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sábado, 11 de agosto de 2012

Do Discurso Eleitoral ao Discurso Governamental



Do Discurso Eleitoral ao Discurso Governamental

Nildo Viana

Depois das eleições e da pseudestesia de alegria com os novos eleitos, temos a posse e uma nova realidade. Essa mudança ocorre com o novo governo que realiza uma mutação discursiva, passando de um tipo de discurso, o eleitoral, para outro, o governamental.

Todo governo, ao ser empossado, deve trabalhar dentro de um determinado contexto e agir a partir de suas possibilidades, interesses e pressões. Assim, todo governo atua no interior de determinadas condições, que, envolvem a situação mundial, nacional, regional, e os recursos disponíveis (financeiros, humanos, etc.). Essas condições criam limites maiores ou menores dependendo do contexto.

Da mesma forma, todo governo possui seus próprios interesses e essa é a mola propulsora de sua ação. Os seus principais interesses são a manutenção da governabilidade, ou seja, das condições e possibilidade de sua manutenção no governo; o atendimento das demandas particulares dos seus integrantes e aliados; a popularidade. O principal interesse é a manutenção do governo, o que significa garantir um amortecimento dos conflitos sociais, uma base popular e institucional de apoio, privilégios e mordomias para seus integrantes, estabilidade política e financeira, entre outros aspectos. Porém, se a realização destes interesses é difícil por exigir estabilidade e amortecimento dos conflitos sociais numa sociedade marcada pela exploração, dominação e opressão, então é preciso perceber que a dificuldade é muito maior se somarmos os outros interesses de todo governo, que é o atendimento das demandas particulares de integrantes, aliados e apoios e a popularidade. O primeiro elemento geralmente entra em contradição com o segundo e por isso o governo que se sai melhor é o que consegue equilibrar ambas, bem como esconder o primeiro e propagandear o segundo. E é aqui que os recursos disponíveis têm um peso forte, pois para se conseguir fazer isto é necessário um mínimo de competência, o que nem sempre existe, principalmente devido à necessidade de substituir o critério técnico pelo político-partidário. Esses interesses que acompanham todos os governos estão intimamente ligados aos interesses da classe dominante, que também necessidade de manutenção da governabilidade, estabilidade política e financeira, amortecimento das lutas de classes, etc. Os interesses do governo são condições de possibilidade para a reprodução das relações de produção capitalistas e, por conseguinte, dos interesses da classe dominante. Assim, interesses do governo e interesses da classe dominante são complementares. Isso não impede que determinados setores da classe dominante possam ter divergência de interesses com determinado governo, pois existem conflitos intercapitalistas e pressões destes setores sobre o governo.

Como já colocamos, tais interesses possuem dificuldades de concretizar e possuem contradições. Contudo, não é este o único problema de um governo, pois as condições e pressões podem ser outros elementos que impossibilitam a concretização dos seus interesses principais. As pressões são as demandas externas, tanto as da população em geral, quanto à de grupos específicos, classes sociais, oposição partidária, meios de comunicação, setores da classe dominante, rivalidades internas no bloco dominante, etc. Algumas pressões são mais fortes, mais organizadas, mais poderosas, outras menos, algumas mais gerais, outras mais específicas. Se as condições externas forem desfavoráveis, as pressões tendem a aumentar, a satisfação dos interesses tende a se restringir, e assim o apoio popular e de aliados tende a reduzir cada vez mais.

Isto tudo cria um quadro de possibilidades que conta ainda com as pessoas concretas que estão no governo, tanto no nível da competência quanto no nível da personalidade, convicção política, etc., que pode ter um caráter mais coletivo (partidos programáticos mais definidos) ou individual (principalmente com maior poder de decisão, como presidente, governador, prefeito).

O processo eleitoral marca uma competição pelo poder que gera um tipo específico de discurso. Trata-se de um tipo de discurso cuja determinação fundamental é o objetivo de ganhar a eleição [1]. Para ganhar a eleição, é necessário constituir um discurso que convença os eleitores a escolher o candidato que profere tal discurso. Para ganhar a eleição é preciso convencer um determinado número de eleitores, geralmente alto, principalmente para os cargos majoritários, em votar no candidato que o profere, ao lado de outras estratégias (brindes, favores, etc.). O discurso eleitoral assume, para os cargos do poder executivo, que exige um maior quantum de votos, que seja policlassista (Viana, 2003) e que quando se dirige a um público específico, este deve ser grande e deve ser feito de tal forma que não entre em contradição com outra parte do eleitorado, sento tendencialmente moderado e evitando o conflito de interesses. A ideologia da representação é outro elemento que deve estar presente no discurso eleitoral (Viana, 2003).

Porém, existem outras características particulares. O discurso eleitoral é o das promessas e da humildade, marcado pelo otimismo e voluntarismo, pois precisa garantir o número de eleitores suficientes para ganhar as eleições. O otimismo deve aparecer para dar esperança de resolução dos problemas existentes, promovendo a ilusão de que irá atender às necessidades da população e garantir as condições de governabilidade. O otimismo também fica explicitado nas promessas de campanha, pois elas são o que pode proporcionar votos e quanto mais promessas, mesmo as mais estapafúrdias e irrealizáveis, mais possibilidade há de conseguir aumentar o número de eleitores, principalmente em certos segmentos eleitorais. A humildade é uma necessidade, pois antes de ser eleito, o candidato é apenas candidato, não tem ainda o poder. Sendo apenas candidato, deve se colocar como “servo do povo”, apenas um “representante” da vontade alheia. É um humilde servidor do povo, pois depende do voto deste. Da mesma forma, é um discurso voluntarista, pois precisa mostrar que os problemas existentes possuem solução e, ainda, que ela não se efetivou pela má vontade, corrupção, incompetência ou qualquer outro defeito do outro candidato/partido que estava no governo, e que por isso poderá resolver, basta ser eleito. Nos casos em que o discurso é proferido por um candidato governista, o voluntarismo se mantém, admitindo algumas dificuldades do mandato anterior ou do governante anterior, promovidas por razões alheias à sua vontade e ressaltando suas conquistas e feitos, que abrem possibilidade para sua ampliação e que criou as condições nas quais a vontade do atual candidato é suficiente para resolver os problemas existentes.

Uma vez eleito, esse discurso é substituído por outro. Se o discurso eleitoral é otimista, voluntarista e humilde, o discurso governamental é, ao contrário, o das justificativas das ações concretas e da autoridade, marcado pelo pessimismo e determinismo, principalmente quando a situação é desfavorável ou as promessas eleitorais, devido à disputa e pressão popular, foram exageradas. É um discurso de justificativa e determinista, colocando no governo anterior a responsabilidade das dificuldades e do não cumprimento de algumas promessas e/ou nas condições externas, agora reconhecidas como existentes. O problema dos recursos financeiros para cumprir as promessas, praticamente inexistente no discurso eleitoral, agora assume importância no discurso governamental. As promessas de melhoria de vida são substituídas pela dura realidade das promessas não cumpridas e muitas vezes marcada por uma situação pior e às vezes por políticas estatais contrárias ao do discurso anterior. As dificuldades, necessidade de conhecer a situação, o governo anterior e outras justificativas são apresentadas e o tom muda, o discurso deixa de ser otimista e passa a ser pessimista, sem abandonar totalmente algumas “gotas de otimismo”, uma réplica do pensamento positivo e seu “otimismo em gotas”. A realização das promessas não é simplesmente descartada, mas jogada para o futuro, geralmente longínquo. O voluntarismo é substituído pelo determinismo, o seu complemento natural, pois a vontade só não é mais suficiente, pois tem a “crise internacional”, a situação financeira deixada pelo governo anterior, o período de adaptação do novo governo e inúmeras outras desculpas para justificar a situação existente. O discurso humilde logo se transforma em discurso autoritário, o exercício do poder logo se manifesta não apenas nas práticas (inclusive as repressivas), mas no discurso de autoridade, muitas vezes acompanhado de ameaças.

A metamorfose do discurso eleitoral em discurso governamental é uma necessidade da democracia burguesa, pois ninguém ganha eleição com discurso governamental e nem governa com discurso eleitoral. Essa metamorfose é uma necessidade dos detentores do poder, que buscam manipular a população e se perpetuar no poder. É a prática da classe dominante e suas classes auxiliares, cujo objetivo é manter a governabilidade e a reprodução das relações de produção capitalistas, ou seja, a exploração do proletariado e tudo que é derivado disso. Sem dúvida, não apenas o discurso eleitoral é marcado por estas características, mas também o discurso oposicionista de quem quer tomar o poder estatal mesmo com o uso de armas, que logo muda ao conquistá-lo. Basta lembrar o discurso da Revolução Francesa (“igualdade, liberdade, fraternidade”) ou de Lênin antes do poder (“pão, paz e terra” ou “todo o poder aos sovietes”) e que logo se torna o seu contrário, onde a igualdade e os sovietes, para citar dois exemplos, são rapidamente abandonados. É o caso que se repete em todos os países e lugares, inclusive no Brasil, e às vezes assume ares tragicômicos como no caso de Fernando Collor de Mello, eleito em 1989 com o discurso de “caça as marajás” e contra a corrupção e perde o cargo de presidente para o qual foi eleito graças à corrupção.

Também o discurso eleitoral, em determinados contextos históricos, pode assumir um caráter autoritário, quando crises e radicalização de conflitos colaboram para que parte da população queira um “governo forte” para conter as lutas sociais e reprimir a mobilização popular. Porém, em situações de relativa estabilidade ou com uma conflitualidade moderada, o discurso eleitoral se mantém otimista, voluntarista e humilde. A sua duração é até o governo eleito tomar posse, e o discurso passa a ser pessimista, determinista e autoritário. O discurso político-institucional é marcado pela conveniência e oportunismo.

Referências:

VIANA, Nildo. Linguagem, Discurso e Poder. Ensaios Sobre Linguagem e Sociedade. Pará de Minas, Virtualbooks, 2009.

VIANA, Nildo. O Que São Partidos Políticos. Goiânia, Edições Germinal, 2003.

Notas:

[1] – Claro que alguns candidatos e partidos sabem que não ganharão a eleição, mas usam o processo eleitoral para barganhar cargos e ganhar popularidade para as eleições futuras.

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