Subjetivismo e Movimentos Sociais:
Ou
quando o feitiço se volta contra o feiticeiro
Daniel
dos Santos Simon de Carvalho
Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de
Goiás, graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
O fenômeno do
subjetivismo começou a tomar conta dos movimentos sociais na segunda metade do
século XX, e suas conseqüências são sentidas até hoje. Por movimentos sociais
tomo o conceito de Gohn (2011, p. 335) como “ações sociais coletivas de caráter
sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas de a população se
organizar e expressar suas demandas”. E por subjetivismo, entendo o que Alonso
(2009, p. 61) coloca como uma demanda de movimentos que “em vez de demandar
democratização política do Estado, demandaria uma democratização social, a ser
construída não nos planos das leis, mas dos costumes”.
A partir da
década de 1960, muitos fenômenos que até então eram delegados como questões de
“segunda ordem” ou tratados como “problemas menores”, passaram a figurar no
debate político. Partindo das questões de quem produz o discurso, muitos
movimentos se pautaram na crítica de sua produção. Nos anos 1960, pode-se
considerar que três movimentos que emergiram: De negros por direitos civis,
pelo direito das mulheres, movimentos críticos ao estilo de vida ocidental
(como os hippies) e o ambientalismo. Movimentos anticolonialistas em diversos
países da África e da Ásia, também datam a década de 1960 e 1970. A partir da década de
1980 e 1990, as questões que envolvem identidade de gênero e sexualidade também
ganham o cenário político. Tornando-se conhecidos como “novos movimentos
sociais”, que deslocaram a crítica do mundo do trabalho e da questão de classe,
para o corpo e a cultura. Focando-se em contestações em “pós-materialistas”, em
contraponto as lutas fabris e sindicais. (Melucci, 1989).
Esses novos
grupos, em toda sua efervescência, dirigiam sua critica não só aos seus
respectivos antagonistas, mas também a movimentos de cunho classista acusados
de centrar suas análises em homens, brancos, heterossexuais e
euro-estadunidenses, tratando tal movimento como universal. Por isso, no
desenrolar das tramas, muitos discursos hegemônicos foram fragmentados,
defendendo a pluralidade, a polifonia e a sobreposição de narrativas.
As críticas
intelectuais e políticas desses movimentos passaram a figurar posteriormente
aos eventos da década 1960 naquilo que ficou conhecido como “pós-modernidade”,
focando em um ataque feroz as metanarrativas (como o marxismo), buscando
refugio em argumentos mais subjetivos, que buscavam conservar a multiplicidade
a partir da individualidade de respectivos grupos sociais[1].
Na atualidade, a
“pós-modernidade” e sua crítica (mesmo que muitas vezes esta apenas culmine em
novas narrativas pós-modernas), se deflagram em novos confrontos que vemos
cotidianamente. O aspecto subjetivo (ou pós-material) e a defesa das múltiplas
narrativas continuam presente no discurso dos novos movimentos sociais. No
entanto, é preciso destacar que algumas questões bem objetivas que não são
abordadas por esses movimentos. Ainda vivemos sob a égide do capitalismo e suas
leis, e as opressões que esses diversos grupos sofrem não serão superadas
integralmente, se não passarem também pelas questões de classe. Inclusive, a
desconsideração desses aspectos podem minar as próprias lutas dos respectivos
movimentos citados.
Tornou-se comum que
membros de movimentos sociais façam defesas apaixonadas, recorrendo para
argumentos de uma suposta “vivência” (palavra da moda), que dá apenas aos
participantes a capacidade e a compreensão daquilo que se passa e se discute em
seu interior, e, portanto de sua crítica (ou melhor, da autocrítica neste caso),
e da respectiva opressão que se combate. Isso muitas vezes se traduz em frases
de efeito como: “somente o negro pode falar sobre o racismo”, “somente a mulher
pode falar sobre machismo”, “somente os gays podem falar sobre homofobia”.
Primeiro, que por mais
que seus membros não queiram que agentes externos dêem “palpites” sobre sua
militância, isso não vai deixar de acontecer, justamente porque esses
movimentos estão em evidência. Segundo, considero extremamente problemático,
quando um movimento se fecha as críticas. Como ele poderá avançar se não se
propõe a um debate? E terceiro, apelar para argumentos subjetivistas de
vivência é uma forma cômoda de fugir da crítica, porém também desarma aquela
outra crítica que se destina ao respectivo “opressor” antagonista.
Atualmente, o capitalismo vive mais uma crise.
E claro, que os ideólogos dominantes estimulam a inversão da realidade,
retirando a culpa da crise de seu caráter “sistêmico” e transportando a culpa
em outros elementos idealistas, como por exemplo, os imigrantes que vão de
países periféricos para os centrais. A questão material se estende para questão
simbólica, gerando uma luta cultural, mas o cerne da questão continua na base
material. E claro nos momentos de crise, acentuam-se as opiniões diversas.
Tanto a esquerda – podendo ser reformista ou revolucionária – como a direita –
liberal e conservadora – começam a propor suas pautas.
No Brasil e outros países
do mundo, nota-se um avanço do conservadorismo, muito por culpa de uma esquerda
inoperante[2].
Tornou-se comum na atualidade a relativização de formas de opressão como o
racismo, o machismo e a homofobia. Pode-se dizer que existe uma espécie de
lugar comum, que justifica esse relativismo a partir de termos como: “o racismo
só acabará quando pararmos de falar dele”[3], “não sou machista e nem feminista, sou humanista”[4]
ou “se temos um dia do orgulho LGBTT[5],
por que não se pode ter um dia do orgulho heterosexual?” Esses argumentos possuem
o mesmo cunho subjetivista (e relativista) que busca a individualização das
interpretações, mas neste caso para fins de conservar relações de poder
hegemônicas. Existem grupos e páginas em redes sociais com nomes do tipo
“orgulho de ser hetero”, “orgulho de ser branco”, aliás, recentemente o atual
presidente da câmara dos deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ) propôs um projeto de
lei para criação do “dia do orgulho heterossexual”[6]
Todos esses argumentos se justificam na mesma premissa da suposta crítica dos
movimentos sociais. O homofóbico, o racista, o machista, o xenófobo, podem muito
bem – a partir dessa retórica – justificar seus preconceitos, usando
subterfúgios de experiências pessoais. E por isso o título do artigo: “Quando o
feitiço se volta contra o feiticeiro”. Pois a mesma retórica argumentativa
usada pelos novos movimentos sociais, pode voltar contra eles próprios.
No entanto, por trás
desses preconceitos existem questões bem materiais e objetivas, mas que, no
entanto são camufladas por aspectos simbólicos e subjetivos, jogando os membros
da classe trabalhadora uns contra os outros. Como por exemplo, um estadunidense
que culpa os imigrantes latinos pelo aumento desemprego em seu país, não
levando em conta aspectos muito mais o processo de reestruturação produtiva e
as políticas neoliberais.
Opressões existem, e
reconheço à legitimidade da luta dos novos movimentos sociais. Não nego a
importância das lutas de emancipação de mulheres, negros, gays, lésbicas e etc.
e sim esses movimentos tem muito a nos ensinar, no entanto isso não descarta o
debate crítico que deve ser travado, de cunho mais material que está para além
dos próprios movimentos. É necessária uma intersecção uns com os outros, e
principalmente resgatarem as questões de classe. É curioso notar que esse
fenômeno tem um aspecto dialético, já que ao mesmo tempo em que serve como
defesa dos movimentos sociais, também desarma o ataque contra seus alvos. O
caráter predominantemente subjetivista (ou pós-material) desses movimentos mina
sua ação, e permite que esse mesmo caráter seja usando por aqueles que se
pretende criticar. Ficar limitados a aspectos de auto percepção, ou de
“aparência”, em sentido marxista, impede a compreensão da totalidade e por
consequência a práxis que levaria a ruptura das relações de dominação.
Referências:
ALONSO, Angela. As Teorias dos Movimentos
Sociais: Um Balanço do Debate. Lua Nova, São Paulo, v. 1, n. 76, pp. 49-86,
2009.
GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais
na Contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n.
47, mai-ago, 2011.
MELUCCI, Alberto. Nomads of Present. Social moviments and individual needs in contemporany
society. Filadélfia:
Temple University Press, 1989.
[1] O fim da união soviética também
reforçou mais ainda as narrativas pós-modernas ao culminar no surgimento de
muitos países novos, reforçando mais ainda a fragmentação e a polifonia.
[2]
Os motivos disso são diversos. Se tratando de Brasil, a meu ver, o Partido
dos Trabalhadores (PT), conseguiu desmobilizar e cooptar diversos movimentos e
sindicatos, lhes retirando autonomia e combatividade. No entanto, este tema é
muito complexo para ser abordado neste artigo.
[3] Frase distorcida que foi atribuída
ao ator estadunidense Morgan Freeman durante uma entrevista, cujo objetivo é
querer dizer que o racismo não acaba, porque as pessoas sempre trazem essa
temática a tona.
[4] Frase geralmente proferida por
pessoas que buscam deslegitimar o feminismo, tratando-o com uma espécie de
“machismo reverso”, apelando para uma vaga noção de “humanismo” que abrangeria
uma luta por todos os seres humanos, mas que nada tem a ver, por exemplo, com
os estudos humanistas realizados por Karl Marx.
[6] Link do site do deputado: http://www.portaleduardocunha.com.br/projeto-de-lei-n%C2%BA-1672-de-2011/11/616.html.
Acessado no dia 07 de março de 2015.
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