RELAÇÕES AFETIVAS E VALORES CAPITALISTAS
Mateus Vieira Orio
Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás
(UFG), Mestre em Sociologia (UFG), Graduado em ciências sociais (UFG).
A amizade costuma ser caracterizada como uma relação
afetuosa entre duas ou mais pessoas, que envolve um conjunto de afinidades,
lealdade, altruísmo e práticas cotidianas conjuntas. Porém, na sociedade
contemporânea (sociedade capitalista) a amizade (e as relações afetivas em
geral) é também permeada por valores inautênticos, cobranças imperiosas,
conflitos de lealdade, falsidade e egoísmo.
As relações afetivas se constituem a partir dos locais de
convívio das pessoas: família, instituições de ensino, trabalho, etc. E estes
locais não estão isolados da totalidade da sociedade. Então, por mais que
alguns considerem que “o mundo do lado de fora” não interfere em suas relações
familiares; ou que a amizade (entre outras relações) está acima de tudo; ou que
os problemas no trabalho não interferem na relação afetiva entre colegas; todos
estes ambientes estão imersos em um conjunto de relações sociais que possuem
como determinações aspectos globais de sociabilidade.
Desta forma, muito das relações afetivas que são constituídas
estão permeadas pelos valores dominantes na sociedade capitalista, como a competição
e o individualismo. Isso porque contemporaneamente as pessoas precisam
sobreviver a partir de um emprego, de uma atribuição da sociedade capitalista.
E por mais que alguém diga não participar da sociedade capitalista, isto é uma
ilusão. É possível se opor ao capitalismo, criticá-lo e lutar contra este tipo
de sociedade que nos assola, porém não é possível estar fora disso.
Tomemos um exemplo para melhor ilustrar esta argumentação: o
consumo. O consumo é apenas um elemento da sociabilidade capitalista, elemento
este que não existe sem a sua devida produção. Neste sentido, deixar de beber
coca cola ou, em geral, de comprar produtos de grandes companhias capitalistas,
não significa romper com o capitalismo, mas apenas com uma ou outra empresa, o
que não impossibilita a ruptura com o conjunto de empresas que produzem bens a
partir da exploração do trabalho nos moldes capitalistas. Do mesmo modo, viver “de
doações” ou viver de forma “rústica”, em contato com a natureza, etc. não
constitui ruptura com o modo de produção capitalista, mas simplesmente indica o
afastamento individual de um ou outro elemento deste modo de produção que, por
sua vez, é social, não individual. Não constitui, portanto, ruptura com o
capitalismo, pois o mesmo continua existindo e sendo determinante em inúmeras
relações, podendo incluir até mesmo as relações que permitem que um indivíduo
viva “de doações” ou que outro deixe de consumir carne Friboi, pois isso só é
possível graças à existência de outros indivíduos que possuem condições de
fazer doações e de outros produtores de carne, nestes exemplos.
Portanto, viver na sociedade contemporânea implica em viver
na sociedade capitalista, que traz consigo uma forma de socialização que
inculca determinados valores. Desta forma, na constituição de relações
afetivas, no trabalho, por exemplo, o elemento da competição pode ter
prevalência em relação a lealdade, altruísmo, etc. E, por isso, muitos
indivíduos acabam buscando se relacionar com outros por interesse, ou seja,
almejando subir de cargo, obter informações úteis para se sobressair, e também
como forma de descobrir fragilidades que possam prejudicar o outro.
Assim também, nas escolas e universidades um “colega” pode
se aliar a outro para obter boas notas, melhorar sua relação com o professor ou
conseguir contatos e indicações futuras, bem como pode bajular determinados
indivíduos para obter sucesso profissional e aceitação. E, desta forma,
atitudes egoístas e individualistas passam a mediar relações em que um indivíduo
deseja sobrepujar os demais: ser mais prestigiado, ganhar mais presentes ou
elogios, ganhar uma vaga de emprego/ estágio, etc. E estes tipos de relação se
desenvolvem não só nas relações de trabalho/ estudos, como também nas relações
afetivas em geral, como quando uma pessoa deseja ser “mais amiga” de outra ou ser
a “melhor amiga”, ou nos relacionamentos amorosos quando uma pessoa “concorre”
pelo amor de outra.
Por fim, os valores dominantes na sociedade capitalista são
transmitidos no processo pelo qual os indivíduos são formados para conviver em
sociedade. Neste processo, com todas as dificuldades e obrigações que impõe, as
pessoas acabam sendo levadas a reproduzir determinados tipos de valores, como o
egoísmo e o individualismo, que não correspondem à constituição de relações
sociais autênticas, fundamentadas no ser humano como valor fundamental, ou
seja, relações sociais baseadas na solidariedade e na busca da realização das
potencialidades humanas.
O fundamento das relações sociais autênticas existe em todos
os seres humanos como potencial. Mas muitas vezes entra em conflito com os
valores da sociabilidade capitalista. Por isso, muitos indivíduos se confrontam
com situações as quais têm muita dificuldade em definir entre a amizade e o
interesse individual. Estas são situações nas quais existe um conflito de
valores: um conflito entre os valores humanistas e os valores capitalistas,
entre a busca da solidariedade com o outro e a busca do sucesso individual nos
moldes capitalistas. O próprio conflito demonstra que os valores capitalistas
não “possuem” o indivíduo totalmente, havendo sempre uma margem para a
manifestação de valores humanistas, ou seja, de valores autênticos. Mas as
fugas de um ou outro elemento isolado da sociedade capitalista não levam a
prevalência dos valores autênticos sobre os inautênticos. Pois estes são fruto
de um processo social e a ruptura com eles deve ser, portanto, também social.
Nesse sentido, a busca da manifestação de valores autênticos
é também uma forma de crítica à sociabilidade capitalista e pode se constituir
em um movimento rumo à ruptura com esta sociabilidade. E a consolidação dos
valores humanistas perpassa pela ruptura com a sociedade capitalista que á a
origem dos valores inautênticos que interferem nas relações afetivas. E assim,
buscar uma sociedade alternativa ao capitalismo é caminhar em busca da
efetivação de relações afetivas autênticas, baseadas no ser humano como valor
fundamental.
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