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quinta-feira, 28 de junho de 2018

A Música e a Cultura do Ter




DOSSIÊ: REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS E CULTURA

A Música e a Cultura do Ter
                                           
 Edmilson Marques*


O estudo e/ou análise da música na atual conjuntura é um fator de suma importância no sentido de tornar consciente a acepção verdadeira da relação que a música da atualidade mantém com a sociedade. Para isso é necessário antes compreender as formas pelas quais perpassam a estrutura formada pelo capitalismo, já que, predominantemente, é através de suas relações que a música mantém o contato com a sociedade. Marx diz que a partir da estrutura imposta pelo capitalismo:
É produzida uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem gozar das vantagens desta e que, excluída da sociedade, é forçada ao mais decidido antagonismo a todas as outras classes; uma classe que constitui a maioria de todos os membros da sociedade (MARX, 2002, p. 46).
Portanto, esta análise tem como objetivo contribuir para a efetivação de uma sociedade autogerida, que almeja uma realidade perpassada por “uma relação social que nasce com a autogestão das lutas operárias e se universaliza e invade o conjunto das relações sociais” (VIANA, 1996, p. 37). Segundo Nildo Viana a autogestão:
Significa que os próprios ‘produtores associados’ dirigem sua atividade e o produto dela derivado. Abole-se, assim, o estado, as classes sociais, o mercado, etc., já que com a autogestão abole-se a divisão social do trabalho. Consequentemente, abole-se a divisão entre ‘economia’, ‘política’, etc. (VIANA, 1996, p. 33).
Assim, tudo aquilo que ocultamente omite uma relação que vai contra os princípios autogestionários é encarado como, ideológico, falso, não verdadeiro. De acordo com esta visão, teremos como fio condutor de nossos estudos o materialismo histórico o qual permitirá que nos apoiemos na realidade, no concreto, tendo como base primordial o valor da classe subalterna, do homem explorado, destituído de todo o ideário abstrato e ideológico.
Foi no início do século XX, mais precisamente a partir da segunda metade da década de 20, que a música recebeu um tratamento diferente daquele que até então auferia, fator que lhe estruturaria caracteristicamente até os tempos atuais. Em tempos anteriores a música era fator característico de grupos sociais e tinha em sua essência os valores daqueles indivíduos os quais caracterizavam-se pelas atitudes ou consciência não comercial, diferentemente da atitude encontrada na maioria dos indivíduos subjugados pelo capitalismo “moderno”.
Em grupos nativos e/ou pré-capitalistas, por exemplo, a música era utilizada[1] como um dos fatores referente aos ritos e adorações próprias de sua cultura. Diferentemente da forma de execução reproduzida pelo capitalismo, onde se utiliza instrumento musical industrializado, a música em tribos indígenas é expressas à capela (sem a utilização de instrumentos musicais) com a ajuda rítmica dos próprios membros do corpo, mãos e pés, ou mesmo, no caso de grupos pré-capitalistas, com o acompanhamento de instrumentos artesanais. Além disso, a música era uma forma de expressão ou mesmo comunicação entre os indivíduos do próprio grupo. Daí o surgimento dos diferentes ritmos musicais existentes na atualidade, embora, a maioria deles surte efeitos diferentes daqueles de tempos anteriores à década de 20, isto é, provocam o que podemos chamar de efeito amnésico[[2]]. Semelhante à discussão que Bourdieu (1997) faz sobre o efeito causado pelas notícias de variedades, a música, em sua multiplicidade:
Tem por efeito produzir o vazio político, despolitizar e reduzir a vida do mundo à anedota e ao mexerico, fixando e prendendo a atenção em acontecimentos sem consequências políticas, que são dramatizados para deles ‘tirar lições’, ou para os transformar em ‘problemas de sociedade’. (BOURDIEU, 1997, p. 73)
A característica fetichista[3] da música no Brasil tem como marco de seu surgimento o ano de 1927. Essa referência é feita pelo fato de que a partir desta data tem-se a chamada “era de ouro da música brasileira” devido à sua popularização em âmbitos “nacionais”, e até mesmo “internacionais”, que foi permitido pelo avanço do rádio. Além disso, surgem as primeiras gravações[[4]] elétricas e em consequência disto, impressões de discos em alta escala. Estima-se que neste período a indústria tenha produzido mais de 48 mil cópias de discos vinil. Contudo, a partir da década de 30, Getúlio Vargas, institui o DOP (Departamento Oficial de Publicidade), que há nove anos depois se funde no DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) com a finalidade de manter uma fiscalização rígida sobre os meios de comunicação de massa. Com a instituição desses órgãos as programações (musicais, jornalísticas, entretenimentos, esportivas etc.) transmitidas entram para o bojo dos instrumentos repressivos do estado como o objetivo de dificultar e impedir o surgimento de grupos revolucionários, reproduzindo a ordem estabelecida pela classe dominante. A música passa a ser selecionada e aquelas que estimulam o desenvolvimento de uma visão critica da realidade ficam fora das listas de reprodução dos programas musicais. Dessa forma, ela se transforma em um importante fator de legitimação dos valores burgueses, inculcando na sociedade um imaginário de normalidade e aceitação da realidade imposta pelo capitalismo.
Instaura-se um regime de opressão social, cuja manutenção do mesmo, dependeria de políticas extremamente repressivas para o controle comportamental da população. Neste contexto, com o advento do rádio como instrumento de manipulação social a serviço do estado e conseqüentemente se expandindo pelo território, a música amplia seu espaço de alcance que até então era restrita regionalmente e começa a atingir outros grupos culturais. Um exemplo disso está no chorinho que inicialmente era restrito à região do Rio de Janeiro vindo posteriormente a ser conhecido por todo Brasil via radiodifusão e/ou mesmo do samba que no exterior é entendido como uma das principais características dos brasileiros, entre tantos outros exemplos (canções goianas, nordestinas, gaúchas etc., as quais acabam interferindo nas produções musicais de outras regiões). Assim, a interferência cultural através da música tornou constante e os valores almejados pela burguesia ganharam nova forma de serem reproduzidos no imaginário popular.
O que até então era valorizado pela sua essência, agora converte-se em qualidade medida estatisticamente pelas quantidades de cópias vendidas, sendo reduzida à mera “mercadoria”. Ou seja, o disco para a venda passou a ser o principal objetivo da maioria dos produtores e compositores da atualidade. A qualidade musical ficou relegada a grupos reduzidos. Com a predominância do mercado predomina-se também a música desprovida de qualidade. Dessa forma, qualquer coisa se transforma em música e sua repetição pelos meios de comunicação faz parte do jogo almejado pela classe dominante, ou seja, levar a sociedade a consumir tal mercadoria elevando assim a extração do mais valor, isto é, obtenção do lucro.
A qualidade de músicas expressa na quantidade reproduzida é uma falsa consciência criada pelos indivíduos das classes dominantes para ocultar a qualidade daquilo que se vê. O estado como defensor dos anseios desta classe justifica sua essência reproduzindo um imaginário alicerçado nos valores dessa mesma classe onde o ideal não está na qualidade de vida da sociedade, mas sim na quantidade de capital[[5]] a ser produzido, pois:
Sob forma de mercadoria, tem o capital de exercer função de mercadoria. Os artigos que o constituem, produzidos em sua origem para o mercado, têm de ser vendidos, transformados em dinheiro, de realizar portanto, o movimento M-D (MARX, 2003, p. 52).
M-D, quer dizer Mercadoria-Dinheiro. Os valores burgueses respeitam essa lógica de produção, ou seja, tudo que se produz, (a mercadoria, produto da força de trabalho) deve ser transformado em dinheiro. Em contraposição a essa concepção, tem-se o imaginário da classe proletária no qual prevalece o M-D-M, mercadoria-dinheiro-mercadoria, que está expresso na teoria de Marx do valor de uso e valor de troca. O valor de uso contraria os valores burgueses uma vez que adquirido uma mercadoria o seu valor limita-se a suprir uma necessidade de uso do indivíduo, enquanto que para o burguês a mercadoria se destina à troca, à venda, na aquisição do dinheiro, que por sua vez é novamente trocado por outra mercadoria, que novamente é vendida e assim sucessivamente acarretando o acúmulo de capital.
Nesse sentido, a grande quantidade de força de trabalho empregada nas produções musicais faz parte da essência do capital, o qual é sinônimo de exploração. Sendo assim, necessita-se ocultar essa face negra da música produzida para o consumo, para que não emerja consciências revoltosas com essa realidade. Cabe então ao estado, defensor dos interesses das classes dominantes, introjetar na sociedade uma consciência de normalidade da realidade. A superação desta situação em que se encontra a maioria da sociedade está na própria superação da estrutura estabelecida pelo estado. A música como mercadoria é produto da burguesia e tem sua existência legitimada na própria realidade. Seu alvo principal é a classe subalterna que sendo a maioria na composição social recebe um tratamento específico levado-os a acreditar na fidelidade das relações sociais vigentes. Entender a forma que ocorre essas produções musicais e os fatores, já enunciados, que levam às grandes gravadoras a investirem nesta ou naquela música se torna essencial. É o que propomos neste momento.
A música, destinada ao mercado, recebeu todo um aparato técnico chegando a ponto de ser possibilitada previamente a definição do que irá vender ou não, ou seja, no senso comum, o que será sucesso ou não. O sucesso, por sua vez, é um fator manipulado pelas grandes gravadoras. Assim, fazem acreditar que ele é um fator natural de reconhecimento deste ou daquele artista pela sociedade. Que de fato é mas que esse reconhecimento é pré-destinado e definido pelas próprias gravadoras. Para Bagdikian:
Talvez o poder de maior duração das companhias que controlam os meios de comunicação seja o poder de criar idéias e movimentos que, se necessário, podem refletir desejos estritamente particulares do proprietário (BAGDIKIAN, 1993:64).
Essa postura se assemelha à das gravadoras que criam um padrão musical, excluindo das “principais” emissoras de rádios e TVs, a maioria daquelas músicas que não correspondem aos anseios da classe dominante, é o caso das músicas de protesto que, em sua maioria, não são conhecidas pela sociedade. O “sucesso” de produções musicais depende da vontade das gravadoras que detém o monopólio das “grandes” emissoras de rádio, que por sua vez:
É forçado a promover, no interior do ouvinte, uma atitude ingenuamente entusiasta com relação a qualquer material que se lhe ofereça, e assim, indiretamente, em relação ao próprio rádio. Este viés ‘promocional’ do rádio é um obstáculo permanente para se alcançar uma relação adequada com um material musical preeminentemente sério (ADORNO apud CARONE, 2003, p. 480).
Observa-se ainda o surgimento de inesperados “sucessos” que aparecem desvencilhados do poder das grandes gravadoras que ao ser reconhecido pelo “público” acabam caindo nos braços dessas mesmas instituições e sendo moldados conforme seu padrão industrial. Sucesso pressupõe consumo. Consumo, pressupõe capital que, por sua vez, exige a exploração do homem pelo homem.
Em si tratando de qualidade musical enquanto composição em seu conjunto (Letra, melodia e harmonia) a maior parte das músicas da atualidade são desqualificadas e técnicas. Não contribuem para a formação de consciências críticas. Estimulam os indivíduos ao consumo, ao individualismo e oferecem o entretenimento como forma de fuga do sofrimento causado pelas relações sociais que estamos submetidos a viver. O que era “prestigiado” pelo conjunto dos fatores tornou-se venerado por sua simplificação prevalecendo a melodia estereotipada na posse desenfreada de fitas cassetes, CD’s, DVD’s  etc.
  A Indústria Cultural[[6]] - originada a partir da realidade criada pela burguesia - delineia fervorosamente o novo caminho a ser trilhado pela música (a arte num âmbito geral é influenciada por essa indústria), ou seja, o caminho do negócio, do comércio. Como instrumento ideológico dessa classe ela encara o homem como objeto, como coisa e tem como objetivo ocultar a realidade do capitalismo. Além disso ela proporciona ao homem necessidades que ultrapassam as necessidades básicas e necessárias para se viver (casa, comida, lazer, etc), ou seja, incube-se de produzir em larga escala, objetos, coisas voltados para o consumo incessante. O desejo sofre interferência desta indústria que causa à sociedade uma sensação de querer cada vez mais a posse de tais objetos. Esta indústria, “só se interessa pelos homens como clientes e empregados” (ADORNO, 1985, p. 137).
Esse imaginário consumista passa a ser difundido pelos meios de comunicação (Televisão, rádio, revistas, jornais, panfletos etc.), sendo legitimado como mera reação “natural” do indivíduo. O comportamento de uma população está alicerçado nos jogos ocultos do estado, ou seja, através das diversas instituições[[7]] existentes na sociedade o comportamento dos indivíduos passa a ser manipulado para servir aos interesses da classe dominante. Portanto, a música entra nesse jogo ideológico onde a quantidade de discos vendidos expressa, ocultamente, o jogo armado pela burguesia para o benefício próprio, o que é recebido e aceito passivamente pela sociedade. O anseio consumista, ou o desejo de ter aquilo que é propagado pela mídia advém dos valores da burguesia.
A felicidade propagada a partir do imaginário burguês está ligada ao consumo e posse dessas coisas materiais. Assim, essa felicidade passa a depender fervorosamente da posse de uma quantidade elevada de capital, definido pela mesma como o mediador de suas relações. O capital, por sua vez, só pode ser conseguido através da exploração da força de trabalho da classe operária (mais-valia). Dessa forma, a música, como mercadoria, se transforma num fator importante para a classe dominante, onde além de ter a função de agente manipulador se transforma em um meio fácil de acúmulo de capital. A música então é elevada a uma coisa, reduzida a uma mercadoria (simbolizada em discos, CDs, fitas cassetes, DVDs, etc.), cuja função agora é a obtenção de lucro.
O rádio, como parte integrante da indústria cultural também teve seu papel fundamental na reprodução desse ideário consumista. Ele foi naturalmente desenvolvendo esta habilidade indutiva. Foi o meio didático/pedagógico mais eficaz na educação da sociedade para o consumo dessas produções. Assim, com o monopólio das emissoras radiofônicas asseguradas, as grandes gravadoras puderam escolher o que colocar à venda ou não. Para perceber essa técnica desenvolvida basta entender a lógica de suas trançadas ações, onde, ao produzir uma música, enviam-nas para as emissoras de rádio mais legitimadas, as quais estão sob o poder dessas mesmas gravadoras. A música então passa a ser veiculada sucessivamente. Conta-se ainda que acorda-se a quantidade de vezes a veicular a música ao dia e mesmo a hora. Esta última se define nos momentos de pique do comércio, o que atingiria um maior número de indivíduos. Na atualidade há estimativas de músicas que são reproduzidas dezoito mil vezes ao dia, somando todas as veiculações em âmbitos nacionais, o que pode ser ultrapassado por aqueles que atingem as fronteiras internacionais. Naturalmente, essa amplitude alcançada pela música atinge diretamente o consciente do indivíduo que, em consequência das repetições, é estimulado a adquiri-la por meio da compra de fitas, CD’s, DVD’s, etc,.
Neste momento pode-se notar que ao buscar a aquisição de uma dessas mercadorias em lojas legalizadas[[8]] um indivíduo da classe operária não consegue adquiri-la devido ao “alto custo” cobrado. Não conseguindo a aquisição por meios “legais” resta então recorrer ou estimular à “pirataria[[9]]”. A pirataria, por sua vez, passa a ser perseguida pelo estado o qual defende o monopólio e exclusividade das grandes gravadoras. Porém, paradoxalmente, mesmo sendo tachada como ilegal, a pirataria acaba por cair nas intenções almejadas pelo sistema e aceita pelo mesmo. Embora as “mercadorias” produzidas e vendidas via “mercado livre” sejam de acesso aos indivíduos subalternos, não fazem nada mais do que reproduzir e legitimar a realidade baseada nas relações entre dominantes e dominados. Essas ações legitimistas da população, por mais perseguidas que sejam, recebem uma aceitação por parte do estado, pois, tira dele a responsabilidade sobre a mesma. Assim como os filmes de animação, a música:
Faz mais do que habituar os sentidos ao novo ritmo, eles inculcam em todas as cabeças a antiga verdade de que a condição de vida nesta sociedade é o desgaste contínuo, o esmagamento de toda resistência individual. Assim como o Pato Donald nos cartoons, assim também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem (ADORNO, 1985, p. 130).
  As músicas comercializadas via clandestinidade recebem um maior consumo pelos indivíduos das classes oprimidas. Portanto, essas aquisições surtem um outro efeito na consciência do indivíduo, isto é, o efeito simbólico. Os intérpretes das músicas, massificados nas estampas das mercadorias, passam a ser reverenciados e idolatrados pela sociedade recebendo um tratamento diferenciado. Os programas televisivos, instrumento fundamental da Indústria Cultural, estruturam programas “fast-food cultural, alimento cultural pré-digerido, pré-pensado” (BOURDIEU, 1997, p. 41), no intuito de um outro comércio paralelo, o do lucro via audiência. Eles conduzem:
a um mundo musical fictício dominado pelos nomes de personalidades, etiquetas estilísticas e valores pré-digeridos que não podem ser ‘experienciados’ pela audiência destes programas; na verdade, o programa apresenta o material de modo a fomentar, de modo proposital ou não, atitudes estereotipadas e convencionais, ao invés de levar à compreensão concreta do sentido musical (ADORNO, 2003, p. 480).
Por outro lado, com a reprodução em massa da imagem dos intérpretes musicais, acabam recebendo uma espécie de seguidores como é o caso dos coveres[[10]]. Essa consciência da busca do sucesso pode ser encontrada nos indivíduos das diversas bandas que surgem em fundos de quintais e principalmente bandas de adolescentes que se espelham em “grandes artistas” na tentativa de um reconhecimento comercial. Contudo, essa busca se torna contraditória. Uma vez enfatizada a idolatria dificulta-se a percepção dessa mesma realidade. A realidade paternalista, do poder centralizado, individualista, vinculado ou suportado pelas relações voltadas para os interesses das classes dominantes, a qual está em constante contradição com o imaginário coletivo, verdadeiramente libertário, autogestionário.
  Essa consciência comercial, fetichizada, coisificada, vem sendo propagada a todo instante, especificamente, pelos meios de comunicação de massa. A música, produzida com finalidades comerciais, legitima e reproduz maciçamente a cultura dominante do ter. Marx já chamava atenção a isso quando ele falava do valor de uso e valor de troca. O ter no sistema capitalista prevalece sobre o ser, sobre a vida. A vida passou a ser valorizada pelo ter. No entanto, aquele que possui um maior poder econômico/material, recebe uma “valorização” maior do que aquele que não possui nada além de sua força de trabalho. O valor do ser humano dentro da lógica do capitalismo – a realidade criada pela e para a classe dominante – dá lugar às suas produções. Prevalece o valor material enquanto que o valor humano passa para um segundo plano. Para a burguesia importa a quantidade de mais-valor extraído, não importa a forma pela qual perpassa essa extração. Dessa forma, a vida deixa de ser o fator relevante, pois, o imaginário difundido por ela é o de que a continuação da vida humana (ser) depende do capital (ter). Isso é somente uma forma de fazer a sociedade continuar aceitando essa forma invertida de vida, o que, naturalmente, mantém os seus privilégios enquanto classe dominante. Sendo a vida condicionada pela existência do capital então por que as sociedades que são desprovidas do mesmo, onde o ser prevalece sobre o ter, conseguem continuar vivendo mesmo em condições desumanas? a resposta pode ser encontrada com facilidade na própria realidade, o lugar onde a burguesia está em constante conflito com as classes oprimidas na busca constante da continuação e manutenção de seus privilégios e status de classe dominante. Ou seja, a dependência do capital é uma crença criada pela burguesia a partir da realidade por ela estabelecida. A possibilidade de uma realidade destituída de relações superficiais é consistente e dispensa as críticas ideológicas. O contexto almejado pela classe oprimida é imune dessas interpretações abstratas. Nela o capital não tem vez, a vida sim.
Portanto, a música almejada pela burguesia fortalece os laços do ter. A cultura do ter é o valor almeja por esta classe e a característica essencial do capitalismo. O ter acaba sendo reproduzido pela sociedade, recebendo sua legitimação através da música, que é levada a acreditar que esse valor de posse é um valor natural do ser humano, universal, que não pode ser extinto. Erich Fromm diz que:
A maioria das pessoas acha muito difícil renunciar a tendência a ter. Qualquer tentativa no sentido dessa renúncia suscita intensa ansiedade e sentimento de perda de toda segurança, como o jogar-se no mar sem saber nadar. Essas pessoas não sabem que ao desfazer-se das muletas da propriedade, podem começar a utilizar suas próprias forças e andar por si mesmas. O que as mantém atadas é a ilusão de que não poderiam andar por si mesmas, e que entrariam em colapso se não estivessem amparadas pelo que possuem (FROMM, 1976, p. 98).
Essa dificuldade na qual ele fala está diretamente relacionada às relações estabelecidas pelas classes dominantes. As músicas culturalmente industrializadas transferem e reproduzem o imaginário dependente do ter. Além disso, instigam à seleção, à concorrência[[11]], imprimindo de uma maioria a força do trabalho ao privilégio de uma minoria, legitimando um sistema global. Contudo, a música enquanto expressão humana desprovida de ideologia terá seu apogeu juntamente com a transformação estrutural desta sociedade na qual vivemos. Enquanto a sociedade estiver assentada nos moldes sistematizados pelo capitalismo, prevalecerão as produções musicais voltadas para o consumo, além disso, continuarão prevalecendo as práticas voltadas para o domínio do capital.
  Em âmbitos políticos globais se torna difícil pensar a música como algo que pudesse trazer para a sociedade subalterna um conhecimento verdadeiro e consciente da atual realidade, já que predomina a música comercialmente produzida. As letras, em sua maioria, são dotadas de um vazio conceitual e não instigam o indivíduo a conhecer as relações sociais que o cercam. Consequentemente, mantendo um contato constante com a sociedade, essas músicas passam a agir na consciência do indivíduo, através de sua técnica harmônica, privando-o do verdadeiro conhecimento da realidade, munindo-o de conhecimentos e ou valores falsos. A análise da música requer uma contextualização. Não basta simplesmente criticá-la com finalidade em si mesma. Não caiamos no erro de buscar compreendê-la em sua estrutura simplesmente. Façamos do estudo da música um meio de compreensão de um contexto global o qual é o causador primeiro das mudanças regionalizadas e localizadas. Mudanças essas responsáveis pelo adiamento de uma verdadeira transformação.
Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor W e HORKHEIMER, Marx. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
BAGDIKIAN, Bem H. O Monopólio da Mídia. São Paulo: Scritta, 1993. 
CARONE, Iray. Adorno e a educação musical pelo rádio. Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, 2003.
BOURDIEU. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
FROMM, Erich. Ter ou Ser?. 4ª edição, Rio de Janeiro: Guanabara, 1976.
MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Centauro, 2002.
MARX, Karl. O Capital. Crítica da economia política: livro II, 9ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
VIANA, Nildo. A Questão dos Valores.  Revista Cultura & Liberdade, Goiânia, ano 2, nº 2, Abril de 2002.
VIANA, Nildo. O Que é Autogestão. Revista Ruptura, ano 3, nº 4, Goiânia, 1996.
VIANA, Nildo. O Que São Partidos Políticos. Goiânia: Edições Germinal, 2003.







* Professor da Universidade Estadual de Goiás; Doutor em História/UFG e pós-doutor/UFG.
[[1]] É o que ainda pode ser notado em tribos indígenas existentes na atualidade.
[[2]] Amnésico vem do termo amnésia que significa a perda de memória, esquecimento, que é guiado pela mídia, produzindo uma seleção adequada ao mercado e aos interesses do capital.
[3] O fetichismo é um processo no qual o indivíduo produz algo e não se reconhece neste seu produto, tomando-o como algo independente e assim passa a adora-lo. O criador passa a adorar sua criatura e pensar que ela tem vida própria (VIANA, 2003, p. 85).
[[4]] Francisco Alves e Carmem Miranda foram um dos primeiros intérpretes brasileiros massificados pelo rádio.
[[5]] Embora reduzimos o capital aqui à moeda, ao papel dotado de valor econômico (dinheiro), expomos a importância do entendimento da face oculta dessa “coisa”, que remete, “fundamentalmente, uma relação social, uma relação de produção” (VIANA, 1996, p. 32) enfim, um contexto de servidão e exploração.
[[6]] “A Indústria Cultural permanece a indústria da diversão. Seu controle sobre os consumidores é mediado pela diversão” (ADORNO, 1985, p. 128). E diversão significa “estar de acordo. Isso só é possível se isso se isola do processo social em seu todo, se idiotiza e abandona desde o início a pretensão inescapável de toda obra, mesmo da mais insignificante, de refletir em sua limitação o todo. É não ter que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado” (ADORNO, 1985, p. 135).
[[7]] Escolas, polícia, meios de comunicação de massa, o poder judiciário, etc. Além desses conta-se ainda com a propriedade, base da exploração do homem pelo próprio homem.
[[8]] A legalização é uma criação da burguesia no intuito de proteger o capital, fonte de seus privilégios.
[[9]] A palavra “pirataria” é derivada de pirata referente aos ataques realizados no período colonial por piratas a navios em busca de ouro, que em termos ideológicos pode ser entendido como a apropriação da propriedade do outro. Modernamente, em um linguajar burguês, a pirataria é definida como o ato de copiar algum produto, ideia ou serviço, tentando fazer com que não se note a diferença entre a cópia e o original. O que não foge do conceito anterior. Um indivíduo que tem sua vida suportada na troca do que produz pelo capital e a partir de certo momento essa sua produção começa a ser reproduzida e apropriada por outra pessoa, naturalmente ocorre a diminuição da sua renda e, consequentemente, do seu lucro. Contudo, lucro é propriedade, um fator que estimula a luta de classe. As contradições não acabarão no simples fato de se extinguir a pirataria ou a “ilegalidade”, essa é uma visão conformista para com a realidade. Precisamos sair dessas interpretações axiológicas e partir para uma libertação dessas entranhas burguesas, atingindo seu apogeu na autogestão.

[[10]] Relacionando-se com a música, o Cover é aquele que segue o estilo musical, ou mesmo físico (aparência), de outro intérprete já reproduzido e legitimado pelos meios de comunicação de massa. É uma espécie de contrafação do outro. O cover geralmente toma para si o nome daquele que está imitando.
[[11]] A concorrência advém da cultura burguesa, “é a vida do comércio e a livre concorrência exige que o mercado decida quem deve sobreviver” (BAGDIKIAN, 1993, p. 128).
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Publicado originalmente em:

Revista Sociologia em Rede, vol. 5 num. 5 2015

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