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quarta-feira, 20 de junho de 2018

MERITOCRACIA OU DEMOCRATISMO?


MERITOCRACIA OU DEMOCRATISMO?

Carlos Henrique Marques

Sociólogo e filósofo. Doutor em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB).

Hoje é muito comum haver críticas (e defesas) da meritocracia. A meritocracia pode ser compreendida sob várias formas. Muitos são ardorosos defensores da meritocracia e outros são críticos ferozes. É possível até dividir a percepção sobre meritocracia através da divisão política entre conservadores (direita) e progressistas (esquerda). Porém, existe um outro fenômeno atrelado ao problema da meritocracia, que é o democratismo. O democratismo também é bastante criticado e geralmente é apresentado como o oposto da concepção meritocrática. É possível escapar da meritocratismo ou do democratismo? A meritocracia deve ser combatida ou defendida? O democratismo deve ser combatido ou defendido? Essas são algumas questões que vamos discutir no presente texto.



O uso do termo meritocracia é geralmente marcado pela imprecisão. Há algumas definições desse termo, mas não há nenhum desenvolvimento sistemático a seu respeito. Uma dessas definições é realizada através da etimologia da palavra que apontaria para o governo daqueles que possuem mérito. Esse significado, embora tenha relação com a discussão da meritocracia nas instâncias governamentais, não é o mais adequado. A meritocracia, segundo alguns[1], é uma palavra que teria surgido com a obra ficcional e ucrônica[2] de Michael Young. O sentido da palavra, a partir da obra desse autor, é a de uma forma de ascensão institucional através da medição (quantitativa) do mérito, tal como os testes de QI (quociente de inteligência), que é reprodutor das desigualdades sociais. O termo, no sentido comum, significa geralmente a ascensão social ou institucional derivada do mérito e do esforço individual.



De nossa perspectiva, podemos entender a meritocracia como um termo-chave (“chavão”), uma concepção, um fenômeno real. A meritocracia como termo-chave é apenas um uso, muitas vezes retórico e oportunista, de uma palavra para defender algum interesse. Quando alguém quer um cargo e é preterido por outra pessoa, pode condenar a “meritocracia” por seu insucesso e acusá-la de injustiça. Quando alguém obtém sucesso de forma injusta e supostamente conquistada por “mérito”, pode lançar mão da meritocracia para justificar o injustificável.



A meritocracia como concepção também ganha dois significados distintos de acordo com seus defensores e seus críticos. Para os defensores da meritocracia, ela é justa e é o que deve ser empregado para definir o sucesso dos indivíduos. Para os seus críticos, ela escamoteia a realidade e as diferenças sociais, de classe, raça, etc. Os defensores destacam sua justiça, por ser um critério objetivo e ligado ao merecimento, e os críticos destacam as desigualdades sociais para mostrar sua injustiça.



No entanto, ambas as posições são problemáticas. A meritocracia, existindo da forma como é apresentada no discurso, é algo que abstrai as condições sociais mais amplas e que algo para ser justo precisa considerar a totalidade do processo e não apenas um elemento (o suposto mérito) e o indivíduo. Mas o grande problema é que a meritocracia raramente se manifesta na realidade concreta. O suposto mérito de alguns é conquistado via herança familiar, de classe, e é, na maioria das vezes, formal. O portador de diplomas (ou seja, de competência formal), por exemplo, pode conseguir cargos mesmo sem ter competência real[3]. As relações de amizade, os interesses de grupos, etc., são mais determinantes do que os méritos individuais. Raramente aqueles que são mais competentes (possuem mais “méritos”) são os que conseguem maior sucesso. Isso, em alguns casos, como, por exemplo, no interior da intelectualidade, é a regra. Portanto, além dos limites do discurso favorável à meritocracia, há o problema adicional de que ele raramente se torna realidade.



Uma outra concepção de meritocracia é a sociológica, embora pouco desenvolvida. Michael Young criticou, em obra ficcional, a meritocracia por causa de seu processo de reprodução do processo de desigualdade social, assemelhando-se a uma classe social (PIZA, 2016) e que o “mérito” é regido por critérios formais e burocráticos que apenas reproduz no poder aqueles que já estão nele.



A outra concepção sociológica é mais sistemática e fundamentada. É a concepção funcionalista, tal como expressa por Parsons e outros. A concepção funcionalista considera que os “sistemas sociais” organizam os indivíduos numa hierarquia social denominada “estratificação social”, a partir de um sistema valorativo comum. A função da escola é socializar e integrar as crianças e jovens no sistema social através de um processo valorativo. O indivíduo é valorado por sua contribuição ao sistema. Os indivíduos são assim estratificados e o critério para a estratificação é a contribuição diferencial de cada um, o que gera uma diferenciação nas recompensas (PARSONS, 2018). Por conseguinte, a posição do indivíduo na estratificação social remete à recompensa que depende do mérito individual, ou seja, se espera que a recompensa seja proporcional ao mérito.



Young realiza uma crítica da meritocracia e Parsons, sem utilizar tal palavra, considera que o mérito é fundamental para uma melhor posição na estratificação social. No fundo, ambos dizem a mesma coisa, só que sob formas diferentes (forma ficcional e forma científica) e utilizando valores também diferentes (o que um vê negativamente, o outro vê positivamente). Parsons naturaliza a estratificação social e assim o mérito se torna o critério para se entender a posição dos indivíduos na mesma. A motivação de Young foi o uso dos testes de QI e sua obra ficcional tinha o objetivo de criticar esse processo. No entanto, tais testes são apenas mais uma forma de gerar uma diferenciação entre os estudantes e muito antes deles já existia o processo de diferenciação e seleção. Parsons, por sua vez, não parte de uma abordagem crítica e de acordo com sua concepção, não poderia ser de outra forma, sob pena de se tornar “disfuncional”. É visível o processo de naturalização e legitimação da sociedade capitalista e seu processo de reprodução da divisão de classes e suas subdivisões.



A meritocracia como fenômeno real é algo apontado por alguns autores, entre eles o próprio Parsons. A meritocracia é a forma de seleção e recompensa dentro do sistema social e isso existe efetivamente. Alguns crítico-reprodutivistas, como Bourdieu e Passeron (1982) concordam com tal processo, acrescentando que a origem de classe/grupo determina esse processo, ou seja, o “mérito” (sem usar tal expressão, pois em seu lugar usam “capital cultural”) existe e funciona, mas ele tem raízes nas desigualdades sociais e o sistema escolar reproduz esse processo. A posição de Bourdieu e Passeron é a mesma de Parsons, com a diferença de valores: o que para o reprodutivista funcionalista é algo natural e desejável, para os crítico-reprodutivistas é algo produzido socialmente a partir de relações de poder e indesejável (embora não apresentem nenhuma alternativa). Indo para além do que tais sociólogos afirmam, podemos dizer que o mérito é apenas uma das determinações da posição do indivíduo na divisão social do trabalho (ou, segundo linguagem de Parsons, “estratificação social”).



A ideia de que existe uma meritocracia funcionando efetivamente é falsa, pois além do mérito existem outras determinações mais poderosas, como o pertencimento de classe de um indivíduo (o que gera a bagagem cultural do indivíduo e lhe ajuda na competição social e aparece como “mérito”, mas também determinadas relações de influência, valores – mais ou menos adequados ao sucesso profissional –, recursos financeiros, tempo para dedicação à formação, herança, etc.). Nesse sentido, a concepção de Bourdieu e Passeron é mais próxima da realidade, apesar de seus limites analíticos, linguagem coisificada e falta de alternativa.



E qual é a concepção alternativa ao meritocratismo? A princípio, muitos defendem o “igualitarismo” ou outros termos para identificar o que seria oposto ao meritocratismo. Os adeptos da concepção meritocrática acusam de “populistas” os seus adversários. Consideramos que a concepção oposta ao meritocratismo é o democratismo. O termo democracia remete ao mundo especializado da política institucional, no caso da sociedade capitalista. A democracia representativa é a fonte de inspiração para se condenar a meritocracia, politizando as relações sociais fora da instância da política institucional. O democratismo se preocupa com o igualitarismo formal. O igualitarismo formal aponta para uma concepção de igualdade fundada em uma questão formal que é a política. Enquanto o meritocratismo se fundamenta no discurso técnico, o democratismo se fundamenta no discurso político.



O democratismo, no entanto, não é uma concepção desenvolvida. Por isso, podemos dizer que ele pode ser entendido como um termo-chave (um “chavão”), uma concepção e um fenômeno real, da mesma forma que a meritocracia. O democratismo como termo-chave é apenas um uso, geralmente retórico e oportunista, de uma concepção de igualdade abstratificada para defender algum interesse. Assim, se alguém quer um posto ou um cargo, pode apelar para a desigualdade para justificar sua reivindicação (e condenar a meritocracia como reprodutora da desigualdade). Da mesma forma, se alguém consegue uma vaga por causa da política de ação afirmativa, pode lançar mão do problema da desigualdade e injustiça para justificar sua conquista. No caso do discurso sobre outros e não sobre si mesmo, o democratismo, mesmo sem usar a palavra, acaba servindo como suporte para discursos populistas por parte de intelectuais, políticos profissionais, artistas, visando conquistar popularidade ou determinado “público-alvo”.



Como concepção, o democratismo é defendido através da justificativa da igualdade. O princípio democrático da decisão da maioria é complementado pelo princípio da igualdade abstratificada, fora do conjunto das relações sociais concretas. Se existem grupos, indivíduos, desiguais, cabe defender a igualdade, geralmente através do Estado, para superar a desigualdade. Esta concepção, comum nas representações cotidianas, é reproduzida sob forma mais desenvolvida através de determinadas doutrinas políticas, como liberalismo progressista (a versão atual do liberalismo democrático), social-democracia, etc. Alguns defendem tais teses apelando para o marxismo, mas em clara contradição com o mesmo. O marxismo nunca defendeu “igualdade” dentro do capitalismo e muito menos um igualitarismo formal ou qualquer concepção que retire as questões políticas e sociais do interior das relações sociais da sociedade capitalista.



Por fim, a questão do democratismo como fenômeno real acaba desembocando no mesmo problema que a ideia de meritocracia: ele não se realiza concretamente. A divisão de classes impede isso e quanto a grupos ou indivíduos a sua situação depende das relações sociais concretas e os grupos sociais marginalizados na sociedade moderna não superam sua condição. O que pode ocorrer, e o que efetivamente ocorre, é indivíduos desses grupos conseguirem ascensão social, cargos, etc., o que é um elemento de cooptação dos mesmos. Logo, tal como a meritocracia, a democracia social é algo que não se concretiza na realidade, pois, no máximo, atinge indivíduos e não o conjunto da sociedade, dos grupos ou das classes sociais.



O fundamental é compreender que tanto a meritocracia quanto o democratismo são duas formas degeneradas de se compreender a burocracia e manifestam interesses distintos. A grande questão da meritocracia e do democratismo passa pelas instituições educacionais, governamentais, etc., ou seja, organizações burocráticas. A questão é como que se consegue espaço e cargos dentro de tais organizações. Os meios de admissão nas organizações burocráticas são fundamentalmente três: eleição, concurso, nomeação (VIANA, 2015b)[4]. Quando se trata de eleição, vale o princípio democrático, a escolha da maioria dos eleitores. Quando se trata de concurso, vale o princípio técnico, daqueles que conseguiram se sobressair no processo de exames adicionais. No caso da nomeação, pelo menos hipoteticamente, seria o princípio político e técnico, embora este último seja, na maioria dos casos, desconsiderado ou secundarizado.



O que o discurso meritocrático defende é que o mérito seja predominante, o que remete ao concurso, seja para o funcionalismo público, para a atividade docente, etc. e que o sucesso é resultado do mérito. O que ele desconsidera é que os concursos nem sempre aprovam aqueles que possuem maior “mérito”, pois depende dos critérios estabelecidos, dos avaliadores e suas concepções, das formalidades, dos subterfúgios que podem ser criados, os valores e seu impacto nos processos seletivos, etc. Também desconsidera a diferença entre competência formal e competência real, o problema das várias formas de exames e concursos e das formas de manipulação dos mesmos, etc.



O discurso democrático, por sua vez, aponta para a questão da decisão da maioria e da igualdade (alguns defendem a igualdade de oportunidades e outros a igualdade social, mesmo gerando “discriminação positiva”), o que remete para a eleição ou processos específicos (ações afirmativas, como cotas, por exemplo). O que essa concepção desconsidera é que a igualdade de oportunidades é uma falácia no capitalismo, bem como a discriminação positiva não atinge o grupo social como um todo, mas sim seus setores melhor posicionado na pirâmide social interna. Também desconsidera que a criação de situações artificiais (uma coisa é, por exemplo, entrar como estudante numa universidade via cotas, outra coisa é sua permanência, conclusão de curso, entrada no mercado de trabalho, etc.) que pouco resolve os problemas dos indivíduos das classes desprivilegiadas e grupos sociais marginalizados. Por outro lado, também desconsidera que em certas situações é necessária a competência real para exercício de determinados cargos e atividades.



Por fim, resta reconhecer que nem o meritocratismo, nem o democratismo são soluções para os problemas que eles supostamente dizem resolver. A conquista de cargos, sucesso, ascensão social, etc., são problemas típicos da sociedade capitalista e o acesso é, por natureza, desigual, e sua conquista é permeada pela divisão de classes, por interesses, relações de poder, etc. Além disso, ambas as concepções desconsideram a sociedade como uma totalidade e fingem que podem resolver problemas que são insolúveis no capitalismo. No interior do capitalismo, o mérito deveria ser soberano, mas não é (mais pela corrupção e relações de poder do que por causa do democratismo, que também o atinge na contemporaneidade, em menor grau). Da mesma forma, é necessário superar o elitismo de uns e o populismo de outros, pois ambos iludem a população e os indivíduos, buscando garantir a integração deles numa sociedade geradora de divisões sociais, pobreza, miséria, corrupção, hierarquias etc. Para quem quer a transformação social e a superação desses problemas e pseudossoluções, o mais coerente é defender, nesses casos específicos, o mérito real e o máximo de igualdade possível (sem populismo e demagogia), mas sabendo que estes paliativos devem ser superados e em seu lugar emergir uma sociedade fundada numa verdadeira igualdade social.



Referências



BERNSTEIN, Serge. Utopia e Ucronia: Concepções da Sociedade Futura. Sociologia em Rede, v. 6, n. 6, 2016. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rsr/article/view/465/419 acesso em: 12/12/2016.




BOURDIEU, Pierre ; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução. Elementos Para Uma Teoria do Sistema de Ensino. 2ª edição, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.



PARSONS, Talcott. La clase escolar como sistema social: algunas de sus funciones en la sociedad americana. Disponível em: https://www.uv.mx/mie/files/2012/10/TALCONPARSONS.pdf acesso em: 01/05/2018.



PIZA, Sérgio L. T. Empresa, educação e meritocracia: a propósito de Michael Young. Revista da Faculdade de Educação. V. 11. N. 1-2, 1985. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfe/article/view/33345/36083  acesso em: 12/12/2016.



VIANA, Nildo. As Esferas Sociais. A Constituição Capitalista da Divisão do Trabalho Intelectual. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015a.



VIANA, Nildo. Burocracia: Forma Organizacional e Classe Social. Revista Marxismo e Autogestão, Ano 02, num. 03, jan./jun., 2015b.





[1] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/11/06/O-livro-que-criou-o-termo-%E2%80%98meritocracia%E2%80%99-%C3%A9-uma-distopia

[2] Consideramos ucronia um termo mais adequado do que distopia (BERNSTEIN, 2016).

[3] Sobre competência real e formal, veja: Viana, 2015a.

[4] Algumas organizações burocráticas específicas podem utilizar meios específicos de admissão, tal como o recrutamento de filiados por partidos políticos ou o golpe de estado no caso de determinados governos, ou então sorteio, tal como algumas escolas públicas fazem (como é o caso de alguns dos chamados “colégios de aplicação” de certas universidades federais no Brasil). No entanto, é preciso perceber que o recrutamento de filiados a partidos políticos integram estes indivíduos na organização burocrática, mas não na burocracia partidária, bem como o sorteio para vagas em uma escola permite ao aluno entrar na organização burocrática como estudante e não como membro da burocracia escolar. No caso do golpe de Estado, é uma troca da burocracia governamental, mas na qual há uma ruptura com o próprio processo burocrático e suas formas de legitimação e não havendo um processo de “admissão” e sim usurpação por burocracia externa. E é por isso que é chamado de “golpe”, por ser o uso da força de forma ilegítima, logo, um ato não-burocrático (e não-democrático) internamente, sendo um meio de usurpação e não de admissão. No caso da burocracia partidária, um convite para um burocrata de um partido para aderir a um outro partido e depois se integrar em sua burocracia pode ocorrer, mas geralmente é algo posterior (ele não entra, diretamente, na burocracia partidária do novo partido, tal como o recrutamento de filiados). Assim, os meios de admissão nas organizações burocráticas são os três acima citados. O golpe de Estado, por sua vez, não é um meio de admissão e sim um meio de usurpação, indo contra as decisões da burocracia estatal.



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Publicado originalmente em:

MARQUES, C. H. Meritocracia ou Democratismo?. Revista Posição[S. l.], v. 4, n. 15, 2021. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rpo/article/view/724. Acesso em: 15 abr. 2021.


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