ARTIGOS
Marxismo e Proletariado em “História e
Consciência de Classe”, de Georg Lukács
George Lukács é sem sombra de
dúvidas um dos grandes nomes do pensamento marxista. Sua obra é vasta e remonta
a milhares de páginas escritas. Nossa intenção nos limites deste breve ensaio
não é abarcar a trajetória política, intelectual e biográfica deste autor[2]. Objetivamos, isto sim,
analisar o significado de seu controverso livro História e Consciência de Classe para o pensamento revolucionário.
As obras anteriores e posteriores de Lukács escapam completamente a esta
análise e damos duas boas razões para isto: a) as obras anteriores são
pré-marxistas, de matriz kantiana (A Alma
e as Formas) e hegeliana (Teoria do
Romance). Estas são, naturalmente, as principais; b) as posteriores são
pseudomarxistas, pois inspiradas totalmente no assim chamado
“marxismo”-leninismo. Assim, o jovem Lukács, o autor do tempo de História e Consciência de Classe, foi o
que melhor expressou, no campo da teoria marxista, os interesses históricos e
revolucionários do proletariado.
Esta nossa distinção não tem nada
de arbitrária, embora não tenhamos a pretensão de desenvolvê-la neste nosso
ensaio. Isto seria um outro trabalho, muito mais extenso e mais detalhado. O
que fazemos aqui segue a recomendação que o próprio Lukács faz quando analisa o
desenvolvimento das ideias marxistas em História
e Consciência de Classe. Para ele, o marxismo, como método de análise dos
processos sociais e das ideias deve ser aplicado a si mesmo[3]. Ao fazermos isto,
descobrimos que em 1923 Lukács chegou a conclusões revolucionárias, pois, no
momento em que os artigos que compõem o livro foram escritos (1919 a 1922), o
proletariado se encontrava, em vários países europeus, em luta revolucionária
(Revolução Russa em 1917, Revolução Alemã em 1918, Revoluções Húngara e
Italiana em 1919 etc.). História e
Consciência de Classe expressou, em grande medida, de um ponto de vista
revolucionário, este momento da luta proletária. A derrota do movimento
operário significou também o recuo de várias ideias marxistas, Lukács foi um
destes que recuou[4].
Este seu recuo demonstra duas coisas: 1) ele estava correto ao dizer que para
estudar o marxismo, deve-se aplicá-lo a si mesmo, demonstrando que as ideias
marxistas não surgem do nada, mas tem profundo enraizamento social, tal como
todas as ideias; 2) o fato de ele estar correto quanto ao primeiro ponto,
demonstra que vários intelectuais capitulam quando a luta revolucionária é
estrangulada, sendo este o caso de Lukács.
História e Consciência de Classe foi publicado em forma de livro em
1923, sendo os artigos que o compõem escritos nos anos precedentes: “O que é o
marxismo?” (1919), “Rosa Luxemburgo como marxista” (1921), “Consciência de
classe” (1920), “A reificação e a consciência do proletariado” (s/d), “A
mudança de função do materialismo histórico” (1919), “Legalidade e ilegalidade”
(1920), “Notas críticas sobre a Crítica
da Revolução Russa de Rosa Luxemburgo” (1922) e “Observações metodológicas
sobre a questão da organização” (1922). Como afirma o próprio Lukács, a exceção
dos artigos: “A reificação e a consciência do proletariado” e “Observações
metodológicas sobre a questão da organização revolucionária”[5], todos os demais: “(...)
nasceram em sua maior parte em meio ao trabalho partidário, como tentativa de
esclarecer para o próprio autor e para seus leitores questões teóricas do
movimento revolucionário” (LUKÁCS, 2003, p. 51). Trata-se, portanto, de
trabalhos teóricos com vistas ao esclarecimento da prática militante e de
entendimento do processo revolucionário. É dentro deste espírito, que
analisaremos aqui os textos de Lukács, ou seja, como textos que analisam o
processo revolucionário com todas as implicações daí derivadas: questão da
consciência de classe, papel do proletariado, ponto de vista de classe,
organização revolucionária, organização do proletariado etc.
Diante destes esclarecimentos,
interrogamos: quais contribuições História
e Consciência e de Classe traz ao entendimento do processo revolucionário?
De um ponto de vista revolucionário, ou seja, que almeja a transformação
radical das relações sociais capitalistas, quais as contradições e limites
presentes nas proposições de Lukács?
O fenômeno da reificação, a consciência de
classe e a crítica à ciência burguesa e ao marxismo vulgar
Em que pese não se possa concordar
com todas as teses expostas por Lukács em História
e Consciência de Classe, o que demonstraremos mais à frente, é necessário
reconhecer que esta obra é uma importante contribuição à teoria marxista. Não
consiste num mero manual, nem em uma resenha das ideias de Marx e dos
marxistas. Trata-se de obra que apresenta características novas, apresenta
teses inovadoras sob certos aspectos, bem como aprofundamentos em alguns campos
que Marx somente delineou.
Uma possibilidade de análise de
suas ideias no que concerne às inovações que apresenta e aprofundamentos que
promove é seu estudo do fenômeno da reificação. A reificação é uma
característica da produção capitalista de mercadorias. Consiste, na verdade, em
elemento fundante da sociedade capitalista. À medida que o valor, relação
social que regula a produção e circulação, distribuição e repartição de
mercadorias sob o modo de produção capitalista, se generaliza, também o
fetichismo ou reificação que lhe caracteriza organiza não só o processo de
produção de mercadorias, mas o conjunto da vida social, inclusive o processo de
produção de ideias (ciência, filosofia, direito etc.).
Esta é a tese que Lukács visa
demonstrar. A estrutura da sociedade capitalista em seu conjunto é reificada,
ou seja, é fundada num processo geral de alienações múltiplas. Sua análise se
inicia com o estudo do processo de produção de mercadorias, no qual a classe
operária é expropriada. Inicialmente expropriada de seus meios de produção,
depois do controle sobre o processo de trabalho, em seguida do conhecimento
sobre o processo de trabalho. Isto tudo fundado na apropriação privada do
produto do trabalho da classe trabalhadora[6].
O estabelecimento da produção
capitalista desenvolvida consiste em retirar do trabalhador todo o controle
sobre o processo de produção. Este processo, submetido a uma base de “cálculo
racional”, é na produção do produto, parcelado em momentos racionalmente
calculados. Cada trabalhador só produz um valor de uso para a etapa seguinte,
sendo o valor de uso para o consumidor o resultado de uma articulação de vários
trabalhos parciais. O produto do trabalho, o objeto, é, pois, o resultado desta
parcelização ou divisão do trabalho.
Mas não só o objeto-mercadoria é
resultado disto, mas também o próprio sujeito. Este é também mutilado para que
o produto seja produzido. Ele é inserido dentro do processo produtivo como
parte mecânica do conjunto mecanizado. Sua autonomia está totalmente ou quase
totalmente apagada ali dentro. A atividade humana é vista como passível de
erro, ao passo que a atividade mecânica é imparcial e exata.
Segundo Lukács, as relações de
exploração precedem a sociedade capitalista. As relações de produção
pré-capitalistas se caracterizam, em certa medida, pelo fato de os agentes da
produção se reconhecerem como agentes destas relações. Ao passo que no
capitalismo, as relações pessoais entre
as pessoas aparecem mediadas por relações entre objetos, aparecendo ao nível da
consciência como relações entre coisas. Tal característica cria a sensação
de que todos estão submetidos a “leis” rigorosas e impessoais. Pelo menos é
assim que as relações capitalistas se apresentam ao nível da consciência
ordinária, ou seja, como resultado de leis impessoais, amorais, a-históricas
etc. que governam a vida de todos.
Pode-se aqui objetar um excesso de
Lukács ao afirmar que nas sociedades pré-capitalistas os agentes diretos da
produção se reconheciam enquanto tais no processo de trabalho, ao passo que no
capitalismo tal reconhecimento desaparece. O escravo se reconhecia como escravo
dado sua condição de total subserviência ao seu senhor. Um operário pode não
ter esta consciência, por que iludido por certa liberdade jurídica. Ao que tudo
indica, o mais correto é que em todas as sociedades de classe, a naturalização
das relações sociais é algo que garante a normalidade de tais sociedades.
Quando tal naturalidade das relações estabelecidas começa a ser questionada, a
normalidade entra em declínio e um processo de convulsões sociais se
estabelece. Esta, portanto, não é somente uma característica do modo de
produção capitalista, contudo, garante a estabilidade e normalidade deste.
A reificação, pelo contrário, não é mero processo de naturalização das
relações sociais, embora comporte um grau elevado de naturalização, mas sim a
generalização do valor, a estruturação do conjunto da sociedade para a produção
e realização do valor. Trata-se da subordinação das demais esferas da sociedade
à forma de mercadoria, tornando a própria força de trabalho algo separado, uma
mercadoria. O capitalista não compra o trabalhador, tal qual um escravocrata
compra um escravo, mas sim a mercadoria força de trabalho, ou seja, a
capacidade de trabalhar do trabalhador.
A reificação não é, pois, uma mera forma de consciência, mas sim a
maneira como o modo de produção capitalista estrutura o processo de produção e
o conjunto da vida social, política, religiosa, cultural da sociedade. Trata-se
do modo de ser da sociedade capitalista. Esta estrutura reificada da
sociedade se manifesta ao nível da consciência. Tanto a classe operária, quanto
a classe capitalista (para ficar só nestas duas classes) tem uma consciência
reificada que expressa a estrutura reificada da sociedade. O proprietário de
terras que vê ao final de cada ano sua conta bancária engordada pela posse que
tem da terra arrendada imagina que tal renda provém da terra. O banqueiro, que
vive de juros julga que o aumento de sua riqueza deriva de sua posse de
dinheiro. Ambos não podem compreender que tanto a renda da terra, quanto o juro
provém de frações do mais-valor expropriado à classe trabalhadora. Ou seja,
trata-se de formas de consciência reificadas, expressando as relações
reificadas desta sociedade.
Comentando Weber, Lukács afirma
que o capitalismo exige uma racionalização de toda a sociedade. O “cálculo
racional” (expressão de Lukács) é condição para que qualquer empresa
capitalista se desenvolva. Para que esta se desenvolva sem percalços, necessita
também que o próprio Estado se comporte ou aja racionalmente, obedecendo a
regras e leis racionais. A racionalização é, pois, um fenômeno universal dentro
do capitalismo, pois é uma necessidade para uma operação sem transtornos de
todo o sistema. As “leis” da sociedade são reconhecidas como tais e não são
questionadas em nada na organização do processo de trabalho e do conjunto da
vida institucional do capitalismo.
Ou seja, o “fetichismo que adere à
mercadoria”, segundo expressão de Marx, é um processo generalizado dentro da
sociedade capitalista. Sendo a mercadoria o resultado de uma relação social
entre classes sociais, sua maneira reificada de aparecer na consciência se
manifesta como sendo relação entre coisas: terra que gera renda, dinheiro que gera
juros, capital que gera lucros etc. Este processo não se restringe à produção
material, mas é elemento estruturante de toda a sociedade capitalista. Invade a
vida psíquica, moral, política, institucional, cultural, a consciência etc.
Assim, segundo Lukács,
A reificação é, portanto, a realidade
imediata e necessária para todo homem que vive no capitalismo, e só pode
ser superada por um esforço constante e sempre renovado para romper na prática
a estrutura reificada da existência, mediante uma referência concreta às
contradições que se manifestam concretamente no desenvolvimento global, e com
conscientização do sentido imanente dessas contradições para a totalidade do
desenvolvimento (LUKÁCS, 2003, p. 391) (grifos meus).
A reificação é a realidade imediata
que se apresenta a todo ser humano envolvido nas relações sociais modernas. Não
se escapa dela, pois ela institui a totalidade da sociedade capitalista.
Paradoxalmente, a apreensão da totalidade pela consciência é completamente
nublada sob o capitalismo. O todo é tido como incognoscível, inapreensível. A
reificação totalizante da sociedade capitalista determina as partes. A
consciência reificada só consegue apreender as partes e concebe o todo como
incompreensível ou impossível de ser apreendido. Por isto, segundo argumenta
Lukács, a superação da consciência reificada só pode se dar mediante a
superação da reificação estruturante do todo da sociedade.
A sociedade capitalista é fundada
nesta relação totalizante e reificada na qual o controle dos rumos do desenvolvimento
social parecem fugir das mãos de todos e somos governados por “leis” imparciais
que a tudo submetem. Esta forma de perceber os processos sociais é a culminação
do fenômeno da reificação e a sociedade capitalista foi a que conseguiu tornar ao
nível da aparência as relações sociais como se fossem relações entre objetos.
Os sujeitos, os seres humanos, divididos em classes sociais e relacionando-se
reciprocamente entre si, são pegos com as calças nas mãos obedecendo a “leis”
econômicas (apolíticas, amorais, imparciais). O reino da mercadoria exige este
tipo de comportamento, pois fundado numa racionalização (“cálculo racional”) e
burocratização crescente das relações sociais.
No ensaio “Consciência de classe”,
Lukács dá interessante contribuição ao entendimento da relação entre classe
social e consciência de classe. Segundo ele:
Ora, a reação
racional adequada, que deve ser adjudicada a uma situação típica determinada no
processo de produção, é a consciência de classe. Essa consciência não é, portanto, nem a soma, nem a média do que cada
um dos indivíduos que formam a classe pensam, sentem etc. E, no entanto, a
ação historicamente decisiva da classe como totalidade é determinada, em última
análise, por essa consciência e não pelo pensamento do indivíduo; essa ação só
pode ser conhecida a partir dessa consciência (LUKÁCS, 2003, p. 142) (grifos
meus).
O que interessa desta citação é
compreender que o ponto de partida para o entendimento do todo da sociedade não
é o indivíduo, tal como supõe um liberalismo radical (veja, por exemplo, Adam
Smith), mas sim o de classe. A consciência da classe não é, pois, o que pensa o
indivíduo x ou o indivíduo y, mas sim o que a totalidade da classe, devido sua
posição na divisão social do trabalho, seus interesses elabora. A apreensão da
consciência de classe só pode ser percebida se se parte do ponto de vista da
classe e não do indivíduo ou de grupos de interesse dentro da classe. A
totalidade que é a classe condiciona os interesses, os sentimentos, as formas
de pensar, os valores etc. dos indivíduos e não o contrário. Esta percepção de
Lukács é fundamental para a análise das formas de conhecimento, pois dependendo
de qual perspectiva de classe se parta, as conclusões irão variar.
Lukács distingue uma consciência
psicológica de uma consciência de classe. A primeira é a consciência ordinária,
empírica, verificável na execução da vida cotidiana. A segunda é a consciência
(embora fique recalcada e “inconsciente” a maior parte do tempo, sobretudo no
proletariado) que deriva da posição que os indivíduos ocupam na divisão social
do trabalho.
Assim, quando Lukács, ao analisar
o fenômeno da reificação, identificando-o como elemento estruturante da vida
material da sociedade capitalista, acaba por descobrir que a própria
consciência é também reificada. E esta consciência reificada, quanto mais
atrelada à perspectiva, ao ponto de vista de classe da burguesia, mais
afirma-se a si mesma como reificada. Ou seja, o conhecimento do caráter
reificado da consciência não pode ser verificado pela consciência reificada da
burguesia. Esta classe não pode identificar a si mesma como classe que expressa
uma consciência reificada do mundo, justamente por que sua apreensão da
realidade existente é coerente com seus interesses e sua posição na divisão
social do trabalho.
Para Lukács,
Portanto, a barreira que faz da consciência
de classe da burguesia uma “falsa” consciência é objetiva; é a situação da
própria classe. É a consequência objetiva da estrutura econômica da
sociedade, e não algo arbitrário, subjetivo ou psicológico. Pois a consciência
de classe da burguesia, embora possa refletir com clareza sobre todos os
problemas da organização dessa dominação, da revolução capitalista e de sua
penetração no conjunto da produção, deve
necessariamente se obscurecer no momento em que surgem problemas, cuja solução
remete para além do capitalismo, mesmo no interior da experiência da
burguesia (LUKÁCS, 2003, p. 147) (grifos meus).
Esta constatação é evidente, pois
pensar o contrário significa que a burguesia deve abrir mão de sua dominação.
Qualquer reconhecimento por sua parte que a solução dos problemas econômicos e
sociais deva ir além da realidade existente (problema das crises, da exploração
de classe etc.), significa reconhecer que deve deixar de existir. Portanto, o
ponto de vista de classe da burguesia é limitado em essência. Partindo do ponto
de vista da burguesia, da classe capitalista, só é possível conhecer a
realidade até certo ponto. Este é o limite da ciência burguesa. Este é o
“limite intransponível da consciência burguesa”, segundo expressão de Marx.
Sobre a consciência de classe do proletariado, abordarei no próximo tópico.
A divisão social do trabalho, base
da consciência reificada do mundo, se expande a níveis nunca antes observados
na história da humanidade. A divisão de especialidades, a ampliação das
especializações produzem novas classes, ensejando novos interesses, novos
conflitos, complexificando o estudo da consciência de classe. A relação
burguesia/proletariado são o que Lukács denomina de “classes puras” do
capitalismo[7].
A universidade amplia a classe dos intelectuais, o exército, a burocracia
militar, o crescimento das empresas a burocracia empresarial (administradores)
etc. Esta ampliação da divisão do trabalho é acompanhada de uma ampliação sem
precedentes das especialidades e do número de especialistas. Esta fragmentação
da realidade concreta é acompanhada também de uma fragmentação da compreensão
da realidade. O todo, a totalidade é cada vez mais afastada do entendimento.
Cada especialista é doutor em sua área e nada sabe do que o vizinho fala ou
faz. Esta realidade reificada tem implicações profundas na estruturação da
produção das formas mais elaboradas de consciência (a ciência, a filosofia, o
direito etc.).
Lukács, sobre isto, aborda um
último momento da consciência reificada do mundo: a ciência e a filosofia. A
reificação, ou seja, este processo real, concreto que se manifesta ao nível da
consciência como uma característica sui
generis do capitalismo, tem sua formalização definitiva na ciência
burguesa. A economia política, quando surge, coloca-se a si mesma o problema da
totalidade ou a consideração do fenômeno econômico em seu conjunto, por
exemplo, o Tableau Economique de
Quesnay. A partir das obras de Smith e em seguida Ricardo e daí em diante, só
se aprofunda a especialização. Quanto mais formalmente se desenvolve a ciência,
com seus conceitos, epistemologia, estrutura interna do discurso etc. mais
reificada ela se torna, pois afasta de si totalmente a possibilidade da
totalidade, além de circunscrever suas “leis” em sistemas cada vez mais formais
(economia política vulgar, econometria etc.).
A filosofia aparece como uma
tentativa de novamente restituir a totalidade. Contudo, ela é incapaz de fazer
isto, pois opera dentro da estrutura fundada pelas ciências parcelares. Para se
realizar, efetivamente, uma análise que seja fundada no princípio da
totalidade, seria necessário refundar internamente o próprio discurso
científico e a estrutura interna de cada ciência em específico. E a filosofia,
dentro do capitalismo, argumenta Lukács, é incapaz disto, pois ela opera dentro
da epistemologia que as ciências parcelares trabalham. Para Lukács: “(...) uma
modificação radical do ponto de vista é impossível no terreno da sociedade
burguesa” (LUKÁCS, 2003, p. 238). Ou seja, o capitalismo funda esta ciência,
justamente por que ela é expressão da reificação concreta das relações sociais
das quais ela é a formalização necessária. A ciência burguesa (parcelar) é
acorde à parcelização típica da sociedade capitalista. A reificação é, pois, um
fenômeno concretamente observável no terreno mesmo da vida concreta bem como no
nível da elaboração conceitual complexa: ciência e filosofia. Ou seja, uma vida reificada só pode produzir
uma ciência reificada.
A consciência, do ponto de vista
da burguesia, reflete as condições sociais do capitalismo e os interesses daí
derivados. A separação, autonomia e independência das categorias e áreas de
conhecimento típicas da ciência burguesa são expressão da sociedade burguesa:
A aparência dessa autonomia não é, contudo,
um mero “engano” a ser “corrigido” pelo materialismo histórico. Ela é, antes de
tudo, a expressão intelectual e categorial da estrutura social e objetiva da
sociedade capitalista. Anulá-la ou transpô-la significa, portanto, transpor
– intelectualmente – a sociedade capitalista, antecipar sua anulação com a
força aceleradora do pensamento. (LUKÁCS, 2003, p. 424).
Mas a própria crítica (o
“marxismo”) acaba por ceder, em certo momento, também a esta estrutura
reificada do conhecimento. O materialismo histórico-dialético surge e se
desenvolve como antípoda da sociedade capitalista em seu conjunto, portanto, é
crítico também da ciência e da filosofia burguesas. Contudo, em dado momento de
seu desenvolvimento, também o “marxismo” passa a capitular. Lukács utiliza a
expressão “marxismo vulgar” e, em uma ou duas passagens, utiliza o termo
“pseudomarxismo” para designar esta degeneração do materialismo
histórico-dialético[8].
Segundo Lukács,
A questão posta pelo “austromarxismo” a
respeito da separação metódica entre a ciência “pura” do marxismo e o
socialismo é, como todas as questões semelhantes, um falso problema. Pois o
método marxista e a dialética materialista enquanto conhecimento da realidade
só são passíveis do ponto de vista de classe, do ponto de vista da luta do
proletariado. Abandonar essa perspectiva significa distanciar-se do
materialismo histórico, do mesmo modo como adotá-la implica diretamente a
participação na luta do proletariado (LUKCÁCS, 2003, p. 98) (grifos meus).
Ou seja, um dos primeiros
equívocos do marxismo vulgar ou fundamento de seu oportunismo reside em querer
se tornar somente uma forma de interpretação da realidade, uma nova ciência.
Isto é completamente antimarxista, pois materialismo histórico dialético exige
a perspectiva do proletariado e, portanto, o engajamento na luta proletária. Qualquer
separação entre consciência (ciência pura do marxismo) e socialismo é um
equívoco sem tamanho, para não dizer mero e puro oportunismo.
Assim, para Lukács, a raiz do
oportunismo está: “(...) em confundir o verdadeiro estado de consciência
psicológica dos proletários com a consciência de classe do proletariado”
(LUKÁCS, 2003, p. 180). O “marxismo vulgar”, os “oportunistas” são sobretudo os
autores vinculados à socialdemocracia. A crítica de Lukács a estes “marxistas”
é dura. Ele, contudo, não insere aí o pensamento “marxista”-leninista, devido à
influência de Lênin em seu pensamento. Para ele, portanto, os marxistas
vulgares são, sobretudo, os autores de matriz socialdemocrata, criticando um ou
outro ligados a outras correntes ideológicas. Assim, afirmar que o marxismo
vulgar confunde a consciência de classe do proletariado com a consciência
psicológica, quer dizer que abandonam o ponto de vista do proletariado, o ponto
de vista revolucionário, mediado. Ao assumir este posicionamento, fica-se
somente no nível imediato, empírico. Em linguagem militante corrente, fica-se
no nível das reformas e abandona-se a tendência revolucionária, ou seja, é a
socialdemocracia em estado puro.
Para Lukács, o marxismo vulgar: a)
comete o erro já denunciado por Marx ao criticar a economia vulgar: aplica as
“leis” do capitalismo, as categorias historicamente construídas a todas as
sociedades, eternizando a sociedade capitalista e suas categorias; b) reduz as
transformações sociais a mudanças econômicas mecanicamente conduzidas.
Retira-se daqui o papel da “violência” extraeconômica nas mudanças sociais.
Lukács critica, na verdade, o economicismo e dogmatismo do marxismo vulgar.
Estas concepções socialdemocratas
têm implicações também no campo da ação política. A socialdemocracia defende
como estratégia política a conquista do poder de Estado, ao passo que os
marxistas revolucionários concebem o Estado não como um instrumento de luta do
proletariado, um instrumento de poder que deva ser conquistado, mas sim uma
estrutura a ser derrotada pelo proletariado organizado. Faz questão de frisar
que a crítica ao Estado do ponto de vista marxista não tem nada a ver com
anarquismo e que os pseudomarxistas que assim agem são, na verdade,
oportunistas.
Deste modo, se nem a ciência e a
filosofia burguesas nem o marxismo vulgar conseguem apreender adequadamente a
realidade, pois evitam o ponto de vista da totalidade, se apegam ao parcelar e
ao empírico, como estudá-la então? O
ponto de vista de classe da burguesia é ontologicamente limitado, como já
definimos. Em que consiste a superioridade do ponto de vista do
proletariado? É possível apreender o concreto e a sociedade como totalidade?
Marxismo e proletariado
Das considerações que apresentamos
até o momento, a primeira observação que deve ser sublinhada é o fato inegável
de que o estudo da consciência é algo muito mais profundo do que se apresenta à
primeira vista. Derivado disto, o estudo da produção das formas complexas de
consciência (VIANA, 2008), ou seja, da ciência, da filosofia, do marxismo deve
ser entendido como um processo social complexo no qual estão envolvidos
interesses de classe, divisão social do trabalho, luta de classes, conflitos
etc. Não existe, deste ponto de vista, nenhuma forma de conhecimento que esteja
isenta ou separada da totalidade social da qual este conhecimento é parte
instituinte e expressão.
A burguesia em sua luta contra os
resquícios feudais e absolutistas forjou toda uma nova sociedade, tanto do
ponto de vista econômico-social, quanto também na elaboração de conhecimento. A
ciência se apresenta como o conhecimento adequado aos interesses de classe da
burguesia. A própria dinâmica reificada da estrutura econômica da sociedade
moderna cria as condições para a elaboração de interpretações científicas da
realidade, estudando cada ciência uma parte do todo e não tendo condições e nem
aceitando a possibilidade de compreensão da realidade como totalidade. A
burguesia liberou ou elaborou forças sociais que foram necessárias para a sua
vitória sobre os restolhos do passado. As relações que engendrou acabaram por
engendrar também novos sujeitos sociais, dentre eles o mais poderoso é o
proletariado[9].
É somente com a entrada em cena do
proletariado que o conhecimento da realidade social encontra seu termo: com a
perspectiva da classe do proletariado, encontra-se um ponto a partir do qual a
totalidade da sociedade torna-se visível. Com o advento do materialismo
histórico surge, ao mesmo tempo, a
doutrina “das condições da libertação do proletariado” e a doutrina da
realidade do processo total do desenvolvimento histórico. Isso só foi possível
porque, para o proletariado, conhecer com a máxima clareza sua situação de
classe é uma necessidade vital, uma questão de vida ou morte, porque sua
situação de classe só é compreensível quando toda a sociedade pode ser
compreendida; por que seus atos têm essa compreensão como condição prévia,
inelutável. A unidade da teoria e da práxis é, portanto, apenas a outra face da
situação social e histórica do proletariado. Do ponto de vista do proletariado, o autoconhecimento coincide com o
conhecimento da totalidade; ele é, ao
mesmo tempo, sujeito e objeto do seu próprio conhecimento (LUKÁCS, 2003, p.
96/97) (grifos meus).
Depreende-se da citação: a) o
materialismo histórico-dialético, ou seja, o marxismo, só se tornou possível
devido ao surgimento do proletariado como sujeito histórico. Elimina-se aqui a
tese de Lênin (1983) e de Kautsky (s/d) de que o marxismo seja o resultado da
síntese superior de ideias anteriores, a saber: economia política inglesa,
filosofia clássica alemã e socialismo francês; b) pois o marxismo é sobretudo a
“doutrina das condições de libertação do proletariado”[10]; c) isto só é possível
porque para o proletariado, diferentemente da burguesia, o conhecimento da
totalidade da sociedade é uma necessidade vital. A burguesia contenta-se com a
aparência dos fenômenos, por que esta aparência é coerente com seus interesses
de classe. Para o proletariado, pelo contrário, manter-se no nível da aparência
é manter-se acorrentado ao tronco no qual é açoitado cotidianamente. Para o
proletariado só interessa a essência, portanto a totalidade e concreticidade
dos fenômenos sociais; d) o proletariado é, como sujeito histórico, a expressão
da unidade entre teoria e prática. Isto por que ele é o sujeito e o objeto do
conhecimento, da consciência. Para o proletariado, o autoconhecimento coincide
com o conhecimento da totalidade.
Como é fácil
perceber analisando-se a obra de Lukács, a importância dada por ele à questão
da totalidade é lembrada em todo o livro. Todos os artigos que compõem a obra
tem na totalidade uma questão central. Este ponto é tão relevante em suas
considerações, que chega a afirmar:
Não é o predomínio de motivos econômicos na
explicação da história que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência
burguesa, mas o ponto de vista da totalidade. A categoria da totalidade, o
domínio universal e determinante do todo sobre as partes constituem a essência
do método que Marx recebeu de Hegel e transformou de maneira original no
fundamento de uma ciência inteiramente nova (LUKÁCS, 2003, p. 105) (grifos
meus).
O problema a ser
analisado é: o que permite à consciência apreender a totalidade? Como
demonstramos, o ponto de vista da burguesia não permite que tal aconteça.
Partindo-se de sua perspectiva, chega-se no máximo ao conhecimento científico
tal como dado e às antinomias típicas do pensamento burguês:
indivíduo/sociedade; natureza/história; manual/intelectual etc. (LUKÁCS, 2003).
A relação, pois, consciência e perspectiva de classe é questão central em uma
teoria das formas de consciência. Lukács tem o mérito de conseguir situar a
problemática em seu lugar exato. Classe e consciência de classe são elementos
inextrincáveis. O ponto de vista burguês, como demonstramos, satisfaz-se com a
aparência dos fenômenos, com a interpretação parcial e parcializada dos
processos, com a fragmentação total do saber teórico justamente por que esta
aparência é conveniente a seus interesses de classe. Manter-se neste mundo
sensível, empírico é fundamental para a classe capitalista e seus asseclas,
justamente por que não ameaça sua posição de classe. Conhecer a essência dos
fenômenos sob o capitalismo é revelar o ser de classe da burguesia e isto ela
não pode fazer. Por isto, neste ponto, o pensamento burguês tem necessariamente
que esfacelar-se em dezenas de ciências e estas ciências tem de nublar os
processos. É imprescindível, pois, para se compreender o modo de produção
capitalista, posicionar-se no outro campo do espectro político e social. O que
isto nos demonstra é que não se pode, para compreender a totalidade, partir do
ponto de vista do indivíduo x ou y, seja da classe capitalista, seja da classe
operária. Pouco tem a nos dizer a opinião do executivo de empresa, do patrão
específico etc. Da mesma forma, pouco tem a nos informar o posicionamento
político, social, moral etc. do operário x, do camponês y. O ponto de partida
individual é incapaz de apreender a totalidade, pois esta determina, condiciona
o elemento particular.
Nos termos de
Lukács:
O ponto de vista da totalidade não
determina, todavia, somente o objeto, determina também o sujeito de
conhecimento. A ciência burguesa – de maneira consciente ou inconsciente,
ingênua ou sublimada – considera os fenômenos sociais sempre do ponto de vista
do indivíduo. E o ponto de vista do indivíduo não pode levar a nenhuma
totalidade, quando muito pode levar a aspectos de um domínio parcial, mas na
maioria das vezes somente a algo fragmentário: a “fatos” desconexos ou a leis
parciais abstratas. A totalidade só pode
ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma totalidade; e se o
sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem de pensar o objeto como
totalidade. Somente as classes representam esse ponto de vista da
totalidade como sujeito na sociedade moderna (LUKÁCS, 2003, p. 107).
A totalidade não
determina somente o objeto a ser estudado: o modo de produção capitalista, a
luta de classes etc., determina também o próprio sujeito do conhecimento. A
classe operária não é, nesta acepção, mero objeto passivo a ser apreendido pelo
conhecimento, ela própria é o sujeito de tal conhecimento, podemos dizer, da
consciência de classe. Lukács está neste ponto aqui fazendo uma inflexão
profunda na forma de entendimento da evolução da consciência proletária ao que
predominava nos meios “socialistas” de então, profundamente influenciados pela
socialdemocracia e bolchevismo. Segundo estas duas ideologias, o proletariado é
incapaz de, por si mesmo, chegar a uma consciência revolucionária, conseguindo,
no máximo, chegar uma consciência tradeunionista,
ou seja, sindicalista. Quando Lukács afirma que o sujeito do conhecimento é
também o objeto, ele está a afirmar que a consciência de classe do proletariado
só pode ser elaborada por este mesmo proletariado, não tendo nada a ver com
isto os “intelectuais pequeno-burgueses”, segundo a proposição
kautskysta-leninista. O conceito que Lukács forja para expressar esta tese é
que o proletariado é o “sujeito-objeto idêntico”, ou seja, é o sujeito e o
objeto do conhecimento, da consciência de classe.
Outro ponto
fundamental da citação é a discussão apresentada por Lukács de que somente a
classe permite a entendimento da totalidade, pois a própria classe é uma
totalidade. A totalidade determina o sujeito e o objeto do conhecimento,
portanto, o proletariado. Se este deseja compreender a si mesmo, ou seja,
desenvolver sua consciência de classe, deve partir de sua situação de classe e
de seus interesses de classe. Pois, é como classe que o proletariado afronta as
relações estabelecidas. O proletário, como indivíduo, é completamente impotente
diante do capital. Somente como classe, pode o proletariado questionar sua
situação dentro do modo de produção capitalista. Ou seja, somente como classe
em sua totalidade, pode ele questionar a totalidade do modo de produção que o
alija cotidianamente.
Demonstramos no
tópico anterior que o desenvolvimento da consciência de classe da burguesia só
poderia culminar numa forma reificada de consciência, pois é expressão e
justificação desta realidade reificada. As formas mais elaboradas de
consciência: ciência, filosofia, direito etc. são também expressão desta mesma
realidade reificada. Ou seja, as formas de consciência não podem ser separadas
das classes que as produzem.
Viana, em seu
ensaio O Que é o Marxismo?, nos dá
seguinte contribuição:
Acontece
que as relações entre consciência de classe e “interesse de classe” variam de
acordo com as classes sociais e possuem um caráter bastante complexo depois que
o interesse de classe se torna consciente. Os interesses de classe podem tanto
limitar (burguesia) quanto desenvolver (proletariado) a consciência social
(VIANA, 2008, p. 88).
Novamente a consideração de que a determinação
da totalidade é fundamental. Tendo-se consciência disto ou não, dependendo de
onde se parta para se compreender a realidade, ou seja, se da perspectiva
burguesa ou proletária, isto pode dificultar ou facilitar o desenvolvimento da
consciência. Como demonstramos, analisando os aportes de Lukács, a perspectiva
burguesa conduziu a antinomias insolúveis dentro de seu espectro, ao
desenvolvimento do modo de pensar da ciência burguesa, expressão da realidade
reificada que ela constantemente tenta justificar. Disto deriva que a
perspectiva capitalista de elaboração da consciência é completamente incapaz de
apreender a totalidade, a realidade social como um dado “concreto”, ou seja,
como “síntese de múltiplas determinações” (Marx). Portanto, é incapaz de
compreender a essência dos fenômenos sociais. É necessário, pois, inverter em
180° o ângulo de observação. Não se trata, também, de mera inversão mecânica,
mas sim de introdução da totalidade como prisma a partir do qual se vê os
processos sociais. Assim, trata-se de olhar a totalidade da perspectiva do
proletariado, pois este, devido seus interesses de classe, tem a necessidade
vital de ir além do “empírico”, do “dado”, de ir além da “aparência” dos
fenômenos. Somente quando o proletariado, como classe em sua totalidade, se
apresenta assim no cenário político e social, é que se aponta no horizonte
histórico aquelas convulsões sociais incontroláveis e incontroladas chamadas
“revolução”.
Ainda, seguindo
as observações de Viana (2008), aprendemos que: a) o proletariado é uma classe
social do capitalismo, tem, portanto, uma ontologia; b) a ontologia do
proletariado é sua posição na divisão social do trabalho, o que lhe coloca como
uma classe fundamental do modo de produção capitalista caracterizada pelo
processo de produção de mais-valor; c) sua posição na divisão do trabalho e seu
papel nas relações de produção o colocam obrigatoriamente e necessariamente em
relação com outra classe social, a burguesia; d) esta relação é marcada pela
luta, pelo conflito; e) esta luta é derivada do fato de ambas as classes
apresentarem interesses de classe antagônicos; f) os interesses de classe podem
ser tanto interesses imediatos, quanto interesses históricos.
Diante disto,
vejamos. O proletariado tem interesses
imediatos (melhorar suas condições de existência dentro do capitalismo,
aumentar salário, desenvolver formas de organização que garantam que tais
melhorias se efetivem, desenvolver sua consciência de classe etc.). Como interesse histórico, o proletariado tem
diante de si a missão de aniquilar o modo de produção capitalista, a
sociabilidade capitalista, o estado capitalista etc. e neste processo de
aniquilamento das velhas relações que organizam o status quo, o proletariado deve edificar um novo modo de produção,
fundado em novas relações de produção e relações sociais em sua totalidade
(cultura, educação etc.). Interesses imediatos e interesses históricos não
podem ser separados uns dos outros. São, na verdade, parte de um mesmo
processo. O pensamento oportunista (socialdemocrata) é que efetivou tal
separação. Esta, contudo, jamais deixou de existir no seio mesmo da luta
proletária. Toda vez que esta emerge das cinzas das lutas passadas, converte
consistentemente a luta imediata em luta histórica e os interesses históricos
se tornam conscientes à medida que a luta pelos interesses imediatos vai sendo
travada.
O marxismo, como
uma teoria da sociedade, só pode ser compreendido dentro deste espectro de
argumentação. Não é possível analisar o desenvolvimento desta forma de
consciência isolando-o da constituição do proletariado. Lukács reconhece isto
também. Para ele:
A
continuação desse novo rumo tomado pela filosofia clássica e que começava, pelo
menos no que diz respeito ao método, a apontar para além desses limites, em
outras palavras, o método dialético como método da história, foi reservado à
classe que estava habilitada a descobrir em si mesma, a partir do seu
fundamento vital, o sujeito-objeto idêntico, o sujeito da ação, o “nós” da
gênese: o proletariado (LUKÁCS, 2003, p. 308)
O materialismo
histórico-dialético é uma totalidade, pois, com o proletariado. Não o
proletariado “empírico”, como classe determinada pelo capital, mas sim o
proletariado como classe autodeterminada[11], defendendo seus
interesses de classe, organizada e conscientemente em movimento, ou seja, o
proletariado revolucionário. A aplicação do método materialista exige esta
perspectiva, justamente por que ele é a expressão, em termos intelectuais,
deste proletariado. É impossível, pois, separar o marxismo (como método e
teoria) da política como querem alguns certos acadêmicos. O marxismo só pode
ser verdadeiramente aplicado ao estudo de qualquer fenômeno social se tal
perspectiva estiver coerentemente em vista. Esta contribuição de História e Consciência de Classe, também
observada por Korsch (1977), é elemento fundamental, não podendo nunca ser afastada
da consciência, à pena de nada se compreender.
O marxismo é a
doutrina das condições de libertação do proletariado (LUKÁCS, 2003), ou,
segundo expressão mais de adequada de Korsch, o marxismo é a expressão teórica
do proletariado revolucionário (KORSCH, 1977). O proletariado é o
“sujeito-objeto idêntico”, ou seja, é o sujeito e o objeto do conhecimento, é o
próprio sujeito de sua consciência. O marxismo é a expressão no plano teórico
desta consciência do proletariado. A história do marxismo é a própria história
do movimento operário. Engels (1981) já havia observado esta mesma relação em
seu estudo “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”. Em que pese a
linguagem de Engels seja problemática, mas
deve ser compreendida dentro do contexto no qual escreveu, ele observa
que o “socialismo utópico” foi a forma de consciência possível ao proletariado
no início de suas lutas. Um proletariado germinal, no início de suas lutas só
poderia produzir uma forma de consciência também germinal, inicial. Os socialistas
utópicos são a expressão, no plano intelectual, desta aurora do proletariado. O
desenvolvimento da organização, da luta, da consciência de classe do
proletariado tinha de culminar também no desenvolvimento de sua teoria, o
“socialismo científico”, segundo Engels, ou, numa linguagem mais adequada, que
evita confusões: o marxismo ou o materialismo histórico-dialético.
Assim, segundo Lukács, sendo o
marxismo este conhecimento que parte da perspectiva do proletariado, impõe-se a
seguinte conclusão: a perspectiva da totalidade. A evolução social produz em
determinado momento histórico o proletariado. A evolução do proletariado como
classe permite que a condição formal de seu aparecimento na história
converta-se em realização concreta de sua potência, ou seja, o proletariado
evoluindo de classe contra o capital a classe que se desenvolve por si mesma.
Tal condição verificada no plano histórico é perceptível no desenvolvimento da
teoria. De mera utopia, a luta proletária se realiza e ao se realizar, vê-se transcrita
na teoria. Da utopia dos primeiros socialistas, a luta proletária conduziu à
Comuna de 1871. Esta, ao ser transcrita, pode ver-se a si mesma na teoria, o
marxismo. O marxismo é, pois, realização da luta proletária. De um ideal a ser
alcançado, o socialismo converte-se num processo de liberação das forças já
contidas nesta sociedade.
Para rematar esta questão da
relação marxismo/proletariado, permita-me aqui fazer uma extensa citação. Não
se trata de desperdiçar espaço, nem entulhar de citações nosso texto, mas sim
demonstrar como Lukács conseguiu apreender o caráter revolucionário e engajado
do marxismo.
Sendo assim, o materialismo histórico tinha
para o proletariado um valor muito maior do que simplesmente o de um método de
pesquisa científica. Ele era um dos
mais importantes dentre todos os seus instrumentos de luta. Pois a luta de
classes do proletariado significava, ao mesmo tempo, o despertar de sua
consciência de classe. Mas o despertar dessa consciência apresentava-se por
toda parte ao proletariado como consequência do conhecimento da verdadeira
situação, do contexto histórico efetivamente existente. É isso justamente o que
dá à luta de classe do proletariado sua posição peculiar entre todas as lutas
de classes, ou seja, a possibilidade de ele receber, de fato, sua arma mais
eficaz das mãos da verdadeira ciência, do discernimento claro da realidade.
Enquanto nas lutas de classes do passado os mais diferentes tipos de
ideologias, formas religiosas, morais e outras da “falsa consciência” eram decisivas,
a luta de classe do proletariado, a guerra de libertação da última classe
oprimida encontraram na revelação da verdade o seu grito de guerra e, ao mesmo
tempo, sua arma mais poderosa. Ao mostrar
as verdadeiras forças motrizes dos acontecimentos históricos, o materialismo
histórico tornou-se, em virtude da situação de classe do proletariado, um
instrumento de luta. A tarefa mais importante do materialismo histórico é
formular um juízo preciso sobre a ordem social capitalista e desvelar sua
essência. Por isso, o materialismo foi utilizado nas lutas de classe do
proletariado sempre que a burguesia ornava e ocultava a situação real e o
estado da luta de classes com todo tipo de elementos ideológicos, para iluminar
esses véus com os raios frios da ciência, para mostrar quão falsos e enganosos
eles eram e até que ponto podiam contradizer a verdade. Assim, a função mais nobre do materialismo histórico não podia residir
no conhecimento científico puro, mas no fato de ser um ato. O materialismo
histórico não era um fim em si mesmo, era um meio que permitia ao proletariado
esclarecer uma situação e, nessa situação claramente conhecida, agir
corretamente de acordo com sua situação de classe (LUKÁCS, 2003, p.
415/416) (grifos meus).
A revolução
proletária: consciência de classe e organização revolucionária
Como estamos observando, História e Consciência de Classe não é
um livro vulgar. A história da assim chamada “esquerda” está repleta de
manuais, textos simplórios, vulgares sobre o marxismo. A deformação das teses
marxistas é a consequência necessária desta vulgarização da teoria. O marxismo,
de teoria da luta revolucionária do proletariado converteu-se nos labirintos
das ideologias do século XX em mera justificação do status quo. História e
Consciência de Classe não está entre estas simplificações.
Há no jovem Lukács uma compreensão
profunda do caráter revolucionário do materialismo histórico, bem como o
entendimento de que a dialética e o proletariado revolucionário são uma
unidade. O “sujeito-objeto idêntico” do conhecimento é, sobretudo, o
“sujeito-objeto idêntico” da ação. Consciência de classe e classe social não
podem ser separadas, exceto em procedimentos ideológicos, tal como fazem a
ciência burguesa (que separa sujeito e objeto do conhecimento) e o marxismo
vulgar (que, entre outras coisas, separa dialética de socialismo).
No jovem Lukács, estas separações
não tem lugar. Se o proletariado é o sujeito e o objeto de sua consciência,
onde podemos aperceber sua materialização? O proletariado, enquanto classe
determinada pelo capital não expressa seus interesses de classe e, consequentemente,
também não desenvolve sua consciência enquanto consciência de classe. Neste
nível, do ponto de vista da consciência, poderíamos dizer que o proletariado,
melhor dizendo, os indivíduos proletários tem uma “consciência psicológica” de
sua situação. Esta consciência psicológica é aquela que expressa a realidade
reificada da sociedade capitalista. O proletariado, como classe determinada
pelo capital tem uma consciência reificada de sua situação.
Contudo, o que caracteriza a
existência do proletariado é sua situação de classe e esta necessariamente é
conflituosa. Devido sua posição na divisão social do trabalho, seus interesses,
as condições de trabalho, as condições de vida etc. o proletariado é
constrangido a reagir. Os proletários não querem a luta, não desejam entrar em
conflitos que consumirão suas energias, seus parcos recursos, seu tempo e sua
vitalidade, às vezes suas próprias vidas. A reação, a resistência é uma
imposição que a totalidade da realidade reificada do capitalismo impõe ao proletariado.
Um indivíduo proletário diante do capital não expressa qualquer ameaça. Por
mais raivosa que seja determinada reação de um proletário qualquer, esta reação
será completamente impotente e culminará em fracasso para aquele que a
empreende. Isoladamente, um proletário nada significa em termos de luta e
resistência. Assim, a própria situação de classe do proletário o constrange a
agir coletivamente. Esta determinação da luta proletária é uma característica
que o modo de produção capitalista generaliza nos lugares onde se instala.
A luta proletária é, pois,
essencialmente coletiva. E isto não é algo que o indivíduo x ou o indivíduo y
escolha fazer, é algo que a própria situação de classe impõe ao conjunto dos
indivíduos proletários. Ou agem coletivamente ou naufragam isoladamente. Esta é
a única alternativa que resta ao proletariado. Este, quando se coloca em ação,
deixa de ser classe determinada pelo capital e passa a ser classe
autodeterminada, ou seja, que defende seus interesses de classe (imediatos e
históricos). Isto implica que a ação do proletariado é uma ação de classe
(totalizante). O proletariado aspira, pois, a totalidade da sociedade
capitalista. Enquanto totalidade, ou seja, enquanto classe, age em direção à
totalidade do conjunto da sociedade.
Enquanto classe determinada, a
ação proletária implica no desenvolvimento da consciência proletária. Sendo ele
o sujeito e o objeto da ação e do conhecimento, ou seja, o “sujeito-objeto
idêntico”, o proletariado ao se organizar e agir em seu próprio interesse,
desenvolverá também a consciência que corresponde a este tipo de ação e
organização. Na verdade, seria equivocado dizer que primeiro desenvolve a
organização e esta determina o desenvolvimento da consciência. O processo não é
mecânico e automático desta maneira. O que se verifica realmente é a unidade
entre ser e consciência, ou seja, entre classe operária e consciência de classe
operária. Enquanto o proletariado dormita, sendo esmagado cotidianamente pelo
capital, sua consciência de classe também desvanece, ficando restrita ao nível
da “consciência psicológica”, para utilizar expressão de Lukács. À medida que
consegue se colocar diante de seus oponentes como classe independente, este
processo ocorre simultaneamente via organização e consciência da organização.
Organização e consciência da organização e dos interesses de classe se colocam
no conjunto das lutas sociais, definindo o proletariado como ser consciente,
como “sujeito-objeto idêntico”. Assim, não há separação entre as duas coisas,
que são em verdade uma única coisa, o proletariado enquanto ser ativo e
autodeterminado.
O proletariado como classe
determinada pelo capital não expressa, portanto, seus interesses, logo, não
expressa também sua consciência de classe. Dizer que o proletariado é classe
determinada, significa afirmar que ele é organizado para e pelo capital. Este é
o cotidiano da vida no capitalismo. Enquanto classe submetida e conformada com
seu status e situação, o proletariado
está fadado a reproduzir as relações que o degradam. A organização da produção
dentro de uma fábrica, ou melhor, dentro de todas as fábricas é expressão deste
caráter determinado do proletariado enquanto classe que não expressa seus
interesses. Mas esta mesma lógica que é observável no campo da produção propriamente
dita, expande-se para o conjunto da vida social, determinando a política, a
cultura, o consumo, os lazeres etc. Naturalmente que saindo da esfera
produtiva, este caráter reificado, para utilizar expressão de Lukács, da
realidade atinge não só o proletariado, mas um conjunto de outras classes
também (campesinato, trabalhadores domésticos, intelectuais, lumpemproletários
etc.). A totalidade, portanto, da sociedade capitalista expressa os interesses
de classe da burguesia e de suas classes auxiliares. Assim, poderíamos dizer
que no capitalismo, a classe autodeterminada é a burguesia. A organização da
produção, a consciência cotidiana, as ideologias, as instituições etc.
expressam seus interesses de classe e ela luta com todas as armas de que dispõe
(materiais e intelectuais) para perpetuar seu status de classe autodeterminada, ou seja, que age em seu próprio
interesse. A organização da fábrica, do Estado, das demais instituições
(escolas, partidos, sindicatos, igrejas, organizações não governamentais, empresas
comerciais, bancos etc.) reproduzem conscientemente ou inintencionalmente o status quo.
Vê-se, deste modo, que a questão
da consciência de classe não é algo arbitrário e que se expressa de qualquer
forma, a qualquer momento e em qualquer lugar. Trata-se de uma forma de
consciência que necessita de uma certa materialidade onde possa se operar. A consciência de classe da burguesia como
classe autodeterminada é expressa em suas instituições. Melhor, por meio destas
instituições ela consegue fazer valer seus interesses de classe conscientemente
concebidos.
Onde se expressa a consciência de
classe do proletariado? Quando classe determinada, ele está organizado pelo
capital, quando classe autodeterminada, ele está organizado também, mas agora
de maneira independente, autônoma, contra o capital. Quais são as organizações
que o proletariado desenvolveu para fazer valer seus interesses de classe? Como
Lukács responde esta questão?
Segundo Lukács:
No entanto, na unidade dialética da teoria e da práxis,
que Marx reconheceu e descreveu na luta emancipatória do proletariado, não pode
haver uma simples consciência, nem como “pura” teoria, nem como simples
exigência, como simples dever ou norma de ação. A exigência também tem sua
realidade. Isto é, o nível do processo histórico que imprime à consciência de
classe do proletariado um caráter de exigência, um caráter “latente e teórico”,
deve se transformar em realidade correspondente e, enquanto tal, intervir de
maneira ativa na totalidade do processo. Essa
forma da consciência de classe proletária é o partido (LUKÁCS, 2003, p.
127) (grifos meus).
E linhas à frente, ele afirma:
Nesse processo,
que o partido não pode nem provocar, nem evitar, cabe, portanto, ao partido o
papel elevado de ser o portador da
consciência de classe do proletariado, a consciência de sua missão histórica
(LUKÁCS, 2003, p. 128) (grifos no original).
Lukács não deixa de observar o
processo mais ou menos espontâneo da luta de classe revolucionária do
proletariado. Ao analisar a concepção de Rosa Luxemburgo sobre a relação
organização/espontaneidade, apresenta a tese de que não compete ao partido
organizar a revolução (tal como defende o marxismo vulgar), mas sim que a
expressão da organização revolucionária é o partido. Ele está aqui,
naturalmente, operando com os dilemas de Rosa Luxemburgo e ele parece partilhar
tais dilemas, mas se posicionando claramente com relação ao papel desta
organização como sendo aquela capaz de ser a expressão dos interesses de classe
do proletariado. Para Lukács, portanto, proletariado como classe
autodeterminada e partido político são uma única e mesma coisa, pois este é o
portador da consciência daquela e a consciência de classe, como já observamos,
é o proletariado organizado como classe e em luta em defesa de seus interesses.
Lukács defende esta tese em todos
os artigos do livro, desde os escritos em 1919, até os de 1922. Que momento
histórico é este para a luta proletária? O fim da Primeira Guerra Mundial
implicou numa sublevação proletária à escala do continente europeu. Significou,
é verdade, o ressurgimento do movimento operário revolucionário desde os
escombros da Comuna de Paris de 1871. Foram necessários ao proletariado quase
50 anos para que se recolocasse novamente no conjunto das lutas sociais como
classe autodeterminada, encaminhando processos radicais de enfrentamento com a
burguesia e as forças do Estado.
No contexto das lutas do início do
século XX, o debate que se apresentava no continente europeu à classe operária
era a relação entre as organizações da classe operária e as organizações que a
representavam (partidos políticos de esquerda e sindicatos). Estas duas
organizações se colocavam no campo político das lutas proletárias como o Estado
se coloca para a burguesia, ou seja, como a organização política necessária
para a defesa de seus interesses de classe. O debate entre proletariado
auto-organizado e partidos políticos e sindicatos foi deveras encarniçado. As
revoluções deste período, ou seja, a Revolução Russa (1917-1921), a Revolução
Alemã (1918-1923), a Revolução Húngara (1919), a Revolução Italiana (1919) etc.
são a expressão mais radicalizada do proletariado agindo como classe
autodeterminada, ou seja, a partir de suas próprias organizações, defendendo
seus próprios interesses.
Dentro destas revoluções, se
acentuou o debate em torno da natureza das organizações partidárias.
Primeiramente o partido socialdemocrata, que já vinha sendo criticado a
bastante tempo, sendo o cisma de 1914 na socialdemocracia alemã a expressão
mais acabada da degeneração desta organização, e em seguida o bolchevismo, que
só será plenamente desmascarado no decorrer da década de 1920). Além do debate
sobre a organização partidária, também os sindicatos passaram a ser objeto de
inúmeras críticas, pois se colocavam, geralmente, em oposição ao proletariado
quando agia sem o consentimento e muitas vezes a pesar das determinações dos
sindicatos.
O que o proletariado desenvolveu
como forma de organização que expressasse sua consciência de classe foram os
conselhos operários ou como eram conhecidos na Rússia, os soviets. Os soviets ou
conselhos foram a forma de auto-organização que o proletariado desenvolveu ao
longo de suas lutas. Esta forma de organização, expressão da consciência de
classe do proletariado criou situações políticas em Europa que fugiam
completamente ao controle das instituições burguesas (Estado, polícia,
sindicatos etc.). As revoluções que convulsionaram o mundo por anos seguidos
tiveram nestas organizações o esteio, a base, o alicerce no qual o proletariado
fazia valer seus interesses de classe, ou seja, manifestava sua consciência de
classe.
Este debate não podia passar ao
largo das observações de Lukács, que, como disse ele próprio no prefácio de
1922, os ensaios presentes em História e
Consciência de Classe são o resultado de trabalho partidário, de militância
política. Lukács esteve diretamente envolvido nos levantes operários na
Hungria, também em Alemanha etc. O movimento socialista europeu se debatia com
esta questão: partidos e sindicatos ou conselhos operários?
Como vimos, Lukács apresentou sua
concepção. Para ele, o modo de manifestação da consciência de classe do
proletariado é o partido político, o portador da consciência revolucionária.
Contudo, sua posição com relação a isto, apresenta certa ambiguidade, pois ele
também defendia que:
O conselho operário revolucionário, que
nunca deve ser confundido com sua caricatura oportunista, é uma das formas
pelas quais a consciência da classe proletária lutou incessantemente desde seu
nascimento. Sua existência, seu desenvolvimento permanente mostram que o
proletariado já está no limiar de sua própria consciência e, assim, no limiar
da vitória. Com efeito, o conselho operário é a superação econômica e
política da reificação capitalista. Assim como, na situação posterior à ditadura,
ele deve superar a divisão burguesa de legislação, administração e jurisdição,
na luta pelo poder ele é chamado a reunir, de um lado, a fragmentação espacial
e temporal do proletariado e, de outro, a economia e a política, numa unidade
verdadeira da dialética entre interesse imediato e objetivo final (LUKÁCS,
2003, p. 190/191) (grifos meus).
Ou seja, aqui não é mais o partido
o portador da consciência de classe do proletariado, mas sim uma outra
organização, o conselho operário. Nesta acepção, afirma Lukács que a
organização necessária do proletariado que porá fim ao capitalismo são os
conselhos operários. Conselhos e partido se excluem mutuamente. Ao que indica,
a interpretação de Lukács não concebe a questão desta forma. No artigo “Notas
críticas à Crítica da Revolução Russa de Rosa Luxemburgo”, este escrito já em
1922, ou seja, quando Partido Comunista Russo já havia se estabelecido no
poder, Lukács apresenta uma tese, no mínimo confusa. Para ele: “O controle
consciente e organizado da ordem econômica só pode ser efetuado
conscientemente, e o órgão de sua
efetuação é justamente o Estado proletariado (sic), o sistema dos sovietes”
(LUKÁCS, 2003, p. 505) (grifos meus). Ele tem em mente aqui, obviamente, que o
que se passava na Rússia era a vitória do proletariado, a primeira revolução
gloriosa. As informações sobre o que ocorria na Rússia eram escassas e o
bolchevismo se apresentava ao mundo como uma organização efetivamente
proletária. Nesta acepção, sua tese de que o “Estado Proletário” russo efetivamente
conduzia o proletariado ao estabelecimento do comunismo é algo aceitável tendo
em vista o contexto histórico[12].
Contudo, acreditamos que este é
somente uma parte da verdade para explicar esta fé e esta confusão de Lukács no
partido político e sobretudo, acreditar que havia em Rússia um Estado
proletário e que este era o “sistema de sovietes”. Lukács não percebia até este
momento a total contradição nos termos entre Estado e conselhos operários,
tomava um pelo outro. Neste campo, Lukács acabou por reproduzir os limites da
consciência reificada que ele tanto se esforçou em criticar. Mas para além
deste aspecto, pesa na explicação um elemento muito mais importante: a
perspectiva de classe.
Utilizando o próprio procedimento
de Lukács, ou seja, de aplicar o materialismo histórico a ele mesmo, chega-se á
seguinte conclusão. Lukács, por ser membro do Partido Comunista Húngaro, por
estar envolvido nos debates comuns ao partido naquele momento, pelo contexto
histórico ser marcado por um avanço ainda sem precedentes na luta operária, ou
seja, pela emergência de movimentos revolucionários em vários países etc.
expressará este conjunto de conflitos e contradições.
O primeiro problema na leitura
lukasiana é não distinguir o partido como sendo uma organização que não
expressa os interesses de classe do proletariado, nem muito menos foi elemento
de desenvolvimento dos soviets na
Rússia e dos conselhos em Alemanha, Hungria etc. O partido político, já nessa
época (uma socialdemocracia degenerada e desacreditada e um bolchevismo
caminhando a passos largos rumo à degeneração) se colocava como instituição no
interior da sociedade capitalista. O desenvolvimento dos partidos políticos
desde fins do século XIX significou um aumento na divisão social do trabalho e
o fortalecimento de uma classe social específica: a burocracia partidária[13]. As ideologias
socialdemocratas (já criticadas por Lukács como sendo um marxismo vulgar) e
bolchevique (que ele identifica como um autêntico marxismo) justificam e dão
sentido aos interesses de classe da burocracia partidária. Assim, quando Lukács defende que o partido é o portador da consciência
de classe do proletariado, está aí a confundir a consciência de classe do
proletariado com a consciência de classe da burocracia. Ao afirmar que Estado proletário
e sistema de sovietes se equivalem, está a confundir os interesses de classe da
burocracia com os do proletariado. Uma leitura marxista do marxismo de Lukács
tem de conduzir a esta conclusão.
O contexto histórico explica,
portanto, somente parte dos equívocos de Lukács. A outra parte deve ser
atribuída a esta perspectiva de classe burocrática que ele não conseguiu romper
neste momento de ascensão da luta revolucionária e que com o refluxo das
revoluções operárias tornou mais claro ainda esta concepção de Lukács, pois
aderiu totalmente ao bolchevismo. A defesa do partido e Estado proletário como
equivalentes a soviets atesta seus
erros de interpretação. E estes demonstram, sobretudo, o lugar de onde ele
fala, ou seja, o ponto de vista de classe que ele inintencionalmente acaba por
expressar. Este ponto de vista de classe fica ainda mais claro em seu posfácio
de 1967, sua autocrítica, que abordaremos agora.
Últimas palavras (a
autocrítica)
Em 1967, num famoso prefácio a História e Consciência de Classe, Lukács
conclui assim sua apreciação sobre o livro: “(...) considero História e Consciência de Classe um
livro errôneo” (LUKÁCS, 2003, p. 49). Onde se situam os erros? Quais erros são
estes? Por que Lukács apresenta tão drástica apreciação sobre um de seus livros
mais influentes?
Seu biógrafo Lichtheim (s/d) faz a
seguinte afirmação:
Tão logo
arrefeceu a tempestade que desabara sobre História
e Consciência de Classe, Lukács começou a aparecer sob o disfarce de um
perfeito marxista-leninista ortodoxo, que se havia recuperado de suas
aberrações “idealistas”. Um estudo apreciativo de Lênin (1924) foi seguido de
uma cautelosa revisão crítica da obra de Bukharin sobre o materialismo
histórico (1925) e por duas compridas e doutas resenhas-ensaios sobre Lassalle
(1925) e Moses Hess (1926) (...) (LICHTHEIM, s/d, p. 73).
Se Lukács anuncia claramente em
1967 que História e Consciência de Classe
é fundado em erros, já em 1924, ou seja, um ano após a publicação do livro, já
fazia estudos que contraditavam com as teses de seu livro de 1923. Se até 1923
Lukács tinha uma relação ambígua com o leninismo, pois influenciado em grande
medida pelas teses luxemburguistas, após este momento, adere
indiscriminadamente ao “marxismo-leninismo ortodoxo”, segundo expressão de seu
biógrafo. Ortodoxo aqui não tem, naturalmente, o mesmo sentido da palavra
“ortodoxo” em seu ensaio de 1919, contido em História e Consciência de Classe: “O que é o marxismo ortodoxo”.
Neste ensaio, o termo “ortodoxo” remete à aceitação do método dialético como
correto e na constatação de que toda tentativa em superá-lo, significou
retrocessos em relação aos patamares já alcançados. A adoção do
“marxismo-leninismo” significa o abandono deste ponto de vista, pois tal
ideologia representa uma das principais deformações do marxismo, passando como
atualizações e aperfeiçoamentos.
O prefácio de 1967 é breve e
sintético. Constitui em sublinhar os pontos com os quais Lukács discorda de
seus posicionamentos de juventude. Dentre os vários pontos mencionados por ele
neste prefácio, descaremos dois, que nos parece ilustrativo da influência que o
pensamento burocrático passam a ter em suas concepções e os quais História e Consciência de Classe
representava uma certa rejeição. Tal rejeição, como já notamos, é ambígua, pois,
efetivamente ele nunca conseguiu se livrar das teses partidárias, portanto,
burocráticas.
Recusa seu conceito de
“sujeito-objeto idêntico”. O abandono desta concepção significa que Lukács
adere às teses políticas típicas do leninismo. Como demonstramos ao longo deste
ensaio, a defesa de que o proletariado é o sujeito e objeto do conhecimento e
da ação de conhecer, significa reconhecer que nenhuma outra classe social fará
isto por ele. Nisto, enquanto classe, o proletariado está só e deve levar a
cabo esta tarefa a despeito de tudo o mais. O conceito de “sujeito-objeto
idêntico” significa também que o proletariado deve desenvolver suas próprias
formas de organização, meios a partir dos quais o proletariado efetivará sua
consciência de classe defendendo conscientemente seus interesses de classe. A
recusa deste conceito significa que o proletariado é incapaz de levar a cabo,
de forma independente, as suas próprias lutas, com suas próprias organizações,
desenvolvendo sua própria consciência de classe. No Prefácio, Lukács não afirma
isto com todas as letras, mas esta é a conclusão lógica a que se chega quando
se apercebe do significado político da rejeição de tal conceito.
Um segundo ponto, em relação com o
primeiro, mas de caráter mais metodológico, também revela a guinada de Lukács
rumo ao leninismo. Uma de suas grandes contribuições em História e Consciência de Classe é situar metodologicamente e
politicamente o sentido da categoria totalidade. Esta assume, ao longo do
livro, um significado todo especial, chegando a galgar o status de elemento diferenciador do marxismo em relação às ciências
burguesas e ao marxismo vulgar. Ou seja, o que distingue o marxismo das
ciências burguesas não é a primazia da economia sobre o resto da sociedade, mas
sim, o ponto de vista da totalidade. Ele abandona totalmente esta concepção,
afirmando que é por demais exagerada e acusa-se a si mesmo de hegeliano. Isto
significa uma adesão às teses economicistas/mecanicistas típicas do leninismo
na explicação dos fenômenos sociais.
A explicação para isto só pode ser
uma: à medida que a luta de classe proletária avança e se radicaliza, o
marxismo também avança e se radicaliza. À medida que a luta de classes reflui e
o proletariado cai no ostracismo, o marxismo tende a se ossificar e tornar-se
ideologia (falsa consciência). Este procedimento é executado por Lukács em História e Consciência de Classe, ou
seja, aplicar o marxismo a ele próprio. Contudo, fazendo a mesma coisa com o
desenvolvimento intelectual e político de Lukács percebe-se que ele estava
completamente certo quando defendeu tal tese em sua juventude e as mudanças de
opinião ao longo de sua trajetória só demonstram a veracidade destas teses.
O que nos é possível demonstrar
pela evolução das ideias do autor e da luta de classe proletária é que Lukács
avançou o máximo que conseguiu quando o proletariado estava armado e em luta.
Quando este refluiu, Lukács também o fez e nunca mais voltou a se radicalizar
novamente, mesmo quando o proletariado voltou à cena política. Isto demonstra o
quanto esteve embrenhado no pensamento burocrático desde que História e Consciência de Classe veio a
lume.
REFERÊNCIAS
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científico. São Paulo: Global, 1981.
KAUTSKY, K. As três fontes do marxismo. São Paulo:
Global, s/d.
KONDER, L. Sobre
George Lukács. In: LUKÁCS, G. Ensaios
sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
LENIN, W. I. O esquerdismo, doença infantil do comunismo.
São Paulo: Escriba, 1960.
______. As três fontes e as três partes
constitutivas do marxismo. São Paulo: Global, 1983.
LICHTHEIM, G. As ideias de Lukács. São Paulo: Cultrix,
s/d.
LUKÁCS, G. História e consciência de classe. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
MAIA, L. As classes sociais em O Capital. Pará de
Minas: VirtualBooks, 2011.
MARX, K &
ENGELS, F. Cartas filosóficas e o Manifesto Comunista de 1848. São Paulo:
Moraes, 1987.
MARX, K. O capital: crítica da economia política.
Tomo 1. v. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
VIANA, N. A teoria das classes sociais em Karl Marx.
Florianópolis: Bookess, 2012.
VIANA, N. Senso comum, representações sociais e
representações cotidianas. Bauru: Edusc, 2008a.
VIANA, N. O que é marxismo. Rio de Janeiro: Elo,
2008b.
Resumo
A obra História e
Consciência de Classe de George, publicada em 1923 é um importante livro na
história do pensamento marxista. O livro consiste de ensaios escritos de 1919 a
1922. Este livro é conhecido como uma das obras de juventude de Lukács. Esta
obra difere radicalmente de seus escritos antes de sua adesão ao marxismo, bem
como dos textos subsequentes à História e Consciência de Classe, que se filiam
ao “marxismo”-leninismo. Este ensaio objetiva discutir o significado político
deste livro para o entendimento da questão da luta política do proletariado,
suas organizações e a questão da consciência de classe, demonstrando como estes
elementos são inextrincáveis do marxismo, ou seja, do materialismo
histórico-dialético. A análise fundamenta-se unicamente no exame dos ensaios
deste livro, não adentrando em outras obras, o que tornaria a consecução do
artigo inviável. As conclusões a que chegamos é que este livro de Lukács trás
importantes contribuições ao entendimento do materialismo histórico e à luta de
classes do proletariado, ao mesmo tempo que carrega importantes ambiguidades e
limitações. Este ensaio visa explicitá-las.
Palavras-chave:
George Lukács; História e Consciência de Classe; marxismo; proletariado.
Abstract
The work
"History and Class Consciousness", published in 1923 is an important
book in the history of Marxist thought. The book consists of essays written
from 1919 to 1922. This book is known as one of Lukacs's early works. This work
differs radically from his writings before his adherence to Marxism and
subsequent texts to History and Class Consciousness, which adhere to
"Marxism"-Leninism. This paper discusses the political significance
of this book to understand the issue of the proletarian political struggle,
their organizations and the question of class consciousness, showing how these
elements are inextricable from Marxism, that is, the historical and dialectical
materialism. This analysis is based solely on the examination of the essays in
this book, without discussing his other works. The conclsusions we have reached
is that this Lukacs book holds important contributions to the understanding of
historical materialism and the proletarian class struggle, while it carries
important ambiguities and limitations. This paper aims to clarify them.
Key words: George Lukács; History and Class Consciousness; marxism; proletariat.
*
Doutor em Sociologia pela UnB; Professor da Faculdade de Ciências Sociais da
UFG – Universidade Federal de Goiás.
[1] Professor do Instituto Federal de
Goiás/Campus Aparecida de Goiânia. Doutor em Geografia pela Universidade
Federal de Goiás.
[2] Para tanto, recomendamos Lichtheim
(s/d). Em que pese seja obra introdutória, dá uma visão da totalidade do
pensamento de Lukács.
[3] Segundo Lukács: “Esse método, em
sua essência mais íntima, é histórico. Por conseguinte, é preciso aplicá-lo
continuamente a si mesmo, e esse é um dos pontos essenciais desses ensaios”
(LUKÁCS, 2003, p. 54).
[4] Este não é o caso da totalidade de
autores ligados ao marxismo, principalmente aqueles ligados ao que Lênin (1960)
qualificou de “Esquerdismo”, entre os quais Anton Pannekoek, Otto Rühle, Herman
Gorter etc.
[5] Estes foram escritos
exclusivamente para o livro.
[6] Esta análise é desenvolvida por
Marx (1983) quando discute o desenvolvimento da divisão do trabalho, ou seja,
da cooperação à manufatura e à maquinofatura. Lukács retoma esta análise de
Marx e a desenvolve em História e
Consciência de Classe a fim de fundamentar sua tese de reificação da
sociedade capitalista.
[7] É necessário analisar tal
afirmação de maneira crítica, pois a divisão do trabalho capitalista produz um
conjunto de classes típicas da sociedade capitalista. A constituição do estado
moderno, por exemplo, produz uma burocracia estatal marcada por um conjunto de
estratificações e frações que não são observadas em outros modos de produção.
Da mesma forma, o desenvolvimento da acumulação capitalista gera um “exército
industrial de reserva”, um lumpemproletariado que é típico do modo de produção
capitalista etc.
[8] Neste ponto de sua analise,
contudo, Lukács não conseguiu identificar o verdadeiro problema relacionado ao
marxismo vulgar, que é o caráter de classe desta ideologia. Como demonstraremos
mais à frente, o marxismo vulgar não deriva de erro de interpretação ou
equívocos teóricos, mas expressa interesses determinados, sobretudo da
burocracia partidária (socialdemocrata e bolchevique). Lukács, em parte devido
ao contexto histórico no qual escreveu Histórica
e Consciência de Classe, mas sobretudo devido seu não rompimento definitivo
com as organizações partidárias, não conseguiu perceber que a base social do
marxismo vulgar é a burocracia partidária e esta elabora tal ideologia. Deriva
daí que sua crítica o marxismo vulgar restringe-se à socialdemocracia, não
avançando em direção ao bolchevismo.
[9] Aprofundamento sobre isto, cf. por
exemplo, (MARX, 1987)
[10] Karl Korsch defende tese
semelhante em seu Marxismo e Filosofia,
também publicado em 1923. Para Korsch (1977), o marxismo é a “expressão teórica
do proletariado”. A definição de Korsch por utilizar o termo teoria e não
doutrina acaba por se configurar como mais adequada.
[11] Para uma discussão sobre o
conceito de classe determinada e autodeterminada, cf. (VIANA, 2012)
[12] Embora isto não se passasse com
outros autores, entre eles Otto Ruhle, Herman Gorter, Anton Pannekoek etc.
[13] Para uma discussão sobre isto cf.
Maia (2011) e Viana (2012).
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Publicado originalmente em:
Revista Sociologia em Rede, vol. 5 num. 5 2015
http://redelp.net/revistas/index.php/rsr/article/view/6maia5/258
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