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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

A era da facilidade

     A era da facilidade

Não é preciso pensar nem estudar, só propor clichês para cimentar consensos.


Gostaria de escrever um livro que, desde o título, condensasse, numa palavra só, quem somos e em que mundo vivemos —tipo Era da Turbulência, da Incerteza, dos Extremos etc.

A crítica mais banal do espírito de nossos tempos diz que estaríamos na ("escandalosa") era dos prazeres imediatos. Será que eu concordaria?

Certamente não, mas essa crítica é um bom exemplo, pois ela nunca é acompanhada de fatos que a justifiquem. Ela apenas pede que a gente comungue numa indignação comum.

No caso, os fatos dizem que nossa cultura é declaradamente contra os prazeres há 18 ou 17 séculos. Primeiro, os prazeres mandavam você para o inferno. Depois, os prazeres foram ruins para a saúde. Com o prazer, você perde a vida eterna ou, se não acreditar naquela, perde anos desta tua vida na Terra.

Mas os fatos não interessam. O que importa é a expectativa de que a afirmação (por exemplo, que nossa época seria hedonista) corresponda ao que muitos querem ouvir (no caso, para se indignar).
Ilustração
Mariza Dias Costa
Essa procura de um consenso talvez seja o estilo que define nossa era.

Consequência, estamos na era da facilidade: não é preciso pensar nem estudar, devemos apenas propor clichês, que possam cimentar consensos.

Os clichês ganham cúmplices ou esbarram em inimigos. Em ambos os casos, eles são confirmados, quer seja pela adesão dos "nossos", quer seja pela recusa pelos outros.

Nada contra a facilidade: não acho que penar e se sacrificar nos ganhem mérito algum. Mas, infelizmente, a facilidade dos clichês empobrece o mundo e deixa só duas posições —"a favor" e "contra". E eu, entre "a favor" e "contra", sempre escolho um terceiro ou um quarto lugar, que não foram sequer mencionados.

Entende-se que o indivíduo da era da facilidade (o Homo Fácil) odeia os intelectuais, em geral. Não tanto porque eles teriam ideias opostas.

Com as ideias opostas o Homo Fácil sabe lidar: é clichê contra clichê —manda prender, quebra a cara, censura, grita mais alto etc. Intolerável para o Homo Fácil é o intelectual que quer discutir e para isso traz ideias diferentes, ou, pior ainda, fatos "novos" —ou seja, fatos que o Homo Fácil não tinha levado em consideração.

O intelectual detestado, em suma, é o chato que gostaria de nos obrigar a pensar e a estudar. Que saco: a gente está tão bem no conforto do nosso clichê coletivo.

Nas mídias sociais, o Homo Fácil se sente em casa: é uma arena de opiniões —pura ideologia, sem espaço nem tempo para fatos, pensamentos, estudo, reflexão ou diálogo.

Um exemplo perfeito de como funciona o Homo Fácil foi oferecido pela ministra Damares, que se atribui um mestrado em "estudos bíblicos" (ou seja um "mestrado" em ideologia) e o confunde com mestrados acadêmicos —que são em disciplinas, não em ideologias.

O Homo Fácil é preguiçoso? É só uma nova espécie, que não quer ler, estudar e pensar? Talvez, mas não só.

Desde os anos 1960, uma espécie de neoplatonismo tomou conta de nossa visão do que significa aprender. Aos poucos, fomos nos afastando dos ensinos de conteúdo e avançando na direção de uma pedagogia pela qual tudo já estaria lá, dentro do indivíduo. Quer aprender sem esforço? Só deixe seu íntimo se expressar.

Começamos assim a encorajar nossos rebentos a ter opiniões e a formulá-las, mesmo sobre tópicos que eles ignoram totalmente.

Uma mãe, ouvindo sua filha defender calorosamente uma opinião sobre assédio moral, que ela (a criança) não sabe o que é: "Ela já tem opiniões, não é maravilhoso?". Eu: "Não é maravilhoso; é idiota".

Talvez a era da facilidade seja filha de uma pedagogia (recente) que não valoriza os conteúdos e preza a opinião antes que formular uma opinião digna seja sequer possível.

Tem alguma esperança de nossa cultura voltar a pensar?

Elizabeth Anderson é uma ilustre professora de filosofia moral (em Ann Arbor, Michigan, EUA). Num recente perfil (na The New Yorker), aprendi que, recentemente, ela mudou os requisitos para seus estudantes de graduação.

Em vez de pedir ensaios opinativos, nos quais eles defenderiam suas ideias e sua posição, ela pede que cada estudante discuta sua posição com alguém que pensa muito diferente dele, relate esse debate e explique por que e como a discussão mudou, por pouco que seja, o que ele ou ela pensavam antes disso.

Talvez não seja tarde demais para introduzir no currículo um novo tipo de dissertação.

Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).     

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