BILLY
LIAR: SONHO E COVARDIA
Nildo Viana
O filme O Mundo
Fabuloso de Billy Liar (John Schlesinger, EUA, 1963) é um filme que
aparentemente é despretensioso, mas, no fundo, trata de uma questão fundamental
para os seres humanos. Billy Liar é um sonhador. Ele sonha para fugir da
cotidianidade capitalista. O filme, no fundo, realiza uma contraposição entre tal
cotidianidade e a insatisfação e sonhos que ela gera nos indivíduos. No início
do filme, as donas de casa buscam fugir da cotidianidade massacrante na qual não
podem desenvolver suas potencialidades através do rádio e da música, que
promovem, com o locutor citando seus nomes, um reconhecimento social que faz
ficar mais fácil suportar esse mundo vazio e repetitivo promovido pela divisão
social do trabalho. Além dessas “satisfações substitutas”, para usar termo
psicanalítico, há outra forma de fugir do cotidiano: o sonho acordado. Billy
Liar ilustra essa forma de evasão e o universo ficcional do filme gira em torno
disso.
Após a cotidianidade das donas de casa, o filme mostra o início
do dia de Billy Liar. A dificuldade de acordá-lo para que ele vá para o
trabalho, pois ele está sonhando (acordado) que é um líder que luta pela
democracia e contra a ditadura. Ele é um membro da classe subalterna, um
empregado de escritório, que tenta dar sentido à sua cotidianidade através dos
sonhos de grandeza, nos quais ao invés de subordinado é líder. Assim, os sonhos
de Billy Liar mostram uma consciência contraditória: recusa a subordinação à
qual está submetido, mas aponta para sua superação tornando-se o líder e não mais
o “liderado”. As relações familiares também são motivo de insatisfação, pela situação
financeira (daí sonhar que sua família se tornou rica) e as cobranças, o que
significa negar a família (por causa das cobranças) e querer o melhor para ela
(a riqueza), em sua concepção.
O mundo fabuloso de Billy Liar consiste em suas fábulas e
revelam sua insatisfação, que, algumas vezes, manifesta o sentimento de ódio,
tal como nas cenas em que imagina metralhar outras pessoas (família, namorada,
etc.). Assim, um cotidiano marcado pela reprodução do capitalismo, nas
cobranças familiares de se tornar um adulto responsável, na cobrança de
casamento das namoradas, na cobrança de responsabilidade no emprego, mostra um
adulto inadaptado, infeliz, que ainda gostaria de ser um jovem[1] não inserido no mundo adulto
do trabalho, dos compromissos familiares, das relações amorosas. Billy Liar acaba
enfrentando diversos problemas derivados de sua insatisfação e do modo como
trabalha com ela: sonhos e mentiras. Os sonhos aliviam seu sofrimento (derivado
de sua não realização como ser humano e seu cotidiano insatisfatório) e as
mentiras são a forma como ele busca fugir dos seus problemas, da
responsabilidade e das atividades insatisfatórias. Ele foge da sua
responsabilidade no trabalho ao não entregar os calendários que o patrão
ordenou, foge do compromisso com as duas namoradas problemáticas, etc.
Billy Liar foge através da evasão[2]. A fuga da realidade é
acompanhada por uma pequena esperança de mudança. Assim, os “sonhos acordados”
de Billy Liar não geram uma “utopia”, como diria Ernst Bloch, mas geram a ideia
de superação de uma determinada realidade social. Ele pensa em se tornar um
roteirista e buscava concretizar isso através de um contato com o Danny Boon,
um comediante de TV. Assim, ele é um
sonhador e tenta concretizar um sonho realizável, ser roteirista. Isso é
compartilhado por Liz, que é diferente das duas namoradas que possui. Liz
também é sonhadora, mas sem os defeitos de Billy Liar, e corre atrás dos seus
projetos e por isso já mora em Londres e não na pequena cidade do interior em
que nasceu. Eles fazem planos e Liz convence Billy Liar a viajar para Londres à
meia noite. Ele tem imprevistos, como a morte da avó, mas consegue chegar e
encontrar com Liz, mas inventa uma desculpa para descer do trem e acaba não
voltando e perdendo a viagem.
Billy Liar acaba revelando que é um grande sonhador, mas tem
medo, não luta por concretizar seus sonhos mesmo quando tem a oportunidade.
Perde Liz e o sonho. Ele foge da realidade, mas ao mesmo tempo foge da
liberdade. A covardia é mais forte do que o sonho. Ele prefere voltar para a
segurança do seu lar, apesar de toda insatisfação e se refugiar num mundo de
fábulas e fantasias, tal como mostra o seu retorno para casa após perder o trem,
ao invés de realizar os seus projetos, os seus sonhos. Billy Liar é uma expressão
de milhões de indivíduos que estão insatisfeitos, sonham e projetam, não
conseguem e quando possuem oportunidade, se acovardam e retornam para a sua
cotidianidade. A fuga da liberdade que se observa até nos indivíduos que se
dizem revolucionários, aqueles que teriam sonhos utópicos mais amplos, mas logo
cedem ao pragmatismo, à escolha do “menos ruim” e até mesmo à defesa daquilo
que condenam. Billy Liar é uma legião, pois eles são muitos. Mas assim como
existem milhões de Billy Liar, existem milhares de Liz e por isso a esperança e
a luta pela realização dos sonhos e projetos continua.
[1] Sobre juventude e o mito
do adulto-padrão, veja: VIANA, Nildo. A Dinâmica
da Violência Juvenil. Ar editora, 2014; VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios sobre a Condição Juvenil. São Paulo:
Giostri, 2015.
[2] Alguns chamariam de “alienação”,
mas este termo, no sentido marxista, remete a algo distinto, ao controle e
apropriação do trabalho e do seu resultado (VIANA, Nildo. A Alienação como
Relação Social. Revista Sapiência:
sociedade, saberes e práticas educacionais, v. 01, 2012.). O sentido do
conceito de evasão remete ao processo de escapismo, de fuga da realidade, que é
um fenômeno psíquico e não uma relação social como no caso da alienação.
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