada. É como se fora do mercado (ou seja, no aparelho estatal, na igreja, no Exército, nas universidades, nos partidos, nos sindicatos etc.) não houvesse dominação ou, se houvesse, derivaria da existência do capital e desapareceria com a estatização dos meios de produção.

O estatismo não veio do leninismo ou do stalinismo, mas do próprio marxismo. Vale a pena citar as principais medidas de transição para o socialismo propostas no "Manifesto": expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra em proveito do Estado; centralização do crédito, dos transportes em mãos do Estado; multiplicação das fábricas e dos instrumentos de produção pertencentes ao Estado, trabalho obrigatório para todos e, antecedendo Trotsky, organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura.

Essas propostas devem ser lembradas quando a esquerda "não-stalinista", defensora do "verdadeiro socialismo" (que não seria o "socialismo real"), argumenta que o estatismo soviético seria um desvio das idéias de M&E. Muito antes de qualquer outro, Bakunin havia posto o dedo na ferida, ou perto dela. Falando de Marx, escreve: "Trata-se de um comunista autoritário, um partidário da libertação e da reorganização do proletariado pelo Estado. Consequentemente, de cima para baixo, pela inteligência e o saber de uma minoria esclarecida que professa, bem entendido, o socialismo e exerce, a seu proveito, uma autoridade legítima sobre as massas estúpidas e ignorantes".




A LEGITIMAÇÃO DE UMA MENTIRA

NILDO VIANA**


Esse texto do Leôncio Martins Rodrigues é ruim e equivocado. O título do texto é apenas uma estratégia de chamar a atenção, pois, no fundo, o que o autor faz é discutir o Manifesto Comunista e só no final aborda o suposto estatismo do marxismo. 

E em quê ele se baseia para dizer que a ideologia do estatismo é algo do marxismo e tentar recusar a afirmação de que isso não é uma concepção de Marx e Engels? Nada além de uma passagem do Manifesto ComunistaAlém de desconsiderar toda a produção teórica além desse texto-manifesto, e de desconsiderar o processo de evolução intelectual de Marx (ele ainda não havia aprofundado vários aspectos, entre os quais a questão da exploração capitalista, sendo que a teoria do mais-valor vai ser produzida posteriormente), e diversos problemas analíticos (não entender, por exemplo, o significado histórico da burguesia e, por conseguinte, a posição de Marx a respeito dela), o autor ainda usa apenas uma passagem do Manifesto Comunista para fazer sua afirmação. 

Ora, o mesmo autor, quando escreveu sobre Lênin, encontrou dezenas de afirmações, vários textos e livros para mostrar sua "ideologia estatista". Em Marx, consegue apenas um pequeno trecho do Manifesto Comunista. E esse pequeno trecho é interpretado de forma equivocada, pois é descontextualizado e nem sequer busca entender o que é "estado" no contexto citado, e nem relaciona com a ideia defendida anteriormente que é o proletariado (a classe inteira, em sua totalidade, e que nessa época era a maioria da população nos países capitalistas já consolidados, como a Inglaterra), que toma o Estado para si e não partidos ou outras organizações. 

Além disso, o autor simplesmente desconsidera o prefácio no qual Marx afirma que as medidas  provisórias (justamente as citadas por Leôncio Martins Rodrigues, o autor do texto) que foram apresentadas estavam superadas depois da experiência autogestionária da Comuna de Paris. Ou seja, o único trecho que o autor conseguiu achar em Marx em que haveria "estatismo" é descontextualizado, mal interpretado, etc., e, ainda por cima, foi superado pelo próprio Marx... 

Logo, é um texto muito ruim, equivocado e que somente leitores desatentos ou que não conhecem a obra de Marx poderiam levar a sério.

(Texto postado no Facebook em resposta a postagem do texto anterior).

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* Leôncio Martins Rodrigues é professor do departamento de ciência política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

** Nildo Viana é professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFG (Universidade Federal de Goiás).

segunda-feira, 24 de junho de 2019

O Direito à Revolução



O Direito à Revolução
                           Pierre Leroy



Hoje, vivemos num mundo que nos impõe a alienação total da vida. O mundo capitalista nos rodeia, nos cerca, nos dirige, nos sufoca. Poucos resistem. O que significa a resistência, a luta? Significa não dobrar-se totalmente diante da alienação e da coisificação total da vida. Mas mesmo o mais revolucionário dos indivíduos está preso ao mundo mercantil, burocrático e competitivo que nos envolve. Aliás, o revolucionário sofre mais do que qualquer outro indivíduo, pois ele tem a consciência das suas necessidades, da sua insatisfação, da alienação. Um revolucionário é como Prometeu acorrentado: não está apenas “preso” como as demais pessoas, mas está também sendo cotidianamente ferido por um animal alado, ele não está apenas preso, pois também sente a dor da consciência da prisão e da agressão que esta lhe traz.

A luta, a resistência, é um direito autêntico dos seres humanos. Os que não lutam são os que se acomodaram ao mundo. Eles sofrem outros tipos de sofrimentos mas sofrem. O seu sofrimento não é causado pela consciência da alienação mas pela alienação cotidiana que lhe é imposta. A luta do revolucionário autêntico traz a consciência de sua alienação, mas ela significa uma margem de liberdade. No modo de vida burocrático, mercantil, e, consequentemente, fútil, de nossa sociedade, o único espaço para a liberdade é a práxis revolucionária. Esta, entretanto, quando é feita em agrupamentos políticos que reproduzem no seu interior o modo de vida burguês perde o seu caráter revolucionário e deixa de representar para o indivíduo um espaço de liberdade. Uma associação revolucionária só manteria o seu caráter revolucionário construindo uma nova sociabilidade no seu interior, instaurando a solidariedade, a ajuda mútua, a ação coletiva, a vontade revolucionária.

Sem dúvida, muitos gostam de ler os autores revolucionários, mas poucos são aqueles que aceitam o desafio de executar uma práxis revolucionária. Esta traz, obviamente, represálias, inveja, conflitos cotidianos. A revolução não é coisa para covardes. Os covardes que se dizem revolucionários só fazem discurso pseudorrevolucionário nos “locais apropriados” e outros só o fazem quando lhes é conveniente.

A revolução é, tanto para os revolucionários quanto para os que não são conscientemente revolucionários, um direito autêntico, ou seja, deve ser praticada. Se no reino da mercadoria e da burocracia existe a alienação total, então existe também a insatisfação total. O que falta, esta é a grande pergunta, para que esta insatisfação total se transforme em revolução total?

A resposta deixa todos perplexos: um acontecimento explosivo. Toda revolução foi desencadeada por um acontecimento (coletivo, ou seja, que envolve vários indivíduos) explosivo e assim a revolução em estado latente se manifestou ou em termos marxistas a guerra civil oculta se transformou em guerra civil aberta. Ele, no entanto, só pode ocorrer devido as condições sociais, tanto a insatisfação social quanto crises e situações que a aumentam, faltando apenas a faísca para provocar o incêndio. Este acontecimento explosivo tem que ser significativo para a população e, portanto, não inclui formação de guerrilhas nas zonas rurais, que significa apenas o auto-isolamento de grupos vivendo de sua imagem burocrática da revolução. O acontecimento explosivo, além de significativo, para não ser uma faísca natimorta, pressupõe condições como a insatisfação e seu aumento, que ocorre graças a processos sociais de intensificação da exploração, miséria, etc., e/ou de sua consciência. Como já dizia o maior profeta revolucionário de todos os tempos: é preciso acrescentar a consciência da vergonha ou miséria para que elas se tornem explosivas e que o sentido da transformação seja o construtivo e não o destrutivo.

Portanto, a tarefa do movimento revolucionário hoje é, além do seu trabalho cotidiano, criar acontecimentos explosivos e as condições necessárias para a efetivação da revolução proletária. Neste sentido, tanto a ideia de um “detonador da revolução” dos marxistas esquerdistas, quanto a ideia de “exemplo pela ação” são relativamente corretas. Apesar da importância da luta cultural, a revolução não virá através do processo de “conscientização”. Esta faz parte da luta de classes em geral e é uma das determinações do processo de transformação radical da sociedade. Ela não serve apenas para aumentar o número de indivíduos envolvidos diretamente com o movimento revolucionário e sim para criar um processo de clarificação que expressa uma consciência antecipadora que se torna fundamental atingindo as classes exploradas e, consequentemente, aumenta as possibilidades de criação de acontecimentos explosivos que poderão desencadear a revolução autogestionária. Assim, o inconsciente coletivo torna-se consciência revolucionária. O direito à revolução se manifesta, então, na prática revolucionária e com sua concretização se decreta o fim do reino da mercadoria, da burocracia e da alienação. É neste momento que emerge um mundo novo, um mundo livre. Nasce, desta forma, como já dizia Marx, o grande profeta revolucionário, o reino da liberdade ou, como disseram outros profetas revolucionários, a autogestão.


domingo, 23 de junho de 2019

O Vento ou a Vida (O Modo Capitalista de Vida Como “Modo de Vida Fútil”)






O Vento ou a Vida
(O Modo Capitalista de Vida Como “Modo de Vida Fútil”)

Pierre Leroy


O capitalismo superdesenvolvido da Europa Ocidental, EUA e Japão cria o que podemos chamar de “modo de vida fútil”. Ele cria uma ALIENAÇÃO TOTALIZANTE DO SER SOCIAL e também a “FUTILIZAÇÃO” DA VIDA. O mundo da mercadoria anula todas as potencialidades humanas criando um tipo de homem que é um ser-para-o-consumo. Entretanto, ainda existe nos homens uma vontade de realizar atividades autônomas não mediadas pelo mundo da mercadoria, pelos meios de comunicação e por toda esta panaceia eletrônica e burocrática. Tanto a futilização da vida quanto a insatisfação que surge com ela se manifestam em todos os aspectos da vida: do trabalho ao lazer. O capitalismo superdesenvolvido cria uma monstruosa sociedade mercantil mecânica e burocrática.
O DIREITO AO PRAZER AUTÊNTICO FOI DESTRUÍDO NAS SOCIEDADES TOTALITÁRIAS DA EUROPA OCIDENTAL. Essas sociedades são totalitárias não porque possuem um Estado ditatorial que destruiu as liberdades políticas e democráticas, porque existe censura ou porque não se pode viajar sem permissão das autoridades. O tipo de totalitarismo a que me refiro é muito mais desumano e degradante. É a alienação totalitária da vida social. Nada escapa, da política nacional ao cotidiano estamos presos numa alienação generalizada.
Marx ficou horrorizado com a alienação do trabalho. Se estivesse vivo hoje, diante da alienação DA VIDA, certamente, o que muitos estão fazendo atualmente, se suicidaria. O fetichismo das mercadorias generalizou-se ao ponto de criar uma reificação do homem. O homem se tornou uma coisa como outra qualquer. Não apenas os outros homens são para mim uma coisa, mas eu mesmo passo a me sentir e me tratar como uma coisa, uma mercadoria, ALGO DESTITUÍDO DE VONTADE E DE CAPACIDADE. Assim, as relações sociais são deformadas e coisificadas, tornando-se fúteis, vazias, sem significado. Marx, o maior profeta revolucionário de todos os tempos, disse tudo: quanto mais TEMOS menos SOMOS.
As sociedades totalitárias criaram, ao lado da futilização da vida, uma futilização da prática, da contestação, da luta política. Juntamente com isso temos uma sensação de impotência predominante na sociedade. Isto é a autoconsciência de nossa “incapacidade”, de nossa alienação. Mas é, na verdade, uma transferência da nossa alienação na vida social para a atividade política, o que significa sua reprodução e, portanto, o elogio da alienação.
Os grandes profetas revolucionários da humanidade (Marx, Freud, Bloch, Fromm, Marcuse) sempre nos deixaram duas opções: socialismo ou barbárie (Engels, Rosa Luxemburgo, Cornelius Castoriadis); a utopia ou a morte (René Dumont), eros ou tanatos (Freud, Marcuse), mas, se eles revelaram uma “consciência antecipadora”, consideramos que a antecipação que se realizou foi a negativa: barbárie, morte, tanatos.
A resistência à sociedade totalitária é explicada e explicável somente pela teoria freudiana. Sigmund Freud foi aquele que nos revelou a existência do inconsciente. A alienação total gera a insatisfação total. O problema é que esta insatisfação total está contida dentro de nós, no inconsciente, e por isso não se transforma em ação, em prática, e, consequentemente, em REVOLUÇÃO TOTAL.
A alienação total da vida (sexual, afetiva, moral, política, etc.) não se transforma em revolução total porque ela não se manifesta ou, nos raros casos em que isso acontece, ocorre de forma individual. A vitória de tanatos (instinto de morte) só acontece porque o “inconsciente coletivo” não pode produzir o novo sem projetá-lo num projeto revolucionário, numa utopia. Ernst Bloch, outro grande profeta revolucionário, estava certo quando disse que não basta a insatisfação, pois é preciso que esta seja acompanhada pela esperança, pela utopia.
Transformar o “inconsciente coletivo” em “consciência coletiva revolucionária” é, pois, a necessidade de nossa época. Entretanto, nós não podemos introjetá-la nas “massas”, porque, nesse caso, elas seriam receptoras passivas de algo exterior, por mais que isto expresse suas necessidades. Seria a reprodução da alienação e não um processo de libertação. Portanto, as “massas” devem-se libertar por si mesmas. O papel que resta aos revolucionários é despertá-la e estar atento para a contrarrevolução. ESSA É A SUA TAREFA MAIS IMPORTANTE, COMBATER O DESEJO DE CAPITALISMO DENTRO DE CADA UM, QUE INTROJETA O QUE LHE DESTRÓI E REPRODUZ INTERNAMENTE ESTA DESTRUIÇÃO, LUTAR CONTRA A CONTRARREVOLUÇÃO.
A história das sociedades totalitárias da Europa Ocidental começa na década de 60. O modo de vida fútil se instala com a ascensão do capitalismo superdesenvolvido. As formas de alienação se generalizam e invadem a vida social. O desencantamento com a participação política institucional não é sinal de despolitização, mas sim de reconhecimento da alienação na democracia política e da falsidade da contestação nos limites institucionais, tal como no triste exemplo do eurocomunismo.
É no final da década de 60 que o “inconsciente coletivo” torna-se “consciência coletiva revolucionária” e isto ocorre em Paris. Em 1968, na cidade onde a luta pela autogestão pela primeira vez invadiu as ruas materializada na Comuna de Paris, os estudantes contestaram a ciência, a educação, a sociedade. Mas não apenas criticaram e combateram o mundo velho; viram também a possibilidade de criação de um mundo novo. Re-afirmaram o projeto utópico da autogestão. A derrota de 1968 se prolonga até os dias de hoje. Uma “nova onda revolucionária”? Isso só será possível quando armados da utopia autogestionária reconquistarmos as ruas e a vida como os operários da Comuna de Paris ou como os estudantes de 68.
Mas a defesa da autogestão é dificultada pelo contra-ataque da alienação, vindo tanto da direita quanto da “esquerda institucional” (e institucionalizada). Nós não podemos produzir nossas próprias ideias políticas, devido nossa “incapacidade”. Devemos comprá-las no mercado, ou seja, nas livrarias, nas universidades, nos partidos políticos, nos meios de comunicação de “massas”, nas grandes revistas, nos grandes jornais, etc. As ideias políticas que compramos são mercadorias e, portanto, não foram produzidas por nós, mas por seres estranhos e hostis com os quais nos deparamos. Essas ideias, consequentemente, não são as nossas, não são as que queremos. Se nós sabemos que nós não queremos estas, então é porque temos a noção de quais ideias políticas nós queremos. A alienação das ideias é a justificativa para todas as outras formas de alienação. O discurso da incapacidade intelectual é o fundamento do discurso da incapacidade total e de todas as relações mercantis e burocráticas que expressam a alienação total da vida social.
Chegamos agora ao cerne da questão: O LIMITE DA SUA IMAGINAÇÃO POLÍTICA É O LIMITE DE SUA AÇÃO POLÍTICA. A sua incapacidade de ultrapassar o mundo atual no plano do pensamento é sinal de sua incapacidade de ultrapassá-lo na prática política. A “consciência antecipadora”, a possibilidade de ver o vir-a-ser, não é só uma questão filosófica, mas também uma posição política e humana. A visão de um mundo novo só é possível rompendo com a atual “visão de mundo” que toma o mundo atual como o único possível, o natural, o universal, ou que pode apenas ser reformado ou transformado gradualmente. O pensamento revolucionário ao se opor ao pensamento conservador apresenta-se como uma posição diante do mundo, uma posição de negação radical e que significa A SUPERAÇÃO DA CONTEMPLAÇÃO TANTO TEÓRICA QUANTO PRÁTICA. AQUELES QUE NEM AO NÍVEL DO IMAGINÁRIO SUPERAM A SOCIEDADE EXISTENTE JAMAIS O FARÃO AO NÍVEL DA PRÁTICA: são conservadores que com base no seu “realismo” disfarçam sua posição.
Nas sociedades totalitárias só nos sentimos “livres” ou com um mínimo de liberdade quando o vento bate em nossos rostos, mas, mesmo assim, ainda que não nos sentimos VIVOS, pois esta é uma LIBERDADE PASSIVA que só se tornará AUTÊNTICA quando se tornar ATIVA e com isso nós passarmos a vivermos nossa vida e construirmos nosso mundo.
Hoje, diante da futilização da vida e do “mundo da futilidade”, vemos apenas o vento. A profecia de Thomas Münzer já nos alertava para isso: ou nós nos rebelamos ou então só veremos o vento. Por isso, hoje a grande questão não é mais “socialismo ou barbárie” e sim “O VENTO OU A VIDA”.
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