Rádio Germinal

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segunda-feira, 24 de junho de 2019

O Direito à Revolução



O Direito à Revolução
                           Pierre Leroy



Hoje, vivemos num mundo que nos impõe a alienação total da vida. O mundo capitalista nos rodeia, nos cerca, nos dirige, nos sufoca. Poucos resistem. O que significa a resistência, a luta? Significa não dobrar-se totalmente diante da alienação e da coisificação total da vida. Mas mesmo o mais revolucionário dos indivíduos está preso ao mundo mercantil, burocrático e competitivo que nos envolve. Aliás, o revolucionário sofre mais do que qualquer outro indivíduo, pois ele tem a consciência das suas necessidades, da sua insatisfação, da alienação. Um revolucionário é como Prometeu acorrentado: não está apenas “preso” como as demais pessoas, mas está também sendo cotidianamente ferido por um animal alado, ele não está apenas preso, pois também sente a dor da consciência da prisão e da agressão que esta lhe traz.

A luta, a resistência, é um direito autêntico dos seres humanos. Os que não lutam são os que se acomodaram ao mundo. Eles sofrem outros tipos de sofrimentos mas sofrem. O seu sofrimento não é causado pela consciência da alienação mas pela alienação cotidiana que lhe é imposta. A luta do revolucionário autêntico traz a consciência de sua alienação, mas ela significa uma margem de liberdade. No modo de vida burocrático, mercantil, e, consequentemente, fútil, de nossa sociedade, o único espaço para a liberdade é a práxis revolucionária. Esta, entretanto, quando é feita em agrupamentos políticos que reproduzem no seu interior o modo de vida burguês perde o seu caráter revolucionário e deixa de representar para o indivíduo um espaço de liberdade. Uma associação revolucionária só manteria o seu caráter revolucionário construindo uma nova sociabilidade no seu interior, instaurando a solidariedade, a ajuda mútua, a ação coletiva, a vontade revolucionária.

Sem dúvida, muitos gostam de ler os autores revolucionários, mas poucos são aqueles que aceitam o desafio de executar uma práxis revolucionária. Esta traz, obviamente, represálias, inveja, conflitos cotidianos. A revolução não é coisa para covardes. Os covardes que se dizem revolucionários só fazem discurso pseudorrevolucionário nos “locais apropriados” e outros só o fazem quando lhes é conveniente.

A revolução é, tanto para os revolucionários quanto para os que não são conscientemente revolucionários, um direito autêntico, ou seja, deve ser praticada. Se no reino da mercadoria e da burocracia existe a alienação total, então existe também a insatisfação total. O que falta, esta é a grande pergunta, para que esta insatisfação total se transforme em revolução total?

A resposta deixa todos perplexos: um acontecimento explosivo. Toda revolução foi desencadeada por um acontecimento (coletivo, ou seja, que envolve vários indivíduos) explosivo e assim a revolução em estado latente se manifestou ou em termos marxistas a guerra civil oculta se transformou em guerra civil aberta. Ele, no entanto, só pode ocorrer devido as condições sociais, tanto a insatisfação social quanto crises e situações que a aumentam, faltando apenas a faísca para provocar o incêndio. Este acontecimento explosivo tem que ser significativo para a população e, portanto, não inclui formação de guerrilhas nas zonas rurais, que significa apenas o auto-isolamento de grupos vivendo de sua imagem burocrática da revolução. O acontecimento explosivo, além de significativo, para não ser uma faísca natimorta, pressupõe condições como a insatisfação e seu aumento, que ocorre graças a processos sociais de intensificação da exploração, miséria, etc., e/ou de sua consciência. Como já dizia o maior profeta revolucionário de todos os tempos: é preciso acrescentar a consciência da vergonha ou miséria para que elas se tornem explosivas e que o sentido da transformação seja o construtivo e não o destrutivo.

Portanto, a tarefa do movimento revolucionário hoje é, além do seu trabalho cotidiano, criar acontecimentos explosivos e as condições necessárias para a efetivação da revolução proletária. Neste sentido, tanto a ideia de um “detonador da revolução” dos marxistas esquerdistas, quanto a ideia de “exemplo pela ação” são relativamente corretas. Apesar da importância da luta cultural, a revolução não virá através do processo de “conscientização”. Esta faz parte da luta de classes em geral e é uma das determinações do processo de transformação radical da sociedade. Ela não serve apenas para aumentar o número de indivíduos envolvidos diretamente com o movimento revolucionário e sim para criar um processo de clarificação que expressa uma consciência antecipadora que se torna fundamental atingindo as classes exploradas e, consequentemente, aumenta as possibilidades de criação de acontecimentos explosivos que poderão desencadear a revolução autogestionária. Assim, o inconsciente coletivo torna-se consciência revolucionária. O direito à revolução se manifesta, então, na prática revolucionária e com sua concretização se decreta o fim do reino da mercadoria, da burocracia e da alienação. É neste momento que emerge um mundo novo, um mundo livre. Nasce, desta forma, como já dizia Marx, o grande profeta revolucionário, o reino da liberdade ou, como disseram outros profetas revolucionários, a autogestão.


domingo, 23 de junho de 2019

O Vento ou a Vida (O Modo Capitalista de Vida Como “Modo de Vida Fútil”)






O Vento ou a Vida
(O Modo Capitalista de Vida Como “Modo de Vida Fútil”)

Pierre Leroy


O capitalismo superdesenvolvido da Europa Ocidental, EUA e Japão cria o que podemos chamar de “modo de vida fútil”. Ele cria uma ALIENAÇÃO TOTALIZANTE DO SER SOCIAL e também a “FUTILIZAÇÃO” DA VIDA. O mundo da mercadoria anula todas as potencialidades humanas criando um tipo de homem que é um ser-para-o-consumo. Entretanto, ainda existe nos homens uma vontade de realizar atividades autônomas não mediadas pelo mundo da mercadoria, pelos meios de comunicação e por toda esta panaceia eletrônica e burocrática. Tanto a futilização da vida quanto a insatisfação que surge com ela se manifestam em todos os aspectos da vida: do trabalho ao lazer. O capitalismo superdesenvolvido cria uma monstruosa sociedade mercantil mecânica e burocrática.
O DIREITO AO PRAZER AUTÊNTICO FOI DESTRUÍDO NAS SOCIEDADES TOTALITÁRIAS DA EUROPA OCIDENTAL. Essas sociedades são totalitárias não porque possuem um Estado ditatorial que destruiu as liberdades políticas e democráticas, porque existe censura ou porque não se pode viajar sem permissão das autoridades. O tipo de totalitarismo a que me refiro é muito mais desumano e degradante. É a alienação totalitária da vida social. Nada escapa, da política nacional ao cotidiano estamos presos numa alienação generalizada.
Marx ficou horrorizado com a alienação do trabalho. Se estivesse vivo hoje, diante da alienação DA VIDA, certamente, o que muitos estão fazendo atualmente, se suicidaria. O fetichismo das mercadorias generalizou-se ao ponto de criar uma reificação do homem. O homem se tornou uma coisa como outra qualquer. Não apenas os outros homens são para mim uma coisa, mas eu mesmo passo a me sentir e me tratar como uma coisa, uma mercadoria, ALGO DESTITUÍDO DE VONTADE E DE CAPACIDADE. Assim, as relações sociais são deformadas e coisificadas, tornando-se fúteis, vazias, sem significado. Marx, o maior profeta revolucionário de todos os tempos, disse tudo: quanto mais TEMOS menos SOMOS.
As sociedades totalitárias criaram, ao lado da futilização da vida, uma futilização da prática, da contestação, da luta política. Juntamente com isso temos uma sensação de impotência predominante na sociedade. Isto é a autoconsciência de nossa “incapacidade”, de nossa alienação. Mas é, na verdade, uma transferência da nossa alienação na vida social para a atividade política, o que significa sua reprodução e, portanto, o elogio da alienação.
Os grandes profetas revolucionários da humanidade (Marx, Freud, Bloch, Fromm, Marcuse) sempre nos deixaram duas opções: socialismo ou barbárie (Engels, Rosa Luxemburgo, Cornelius Castoriadis); a utopia ou a morte (René Dumont), eros ou tanatos (Freud, Marcuse), mas, se eles revelaram uma “consciência antecipadora”, consideramos que a antecipação que se realizou foi a negativa: barbárie, morte, tanatos.
A resistência à sociedade totalitária é explicada e explicável somente pela teoria freudiana. Sigmund Freud foi aquele que nos revelou a existência do inconsciente. A alienação total gera a insatisfação total. O problema é que esta insatisfação total está contida dentro de nós, no inconsciente, e por isso não se transforma em ação, em prática, e, consequentemente, em REVOLUÇÃO TOTAL.
A alienação total da vida (sexual, afetiva, moral, política, etc.) não se transforma em revolução total porque ela não se manifesta ou, nos raros casos em que isso acontece, ocorre de forma individual. A vitória de tanatos (instinto de morte) só acontece porque o “inconsciente coletivo” não pode produzir o novo sem projetá-lo num projeto revolucionário, numa utopia. Ernst Bloch, outro grande profeta revolucionário, estava certo quando disse que não basta a insatisfação, pois é preciso que esta seja acompanhada pela esperança, pela utopia.
Transformar o “inconsciente coletivo” em “consciência coletiva revolucionária” é, pois, a necessidade de nossa época. Entretanto, nós não podemos introjetá-la nas “massas”, porque, nesse caso, elas seriam receptoras passivas de algo exterior, por mais que isto expresse suas necessidades. Seria a reprodução da alienação e não um processo de libertação. Portanto, as “massas” devem-se libertar por si mesmas. O papel que resta aos revolucionários é despertá-la e estar atento para a contrarrevolução. ESSA É A SUA TAREFA MAIS IMPORTANTE, COMBATER O DESEJO DE CAPITALISMO DENTRO DE CADA UM, QUE INTROJETA O QUE LHE DESTRÓI E REPRODUZ INTERNAMENTE ESTA DESTRUIÇÃO, LUTAR CONTRA A CONTRARREVOLUÇÃO.
A história das sociedades totalitárias da Europa Ocidental começa na década de 60. O modo de vida fútil se instala com a ascensão do capitalismo superdesenvolvido. As formas de alienação se generalizam e invadem a vida social. O desencantamento com a participação política institucional não é sinal de despolitização, mas sim de reconhecimento da alienação na democracia política e da falsidade da contestação nos limites institucionais, tal como no triste exemplo do eurocomunismo.
É no final da década de 60 que o “inconsciente coletivo” torna-se “consciência coletiva revolucionária” e isto ocorre em Paris. Em 1968, na cidade onde a luta pela autogestão pela primeira vez invadiu as ruas materializada na Comuna de Paris, os estudantes contestaram a ciência, a educação, a sociedade. Mas não apenas criticaram e combateram o mundo velho; viram também a possibilidade de criação de um mundo novo. Re-afirmaram o projeto utópico da autogestão. A derrota de 1968 se prolonga até os dias de hoje. Uma “nova onda revolucionária”? Isso só será possível quando armados da utopia autogestionária reconquistarmos as ruas e a vida como os operários da Comuna de Paris ou como os estudantes de 68.
Mas a defesa da autogestão é dificultada pelo contra-ataque da alienação, vindo tanto da direita quanto da “esquerda institucional” (e institucionalizada). Nós não podemos produzir nossas próprias ideias políticas, devido nossa “incapacidade”. Devemos comprá-las no mercado, ou seja, nas livrarias, nas universidades, nos partidos políticos, nos meios de comunicação de “massas”, nas grandes revistas, nos grandes jornais, etc. As ideias políticas que compramos são mercadorias e, portanto, não foram produzidas por nós, mas por seres estranhos e hostis com os quais nos deparamos. Essas ideias, consequentemente, não são as nossas, não são as que queremos. Se nós sabemos que nós não queremos estas, então é porque temos a noção de quais ideias políticas nós queremos. A alienação das ideias é a justificativa para todas as outras formas de alienação. O discurso da incapacidade intelectual é o fundamento do discurso da incapacidade total e de todas as relações mercantis e burocráticas que expressam a alienação total da vida social.
Chegamos agora ao cerne da questão: O LIMITE DA SUA IMAGINAÇÃO POLÍTICA É O LIMITE DE SUA AÇÃO POLÍTICA. A sua incapacidade de ultrapassar o mundo atual no plano do pensamento é sinal de sua incapacidade de ultrapassá-lo na prática política. A “consciência antecipadora”, a possibilidade de ver o vir-a-ser, não é só uma questão filosófica, mas também uma posição política e humana. A visão de um mundo novo só é possível rompendo com a atual “visão de mundo” que toma o mundo atual como o único possível, o natural, o universal, ou que pode apenas ser reformado ou transformado gradualmente. O pensamento revolucionário ao se opor ao pensamento conservador apresenta-se como uma posição diante do mundo, uma posição de negação radical e que significa A SUPERAÇÃO DA CONTEMPLAÇÃO TANTO TEÓRICA QUANTO PRÁTICA. AQUELES QUE NEM AO NÍVEL DO IMAGINÁRIO SUPERAM A SOCIEDADE EXISTENTE JAMAIS O FARÃO AO NÍVEL DA PRÁTICA: são conservadores que com base no seu “realismo” disfarçam sua posição.
Nas sociedades totalitárias só nos sentimos “livres” ou com um mínimo de liberdade quando o vento bate em nossos rostos, mas, mesmo assim, ainda que não nos sentimos VIVOS, pois esta é uma LIBERDADE PASSIVA que só se tornará AUTÊNTICA quando se tornar ATIVA e com isso nós passarmos a vivermos nossa vida e construirmos nosso mundo.
Hoje, diante da futilização da vida e do “mundo da futilidade”, vemos apenas o vento. A profecia de Thomas Münzer já nos alertava para isso: ou nós nos rebelamos ou então só veremos o vento. Por isso, hoje a grande questão não é mais “socialismo ou barbárie” e sim “O VENTO OU A VIDA”.
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Publicado originalmente em:


sábado, 22 de junho de 2019

EXCESSOS DO CULTURALISMO: PÓS-MODERNIDADE OU AMERICANIZAÇÃO DA ESQUERDA?


EXCESSOS DO CULTURALISMO: 
PÓS-MODERNIDADE OU AMERICANIZAÇÃO DA ESQUERDA?

J.A. LINDGREN ALVES


The Excesses of Culturalism: postmodernity or the americanization of the Left? 

Resumo: Assim como o neoliberalismo, as teorias da pós-modernidade espalharamse por todo o mundo, em um processo que teve início nos Estados Unidos. Os movimentos sociais, ao se tornarem culturalistas, incorporaram e desenvolveram o pósmodernismo, abandonando o universalismo que sempre caracterizara as posições de esquerda. Essa americanização dos movimentos sociais permitiu estabelecer firmemente as questões de gênero, sexualidade e etnicidade na agenda política, mas tal agenda se tornou tão exclusivista que deixou de contemplar conquistas sociais mais amplas. Tendo em conta a especificidade de cada situação, os movimentos sociais do Brasil precisam saber avaliar melhor os modelos que pretendem seguir. 

Palavras-chave MOVIMENTOS SOCIAIS – IDENTIDADES – CULTURALISMO – RAÇA – GÊNERO – PÓS-MODERNIDADE – ESTADOS UNIDOS – BRASIL.

Abstract Just like neoliberalism, postmodernity theories have spread out in the world in a process that has started in the United States. On becoming culturalist, social movements have incorporated and developed postmodernism, setting aside the universalism that has always characterized the Left. Such americanization of social movements has firmly established questions of gender, sexuality and ethnicity on the political agenda, but the agenda itself has become so exclusivist that it stopped addressing further social advancements. Bearing in mind the specificity of each situation, Brazilian social movements should better evaluate the models they intend to follow. Keywords SOCIAL MOVEMENTS – IDENTITIES – CULTURALISM – RACE – GENDER – POSTMODERNITY – UNITED STATES – BRAZIL.



















domingo, 9 de junho de 2019

SOBRE PANNEKOEK E OS CONSELHOS OPERÁRIOS


SOBRE PANNEKOEK E OS CONSELHOS OPERÁRIOS

Paul Mattick
Entrevista a J. J. Lebel[1]
        
J. J. Lebel: Qual relevância tem o livro de Pannekoek[2] na Europa de hoje? Você acredita que a memória analítica e a teoria da experiência passada do comunismo de conselhos, tal qual Pannekoek as expressam, podem ser “ouvidas” e compreendidas por trabalhadores de hoje, daqui?
           
Paul Mattick: Um livro como o de Pannekoek não precisa de relevância imediata. Ele lida com um período histórico: com ocorrências passadas bem como com experiências futuras, no qual o fenômeno dos conselhos operários, aparecendo e desaparecendo, apontam para uma tendência de desenvolvimento da luta de classe dos trabalhadores, e seus objetivos em mutação. Como qualquer outra coisa, formas de luta de classe são históricas no sentido de que fazem sua aparição muito antes de sua plena realização se tornar uma possibilidade real. Numa forma embrionária, por exemplo, os sindicatos surgiram espontaneamente como instrumentos da resistência da classe trabalhadora no começo do desenvolvimento do capitalismo, para desaparecer novamente devido a impedimentos objetivamente determinados a seu desenvolvimento posterior. Contudo, a sua irrelevância temporária não determinou seu caráter, possibilidades e limitações. De maneira, similar, os conselhos operários apareceram sob condições que impediam o desenvolvimento de todas as suas potencialidades revolucionárias. O conteúdo dos levantes sociais onde os conselhos operários sugiram inicialmente não era adequado à sua forma organizacional. Os conselhos operários russos de 1905 e 1917, por exemplo, lutaram por uma democracia burguesa constitucional e por objetivos sindicais como o período de oito horas e salários mais altos. Os conselhos operários alemães de 1918 abriram mão de seu poder político, ganho momentaneamente, em favor da Assembleia Nacional Burguesa[3] e o caminho de uma evolução ilusória da social-democracia alemã. De qualquer forma, os conselhos operários tiveram que se eliminar, já que sua forma organizacional contradizia seus propósitos políticos e sociais. Enquanto que, na Rússia, foi o despreparo objetivo para uma revolução socialista, na Alemanha foi a falta de vontade subjetiva para realizar o socialismo por meios revolucionários que levou à decadência, e finalmente, à destruição forçada do movimento dos conselhos. Ainda assim, foram os conselhos operários, e não as organizações operárias tradicionais, que asseguraram o sucesso dos levantes revolucionários, por mais limitados que fossem. Embora os conselhos revolucionários revelassem que o proletariado é capaz de desenvolver organizações revolucionárias próprias – em combinação com organizações operárias tradicionais, ou em oposição a elas – à época de sua formação eles tinham apenas vagos conceitos, ou nenhum, de como consolidar o poder e usá-lo para mudar a sociedade. Assim, voltaram às organizações políticas do passado. A questão de saber se a ideia do conselho, tal qual elaborada por Pannekoek, poderia ser compreendida e assumida pelos trabalhadores hoje, é bastante estranha, já que a ideia de conselhos operários implica nada mais, e também nada menos, que a auto-organização dos trabalhadores onde quer e quando quer que isso se torne uma necessidade inescapável na luta por seus objetivos imediatos, ou para propósitos mais distantes, que não podem ser alcançados, ou que de fato estão opostos, a organizações operárias tradicionais tais como sindicatos e partidos políticos. Para acontecer, uma luta particular dentro de uma fábrica, ou uma indústria, e a extensão da luta por áreas mais extensas e em números maiores, pode exigir um sistema de delegados de trabalhadores, comitês de ação ou conselhos operários. Tais lutas podem, ou não, encontrar o apoio das organizações operárias existentes. Se não, terão que ser levadas a cabo independentemente, pela luta dos próprios trabalhadores, e isso implica em sua auto-organização. Sob circunstâncias revolucionárias, isso pode muito bem levar à disseminação de um vasto sistema de conselhos operários, como base para uma total reorganização da estrutura social. É claro, sem uma situação revolucionária dessas, exprimindo uma condição de crise social, a classe trabalhadora não irá se ocupar com as implicações mais amplas do sistema de conselhos, embora possa se organizar para lutas particulares por meio de conselhos. A descrição de Pannekoek da teoria e prática dos conselhos operários, assim, não relata nada mais que as experiências dos próprios trabalhadores. Mas o que eles experimentam, eles também podem compreender e, sob condições favoráveis, aplicar em sua luta dentro e contra a sociedade capitalista.

J. J. Lebel: Como você acha que o livro de Pannekoek foi concebido e em que relação à sua prática na Alemanha ou na Holanda? Você acredita que seu livro e seu ensaio sobre o sindicalismo, em Living Marxism[4], se aplicam às condições presentes?

Paul Mattick: Pannekoek escreveu seu livro sobre os conselhos operários durante a Segunda Guerra Mundial. Foi um resumo de sua experiência de vida na teoria e na prática do movimento operário internacional e do desenvolvimento e transformação do capitalismo dentro de várias nações e como um todo. Termina com o triunfo temporário de um capitalismo redivivo, ainda que transformado, e com a total sujeição dos interesses da classe trabalhadora às necessidades competitivas de sociedades capitalistas rivais[5] se preparando para novos conflitos imperialistas. Ao contrário da classes dominante, que se adaptam muito rápido a condições diferentes, a classe operária, ao ainda aderir a ideias e atividades tradicionais, encontra-se numa situação impotente e aparentemente desesperançosa. E, à medida que as mudanças socioeconômicas mudam as ideias apenas gradualmente, ainda pode levar um tempo considerável até que um novo movimento operário – adaptado às novas condições – surja. Embora a existência continuada do capitalismo, em sua forma de capitalismo privado ou de capitalismo estatal, provou que as expectativas de crescimento de um novo movimento operário após a Segunda Guerra Mundial eram prematuras, a resistência continuada do capitalismo não remove suas contradições imanentes e, portanto, não desonerará os trabalhadores de ter que lhe pôr um fim. É claro, com o capitalismo ainda em seu berço, as velhas organizações operárias, os partidos parlamentares e os sindicatos também podiam ser mantidos. Mas já são reconhecidos, e reconhecem a si mesmos, como parte do capitalismo, destinados a afundar com a sociedade da qual sua existência depende. Muito antes de se tornar um fato óbvio, ficou claro a Pannekoek que o velho movimento operário era um produto histórico do capitalismo ascendente, preso a esse tipo particular de desenvolvimento ao passo que a questão da revolução e do socialismo só podia ser posta, mas não respondida. Nesse período, essas organizações operárias estavam destinadas a se degenerar em ferramentas do capitalismo. O socialismo depende agora da ascensão de um novo movimento operário, capaz de criar as precondições para o autogoverno do proletariado. Se os trabalhadores tomarem o processo de produção e determinarem a distribuição de produtos, eles precisarão, mesmo antes dessa transformação revolucionária, funcionar e se organizar de uma forma inteiramente diferente do que no passado. Em ambas as formas de organização, nos partidos parlamentares e nos sindicatos, os trabalhadores delegam seu poder a grupos especiais de líderes e organizadores, que supostamente agiriam em prol deles, porém de fato apenas fomentam seus próprios interesses separados. Os trabalhadores perderam controle sobre sua própria organização. Mas mesmo que isso não tivesse acontecido, essas organizações eram totalmente incapazes de servir como instrumentos para a revolução proletária ou para a construção do socialismo. Partidos parlamentares foram um produto da sociedade burguesa, uma expressão da democracia no capitalismo laissez-faire e significante apenas nesse contexto. Eles não têm lugar no socialismo, que deve acabar com a disputa política ao terminar com os interesses específicos e as relações sociais de classe. Como não há espaço, nem necessidade para partidos políticos numa sociedade socialista, sua superfluidade futura já explica sua ineficiência como instrumento de mudança revolucionária. Os sindicatos não têm, tampouco, função alguma no socialismo, que desconhece relações de salários e que organiza sua produção sem preocupação com ramos e indústrias específicos, mas de acordo com as necessidades sociais. À medida que a emancipação da classe operária só pode ser feita pelos próprios operários, eles têm que se organizar como classe, para tomar e se assenhorar do poder. Com relação às condições presentes, contudo, que ainda não são de natureza revolucionária, as atividades da classe operária sob a forma de conselhos ainda não exibem diretamente suas potencialidades revolucionárias mais amplas, mas é uma simples expressão da integração das organizações operárias tradicionais à sociedade capitalista[6]. Os partidos parlamentares e os sindicatos perdem sua eficácia limitada quando não é mais possível combinar uma melhora dos padrões de vida dos trabalhadores com uma expansão progressiva do capital. Sob condições que impedem uma acumulação capitalista suficiente, isso é, sob condições de crise econômica, as atividades reformistas dos partidos políticos e sindicatos deixam de ser operativas e essas organizações de abstêm de suas supostas funções, já que ameaçariam a própria sociedade capitalista. Eles tentarão, antes, ajudar a sustentar essa sociedade, ao ponto de sabotar diretamente as aspirações dos trabalhadores por melhores condições de vida e de trabalho. Eles ajudarão o capitalismo a vencer sua crise a custo dos trabalhadores. Em tal situação, os trabalhadores, indispostos a se submeterem aos ditames do capital, são forçados a recorrerem a atividades que não são sancionadas pelas organizações operárias oficiais, como greves ilegais, ocupações de fábricas e outras formas de ações diretas fora do controle das organizações operárias estabelecidas. Essas atividades autodeterminadas, com sua estrutura temporária de conselhos, indicam a possibilidade de sua aplicação radical sob situações revolucionárias emergentes, substituindo as formas de organização tradicionais, que se tornaram um embaraço tanto para a luta imediata quanto para os propósitos revolucionários.

J. J. Lebel: Você poderia dar alguns exemplos práticos e concretos de como os conselhos operários funcionaram na Rússia, Alemanha, Hungria etc.? Como diferiam do partido tradicional ou das organizações sindicais? Quais são as diferenças básicas? Como o conselho e o partido, ou sindicato, colidem?

Paul Mattick: Assim como toda greve (ocupação ou outro tipo de atividade anticapitalista que ignora as organizações operárias oficiais e foge de seu controle) assume o caráter de uma ação da classe operária independente – que determina sua própria organização e procedimentos, pode ser encarada como um movimento de conselhos –, assim também numa escala maior, como aconteceu na Rússia em 1905 e 1917, na Alemanha em 1918 e posteriormente – contra autoridades do capitalismo de estado – na Hungria, Tchecoslováquia e Polônia, valem-se dos conselhos operários como a única forma das ações da classe trabalhadora possível sob condições nas quais todas as instituições e organizações estabelecidas se tornaram defensoras do status quo. Esses conselhos surgem da necessidade, mas também por causa da oportunidade oriunda dos processos de produção capitalista, que já são as formas “naturais” das atividades da classe operária e sua organização. Aqui os trabalhadores são “organizados” como classe contra a classe capitalista: o lugar de exploração é também o veículo para sua resistência contra a dominação capitalista. “Organizados” por seus senhores nas fábricas, indústrias, exércitos ou em distritos separados da classe operária, os trabalhadores se tornam essas “organizações” suas próprias, utilizando-as para empreendimentos independentes e sob sua própria liderança. Essa última foi eleita de seu meio, e era a qualquer momento passível de ser chamada de volta. Assim a divergência que evoluiu historicamente entre as organizações operárias institucionalizadas e a classe operária em grande medida foi abolida, e a contradição aparente entre organização e espontaneidade foi resolvida. Até agora, na verdade, os conselhos operários encontraram suas limitações nos limites das ações espontâneas sob condições desfavoráveis. Foram a expressão esporádica de movimentos esporádicos, ainda incapazes de transformar seu potencial de se tornar uma estrutura organizacional de relações não-exploradoras em realidade. A diferença básica entre o movimento de conselhos e as organizações operárias tradicionais é que, enquanto estas últimas perdem sua função num capitalismo em decadência e nada têm a contribuir para a construção do socialismo, os primeiros não assumem a única forma das ações efetivas da classe operária independentemente do estado em que o capitalismo se encontre, mas são, ao mesmo tempo, a prefiguração da estrutura de organização de uma sociedade socialista.

J. J. Lebel: Você vê alguma semelhança (em intenção, resultado ou forma) entre o comunismo de conselhos e a atual luta dos trabalhadores nos EUA e Europa? Você acha que eventos recentes indicam uma evolução significante e qualitativa rumo a um tipo diferente de sociedade? Ou você acha que lutas recentes que se sobressaíram (Maio de 68, Lordstown, LIP etc.) são mais dos mesmos velhos programas de modernizações do capitalismo?

Paul Mattick: Há, sem dúvida, uma conexão entre as recentes expressões de ações autodeterminadas da classe operária, tais como o movimento francês do Maio de 1968, a ocupação da LIP, mas também as rebeliões dos trabalhadores na Alemanha Oriental, Polônia e mesmo Rússia, e o reconhecimento “instintivo”, bem como consciente, de que as formas de ação representadas pelo conceito e pela realidade dos conselhos operários é a exigência necessária para a luta dos trabalhadores sob as atuais condições. Mesmo greves sem apoio oficial nos EUA podem ser encaradas como uma primeira expressão de uma consciência de classe em desenvolvimento, dirigindo-se não apenas contra o óbvio inimigo capitalista, mas também contra o movimento operário oficialmente integrado. Contudo, as tradições ainda são poderosas e as instituições nutridas por elas constituem parte da resistência do capitalismo. Isso aparece exigir situações muito mais catastróficas para liberar todo o poder de ações de massa espontâneas, sobrepujando não apenas os defensores do capitalismo mas a própria sociedade capitalista. Na medida em que lutas recentes e vindouras dos trabalhadores escaparam ou escapam da influência e do controle das autoridades capitalistas, ao qual a liderança do movimento operário oficial também pertence, houve a haverá momentos que não podem ser integrados à sociedade capitalista e, portanto, constituem verdadeiros movimentos revolucionários.
           
J. J. Lebel: Se novas greves gerais (como em Maio de 68) ou outros movimentos revolucionários de massa surgirem, você acredita que eles podem se desenvolver rumo aos conselhos operários, distanciando-se de partidos e sindicatos? Como? O que você acha que pode ser feito para dar cabo de partidos e sindicatos que impedem a auto-organização e a democracia direta?

Paul Mattick: Numa crise geral do capitalismo sempre há a possibilidade e de que os movimentos sociais resultantes transcenderão os obstáculos colocados em seu caminho pelas formas tradicionais de atividades econômicas e políticas, e procederão de acordo com as novas necessidades que incluem a de formas efetivas de organização. Contudo, assim como o capitalismo não abrirá mão por conta própria, as organizações operárias existentes tentarão ao máximo manter o controle desses movimentos sociais e dirigi-los rumo a propósitos mais favoráveis para si mesmos. No “melhor” dos casos – caso não consigam ajudar a sustentar o status quo – eles dirigirão um possível levante revolucionário para os canais do capitalismo de Estado, para manter as relações de produção que lhes permitiriam não só a existência prolongada, mas também transformariam suas organizações em instrumentos de uma sociedade capitalista reformada, e suas burocracias numa classe dominante. Em resumo, eles tentariam transformar uma potencial revolução socialista numa revolução capitalista-estatal, com os resultados apresentados tais quais nas nações do assim chamado “socialismo”. Eles podem ter sucesso nessas tentativas. Contudo, essa é a razão mais premente para defender e estabelecer conselhos operários em qualquer situação revolucionária, e para tentar concentrar todo o poder necessário para a autodeterminação dos trabalhadores. O controle social através dos conselhos operários é uma possibilidade futura entre outras. A probabilidade de sua realização talvez seja menor do que a da transformação para um capitalismo de Estado. Porém, como esse último não é uma solução para o problema inerente às relações sociais de exploração, uma possível revolução capitalista-estatal iria apenas adiar, mas não eliminar, a necessidade de outra revolução tendo o socialismo como propósito.

J. J. Lebel: Você acredita que os conselhos são, ainda, hoje, o padrão básico para uma sociedade comunista ou devem ser atualizados para se adaptar às condições presentes?

Paul Mattick: O comunismo será um sistema de conselhos operários ou não existirá. A “associação de produtores de livres e iguais”, que determina sua própria produção e distribuição, só pode ser pensada como uma sociedade de autodeterminação no processo de produção, e a ausência de qualquer autoridade além da vontade coletiva dos próprios produtores. Significa o fim do Estado, ou qualquer forma de exploração baseada no Estado. Deve ser uma produção planejada, sem a intervenção de relações de troca e as vicissitudes do mercado. A regulamentação do caráter social de produção deve descartar as relações de preço e o fetichismo do valor e deve ser realizada em termos da economia do tempo, como tempo de trabalho vivo como medida de cálculo, onde o cálculo ainda for requerido. Uma pressuposição para tal desenvolvimento é a ausência de um governo central com poderes políticos próprios. As instituições centrais do sistema de conselhos são simplesmente empresas entre outras, sem um aparelho especial para assegurar sua vontade fora do consentimento de outros conselhos ou de outras empresas. A estrutura da sociedade deve se organizar de tal modo que combine a regulamentação central com a autodeterminação dos produtores. Enquanto que, sob as condições de subdesenvolvimento que defrontaram os primeiros conselhos após uma revolução política bem-sucedida (a referência é a Rússia de 1917), onde era praticamente impossível fazer valer uma sociedade comunista baseada nos conselhos operários, as condições que prevalecem nas nações capitalistas desenvolvidas permitem a realização do socialismo por meio do sistema de conselhos. É precisamente a forma mais avançada do capitalismo, com sua tecnologia avançada, sua alta produtividade, e redes de comunicação, que oferece uma base material para o estabelecimento do comunismo baseado num sistema de conselhos operários. A ideia do conselho não é uma coisa do passado, mas a proposição mais realista para o estabelecimento de uma sociedade socialista. Nada do que tenha acontecido durante as últimas décadas lhe tirou sua possibilidade de realização – pelo contrário, apenas substanciou o caráter não-utópico dos conselhos operários e a probabilidade da emergência de uma sociedade verdadeiramente comunista.  




[1] A entrevista original foi realizada em 1975 e nunca havia sido publicada. Inicialmente, ela foi parte de um programa de rádio sobre os Conselhos Operários que nunca foi ao ar. Logo depois, fizeram uma transcrição da entrevista que foi adicionada na segunda edição francesa do livro Conselhos Operários (Spartacus, novembro de 1982). Na versão norte-americana do livro de Pannekoek, a entrevista foi acrescentada como um dos apêndices. A versão inglesa do livro pode ser conferida em https://libcom.org/files/Pannekoek%20-%20Workers'%20Councils.pdf, e a entrevista em inglês pode ser acessada em https://www.marxists.org/archive/mattick-paul/1975/lebel.htm. A presente tradução portuguesa foi publicada na edição recente do livro Pannekoek realizado pela editora L-Dopa, com o título de Conselhos de Trabalhadores (2018). A tradução foi revista, inclusive substituindo no texto “conselhos de trabalhadores” por uma versão mais fiel e adequada, que é “conselhos operários” e, mais ainda, “organizações trabalhistas” por “organizações operárias”, entre outras alterações. A revisão da tradução foi necessária pelo fato de que a tradução portuguesa foi realizada a partir da inglesa, que já é problemática (ao que tudo indica, o original é francês), bem como por ser perceptível que o tradutor desconhece termos clássicos do marxismo e do movimento operário e as distintas concepções políticas próximas de tal movimento (tal como colocar o termo “trabalhismo” ao invés de operário, devido a tradução inglesa ser uma mera tradução formal, sendo que isso não só é equivocado como pode gerar, nos leitores com pouca familiaridade, a sua confusão com o trabalhismo, uma concepção burguesa infiltrada nas lutas dos trabalhadores). Por outro lado, trocamos o termo “sistema” por sociedade, pois Mattick realiza uma reprodução inercial de um termo em voga na época. Só mantivemos o termo sistema no caso da referência aos conselhos (sistema de conselhos), devido à tradição do uso de tal expressão, como equivalente a uma sociedade comunista fundada nos conselhos operários. A recente tradução da L-Dopa ainda tem o problema adicional de não constar o Livro III, O Pensamento, tal como na edição inglesa. O livro III contém os textos, "As ideologias", "A religião", "O nacionalismo", "A democracia", "comunismo e socialismo" e "pensamento e ação". O item "A democracia" foi traduzido e publicado na revista Enfrentamento (disponível também em: https://www.marxists.org/portugues/pannekoe/1946/mes/democracia.htm (Nota Mutadis Mutandis - NMM).
[2] Refere-se ao livro Os Conselhos Operários, publicado originalmente em 1937 (NMM).
[3] Que gerou a chamada “República de Weimar”, mas isso ocorreu em Berlim e algumas cidades, sendo que em outras regiões da Alemanha foram geradas “repúblicas de conselhos operários” e, no caso de Berlim, houve setores dissidentes, a começar pela Liga Spartacus, cuja resistência resultou na morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt (NMM).
[4] Referência ao artigo publicado na Revista Living Marxism, em 1936. A revista era publicada por comunistas de conselhos com o nome International Council Correspondence, publicada de 1934 a 1943, mudando em 1938 para o nome Living Marxism, e, depois, em 1942, para New Ensays. Na verdade, o artigo foi publicado quando a revista ainda tinha o primeiro nome. O artigo de Pannekoek pode ser acessado em português, apesar de problemas de tradução (como quase todos os textos dele em português, com raras exceções), no seguinte link: https://www.marxists.org/portugues/pannekoe/1936/mes/sindicalismo.htm. Uma tradução de textos de Pannekoek de melhor qualidade e fidelidade pode ser vista em https://drive.google.com/file/d/1kFI9lZVy_pGA5uPJhaYFwu3TMgNdF71H/view?usp=sharing.
[5] Mattick se refere ao processo da guerra fria, que se fundamentava nas duas potências capitalistas rivais, EUA e URSS, uma oposição interimperialista entre capitalismo privado e capitalismo de estado (Nota MM). A evolução do pensamento de Pannekoek sobre o sindicalismo (que avança depois deste texto de 1936) pode ser vista nesse link: https://www.marxists.org/portugues/pannekoe/1936/mes/sindicalismo.htm. (NMM).
[6] Mattick se refere aqui a formação de comissões ou conselhos sob iniciativa de sindicatos ou empresas (NMM).

sexta-feira, 7 de junho de 2019

CRÍTICA AO ANARQUISMO




CRÍTICA AO ANARQUISMO*


GUY DEBORD


É na própria luta histórica que é preciso realizar a fusão do conhecimento e da ação, de tal modo que cada um destes termos coloque no outro a garantia da sua verdade. A constituição da classe proletária em agente ativo é a organização das lutas revolucionárias e a organização da sociedade no momento revolucionário: é aqui que devem existir as condições práticas da consciência, nas quais a teoria da práxis se confirma tomando-se teoria prática. Contudo, esta questão central da organização foi a menos considerada pela teoria revolucionária na época em que se fundava o movimento operário, isto é, quando esta teoria possuía ainda o carácter unitário vindo do pensamento da história (e que ela se tinha justamente dado por tarefa desenvolver até uma prática histórica unitária). É, pelo contrário, o lugar da inconsequência para esta teoria, ao admitir o retomar de métodos de aplicação estatais e hierárquicos copiados da revolução burguesa. As formas de organização do movimento operário desenvolvidas sobre esta renúncia da teoria tenderam por sua vez a interditar a manutenção de uma teoria unitária, dissolvendo-a em diversos conhecimentos especializados e parcelares. Esta alienação ideológica da teoria já não pode, então, reconhecer a verificação prática do pensamento histórico unitário que ela traiu, quando uma tal verificação surge na luta espontânea dos operários; ela pode somente concorrer para reprimir-lhe a manifestação e a memória. Todavia, estas formas históricas aparecidas na luta são justamente o meio prático que faltava à teoria para que ela fosse verdadeira. Elas são uma exigência da teoria, mas que não tinha sido formulada teoricamente. O soviete não era uma descoberta da teoria. E a mais alta verdade teórica da Associação Internacional dos Trabalhadores, era já a sua própria existência na prática.

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Os primeiros sucessos da luta da Internacional levavam-na a libertar-se das influências confusas da ideologia dominante que nela subsistiam. Mas a derrota e a repressão que ela cedo encontrará fizeram passar ao primeiro plano um conflito entre duas concepções da revolução proletária, ambas contendo uma dimensão autoritária, pela qual a auto- emancipação consciente da classe é abandonada. Com efeito, a querela tornada irreconciliável entre os marxistas e os bakuninistas era dupla, tendo ao mesmo tempo por objeto o poder na sociedade revolucionária e a organização presente do movimento, e ao passar dum ao outro destes aspectos, as posições dos adversários invertem- se. Bakunin combatia a ilusão de uma abolição das classes pelo uso autoritário do poder estatal, prevendo a reconstituição de uma classe dominante burocrática e a ditadura dos mais sábios, ou dos que serão reputados como tal. Marx, que acreditava que um amadurecimento inseparável das contradições econômicas e da educação democrática dos operários reduziria o papel de um Estado proletário a uma simples fase de legalização de novas relações sociais, impondo-se objetivamente, denunciava em Bakunin e seus partidários o autoritarismo duma elite conspirativa que se tinha deliberadamente colocado acima da Internacional, e que formulava o extravagante desígnio de impor à sociedade a ditadura irresponsável dos mais revolucionários, ou dos que se teriam a si próprios designado como tal. Bakunin recrutava efetivamente os seus partidários sob tal perspectiva: «Pilotos invisíveis no meio da tempestade popular, nós devemos dirigi-la, não por um poder ostensivo, mas pela ditadura coletiva de todos os aliados. Ditadura sem faixa, sem título, sem direito oficial, e quanto mais poderosa menos terá aparências de poder». Assim se opuseram duas ideologias da revolução operária, contendo cada uma delas uma crítica parcialmente verdadeira, mas perdendo a unidade do pensamento da história e instituindo-se, a si próprias, em autoridades ideológicas. Organizações poderosas, como a social-democracia alemã e a Federação Anarquista Ibérica, serviram fielmente uma e outra destas ideologias; e em toda parte o resultado foi grandemente diferente do que era desejado.

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O fato de olhar a finalidade da revolução proletária como algo imediatamente presente constitui, ao mesmo tempo, a grandeza e a fraqueza da luta anarquista real (porque nas suas variantes individualistas, as pretensões do anarquismo permanecem irrisórias). Do ponto de vista do pensamento histórico da moderna luta de classes, o anarquismo coletivista retém unicamente sua conclusão, e sua exigência absoluta desta conclusão traduz-se igualmente no seu desprezo deliberado pelo método. Assim, sua crítica da luta política permaneceu abstrata, enquanto sua escolha da luta econômica não se afirmou, ela própria, senão em função da ilusão de uma solução definitiva arrancada de uma só vez nesse terreno, no dia da greve geral ou da insurreição. Os anarquistas têm um ideal a realizar. O anarquismo é a negação ainda ideológica do Estado e das classes, isto é, das próprias condições sociais da ideologia separada. É a ideologia da pura liberdade que iguala tudo e que afasta toda a ideia do mal histórico. Este ponto de vista da fusão de todas as exigências parciais deu ao anarquismo o mérito de representar a recusa das condições existentes no conjunto da vida, e não em torno de uma especialização crítica privilegiada, mas esta fusão, ao ser considerada no absoluto, segundo o capricho individual, antes da sua realização efetiva condenou também o anarquismo a uma incoerência demasiado fácil de constatar. O anarquismo não tem senão a redizer e a repor em jogo, em cada luta, a sua simples conclusão total, porque esta primeira conclusão era desde a origem identificada com a concretização integral do movimento. Bakunin podia, pois, escrever em 1873, ao abandonar a Federação do Jura: «Nos últimos nove anos desenvolvemos no seio da Internacional mais ideias do que o necessário para salvar o mundo, [como] se as ideias por elas mesmas pudessem salvá-lo, e desafio quem quer que  seja a inventar uma nova. O tempo já não está para ideias, mas para fatos e atos». Sem dúvida, esta concepção conserva do pensamento histórico do proletariado a certeza de que as ideias devem tornar-se práticas, mas ela abandona o terreno histórico ao supor que as formas adequadas a esta passagem à prática já estão encontradas e não variarão mais.

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Os anarquistas, que se distinguem explicitamente do conjunto do movimento operário pela sua convicção ideológica, vão reproduzir entre si esta separação das competências, ao fornecer um terreno favorável à dominação informal, sobre toda a organização anarquista, pelos propagandistas e defensores da sua própria ideologia, especialistas, via de regra, medíocres na medida em que sua atividade intelectual se reduz principalmente à repetição de algumas verdades definitivas. O respeito ideológico da unanimidade na decisão favoreceu antes de mais nada a autoridade incontrolada, na própria organização, dos especialistas da liberdade; e o anarquismo revolucionário espera do povo liberto o mesmo gênero de unanimidade, obtida pelos mesmos meios. De resto, a recusa de considerar a oposição das condições entre uma minoria agrupada na luta atual e a sociedade dos indivíduos livres alimentou uma permanente separação dos anarquistas no momento da decisão comum, como o mostra o exemplo de uma infinidade de insurreições anarquistas na Espanha, limitadas e esmagadas no plano local.

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A ilusão, sustentada mais ou menos explicitamente no anarquismo autêntico, é a iminência permanente de uma revolução que deverá dar razão à ideologia, e ao modo de organização prático derivado da ideologia, ao realizar-se instantaneamente. O anarquismo conduziu realmente, em 1936, uma revolução social e o esboço, o mais avançado de todos os tempos, de um poder proletário. Nesta circunstância, é preciso ainda notar, por um lado, que o sinal de uma insurreição geral tinha sido imposto pelo pronunciamento do exército. Por outro lado, na medida em que esta revolução não se concluiu nos primeiros dias, pela existência de um poder franquista em metade do país, apoiado fortemente pelo estrangeiro no momento em que o resto do movimento proletário internacional já estava vencido, e pela sobrevivência das forças burguesas ou de outros partidos operários estatistas no campo da República, o movimento anarquista organizado mostrou-se incapaz de alargar as meias-vitórias da revolução, e até mesmo de defendê-las. Os seus reconhecidos chefes tornaram-se ministros e reféns do Estado burguês que destruía a revolução para perder a guerra civil.
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Trecho do livro "A Sociedade do Espetáculo".