DOSSIÊ: REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS
E CULTURA
A Música e a Cultura do Ter
O estudo e/ou análise da música na
atual conjuntura é um fator de suma importância no sentido de tornar consciente
a acepção verdadeira da relação que a música da atualidade mantém com a
sociedade. Para isso é necessário antes compreender as formas pelas quais
perpassam a estrutura formada pelo capitalismo, já que, predominantemente, é
através de suas relações que a música mantém o contato com a sociedade. Marx
diz que a partir da estrutura imposta pelo capitalismo:
É produzida uma classe que tem de suportar
todos os fardos da sociedade sem gozar das vantagens desta e que, excluída da
sociedade, é forçada ao mais decidido antagonismo a todas as outras classes;
uma classe que constitui a maioria de todos os membros da sociedade (MARX,
2002, p. 46).
Portanto, esta
análise tem como objetivo contribuir para a efetivação de uma sociedade
autogerida, que almeja uma realidade perpassada por “uma relação social que
nasce com a autogestão das lutas operárias e se universaliza e invade o
conjunto das relações sociais” (VIANA, 1996, p. 37). Segundo Nildo Viana a
autogestão:
Significa que os próprios ‘produtores associados’
dirigem sua atividade e o produto dela derivado. Abole-se, assim, o estado, as
classes sociais, o mercado, etc., já que com a autogestão abole-se a divisão
social do trabalho. Consequentemente, abole-se a divisão entre ‘economia’,
‘política’, etc. (VIANA, 1996, p. 33).
Assim, tudo aquilo que ocultamente
omite uma relação que vai contra os princípios autogestionários é encarado
como, ideológico, falso, não verdadeiro. De acordo com esta visão, teremos como
fio condutor de nossos estudos o materialismo histórico o qual permitirá que
nos apoiemos na realidade, no concreto, tendo como base primordial o valor da classe
subalterna, do homem explorado, destituído de todo o ideário abstrato e
ideológico.
Foi no início do século XX, mais
precisamente a partir da segunda metade da década de 20, que a música recebeu
um tratamento diferente daquele que até então auferia, fator que lhe
estruturaria caracteristicamente até os tempos atuais. Em tempos anteriores a
música era fator característico de grupos sociais e tinha em sua essência os
valores daqueles indivíduos os quais caracterizavam-se pelas atitudes ou
consciência não comercial, diferentemente da atitude encontrada na maioria dos
indivíduos subjugados pelo capitalismo “moderno”.
Em grupos nativos e/ou
pré-capitalistas, por exemplo, a música era utilizada[1]
como um dos fatores referente aos ritos e adorações próprias de sua cultura.
Diferentemente da forma de execução reproduzida pelo capitalismo, onde se
utiliza instrumento musical industrializado, a música em tribos indígenas é
expressas à capela (sem a utilização de instrumentos musicais) com a ajuda
rítmica dos próprios membros do corpo, mãos e pés, ou mesmo, no caso de grupos
pré-capitalistas, com o acompanhamento de instrumentos artesanais. Além disso,
a música era uma forma de expressão ou mesmo comunicação entre os indivíduos do
próprio grupo. Daí o surgimento dos diferentes ritmos musicais existentes na
atualidade, embora, a maioria deles surte efeitos diferentes daqueles de tempos
anteriores à década de 20, isto é, provocam o que podemos chamar de efeito
amnésico[[2]].
Semelhante à discussão que Bourdieu (1997) faz sobre o efeito causado pelas
notícias de variedades, a música, em sua multiplicidade:
Tem por efeito produzir o vazio político, despolitizar
e reduzir a vida do mundo à anedota e ao mexerico, fixando e prendendo a
atenção em acontecimentos sem consequências políticas, que são dramatizados
para deles ‘tirar lições’, ou para os transformar em ‘problemas de sociedade’.
(BOURDIEU, 1997, p. 73)
A característica fetichista[3]
da música no Brasil tem como marco de seu surgimento o ano de 1927. Essa
referência é feita pelo fato de que a partir desta data tem-se a chamada “era
de ouro da música brasileira” devido à sua popularização em âmbitos
“nacionais”, e até mesmo “internacionais”, que foi permitido pelo avanço do
rádio. Além disso, surgem as primeiras gravações[[4]]
elétricas e em consequência disto, impressões de discos em alta escala.
Estima-se que neste período a indústria tenha produzido mais de 48 mil cópias
de discos vinil. Contudo, a partir da década de 30, Getúlio Vargas, institui o
DOP (Departamento Oficial de Publicidade), que há nove anos depois se funde no
DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) com a finalidade de manter uma
fiscalização rígida sobre os meios de comunicação de massa. Com a instituição
desses órgãos as programações (musicais, jornalísticas, entretenimentos,
esportivas etc.) transmitidas entram para o bojo dos instrumentos repressivos
do estado como o objetivo de dificultar e impedir o surgimento de grupos
revolucionários, reproduzindo a ordem estabelecida pela classe dominante. A
música passa a ser selecionada e aquelas que estimulam o desenvolvimento de uma
visão critica da realidade ficam fora das listas de reprodução dos programas
musicais. Dessa forma, ela se transforma em um importante fator de legitimação
dos valores burgueses, inculcando na sociedade um imaginário de normalidade e
aceitação da realidade imposta pelo capitalismo.
Instaura-se um regime de opressão
social, cuja manutenção do mesmo, dependeria de políticas extremamente
repressivas para o controle comportamental da população. Neste contexto, com o
advento do rádio como instrumento de manipulação social a serviço do estado e
conseqüentemente se expandindo pelo território, a música amplia seu espaço de
alcance que até então era restrita regionalmente e começa a atingir outros
grupos culturais. Um exemplo disso está no chorinho que inicialmente era
restrito à região do Rio de Janeiro vindo posteriormente a ser conhecido por
todo Brasil via radiodifusão e/ou mesmo do samba que no exterior é entendido
como uma das principais características dos brasileiros, entre tantos outros
exemplos (canções goianas, nordestinas, gaúchas etc., as quais acabam
interferindo nas produções musicais de outras regiões). Assim, a interferência
cultural através da música tornou constante e os valores almejados pela
burguesia ganharam nova forma de serem reproduzidos no imaginário popular.
O que até então era valorizado
pela sua essência, agora converte-se em qualidade medida estatisticamente pelas
quantidades de cópias vendidas, sendo reduzida à mera “mercadoria”. Ou seja, o
disco para a venda passou a ser o principal objetivo da maioria dos produtores
e compositores da atualidade. A qualidade musical ficou relegada a grupos
reduzidos. Com a predominância do mercado predomina-se também a música
desprovida de qualidade. Dessa forma, qualquer coisa se transforma em música e
sua repetição pelos meios de comunicação faz parte do jogo almejado pela classe
dominante, ou seja, levar a sociedade a consumir tal mercadoria elevando assim
a extração do mais valor, isto é, obtenção do lucro.
A qualidade de músicas expressa na
quantidade reproduzida é uma falsa consciência criada pelos indivíduos das
classes dominantes para ocultar a qualidade daquilo que se vê. O estado como
defensor dos anseios desta classe justifica sua essência reproduzindo um imaginário
alicerçado nos valores dessa mesma classe onde o ideal não está na qualidade de
vida da sociedade, mas sim na quantidade de capital[[5]]
a ser produzido, pois:
Sob
forma de mercadoria, tem o capital de exercer função de mercadoria. Os artigos
que o constituem, produzidos em sua origem para o mercado, têm de ser vendidos,
transformados em dinheiro, de realizar portanto, o movimento M-D (MARX,
2003, p. 52).
M-D, quer dizer
Mercadoria-Dinheiro. Os valores burgueses respeitam essa lógica de produção, ou
seja, tudo que se produz, (a mercadoria, produto da força de trabalho) deve ser
transformado em dinheiro. Em contraposição a essa concepção, tem-se o
imaginário da classe proletária no qual prevalece o M-D-M,
mercadoria-dinheiro-mercadoria, que está expresso na teoria de Marx do valor de
uso e valor de troca. O valor de uso contraria os valores burgueses uma vez que
adquirido uma mercadoria o seu valor limita-se a suprir uma necessidade de uso
do indivíduo, enquanto que para o burguês a mercadoria se destina à troca, à
venda, na aquisição do dinheiro, que por sua vez é novamente trocado por outra
mercadoria, que novamente é vendida e assim sucessivamente acarretando o
acúmulo de capital.
Nesse sentido, a grande quantidade
de força de trabalho empregada nas produções musicais faz parte da essência do
capital, o qual é sinônimo de exploração. Sendo assim, necessita-se ocultar
essa face negra da música produzida para o consumo, para que não emerja
consciências revoltosas com essa realidade. Cabe então ao estado, defensor dos
interesses das classes dominantes, introjetar na sociedade uma consciência de
normalidade da realidade. A superação desta situação em que se encontra a
maioria da sociedade está na própria superação da estrutura estabelecida pelo
estado. A música como mercadoria é produto da burguesia e tem sua existência
legitimada na própria realidade. Seu alvo principal é a classe subalterna que
sendo a maioria na composição social recebe um tratamento específico levado-os
a acreditar na fidelidade das relações sociais vigentes. Entender a forma que
ocorre essas produções musicais e os fatores, já enunciados, que levam às
grandes gravadoras a investirem nesta ou naquela música se torna essencial. É o
que propomos neste momento.
A música, destinada ao mercado,
recebeu todo um aparato técnico chegando a ponto de ser possibilitada
previamente a definição do que irá vender ou não, ou seja, no senso comum, o
que será sucesso ou não. O sucesso, por sua vez, é um fator manipulado pelas
grandes gravadoras. Assim, fazem acreditar que ele é um fator natural de
reconhecimento deste ou daquele artista pela sociedade. Que de fato é mas que
esse reconhecimento é pré-destinado e definido pelas próprias gravadoras. Para
Bagdikian:
Talvez o poder de maior duração das companhias que
controlam os meios de comunicação seja o poder de criar idéias e movimentos
que, se necessário, podem refletir desejos estritamente particulares do
proprietário (BAGDIKIAN, 1993:64).
Essa postura se assemelha à das
gravadoras que criam um padrão musical, excluindo das “principais” emissoras de
rádios e TVs, a maioria daquelas músicas que não correspondem aos anseios da
classe dominante, é o caso das músicas de protesto que, em sua maioria, não são
conhecidas pela sociedade. O “sucesso” de produções musicais depende da vontade
das gravadoras que detém o monopólio das “grandes” emissoras de rádio, que por
sua vez:
É forçado a promover, no interior do ouvinte, uma
atitude ingenuamente entusiasta com relação a qualquer material que se lhe
ofereça, e assim, indiretamente, em relação ao próprio rádio. Este viés
‘promocional’ do rádio é um obstáculo permanente para se alcançar uma relação
adequada com um material musical preeminentemente sério (ADORNO apud CARONE,
2003, p. 480).
Observa-se ainda o surgimento de
inesperados “sucessos” que aparecem desvencilhados do poder das grandes
gravadoras que ao ser reconhecido pelo “público” acabam caindo nos braços
dessas mesmas instituições e sendo moldados conforme seu padrão industrial.
Sucesso pressupõe consumo. Consumo, pressupõe capital que, por sua vez, exige a
exploração do homem pelo homem.
Em si tratando de qualidade
musical enquanto composição em seu conjunto (Letra, melodia e harmonia) a maior
parte das músicas da atualidade são desqualificadas e técnicas. Não contribuem
para a formação de consciências críticas. Estimulam os indivíduos ao consumo,
ao individualismo e oferecem o entretenimento como forma de fuga do sofrimento
causado pelas relações sociais que estamos submetidos a viver. O que era
“prestigiado” pelo conjunto dos fatores tornou-se venerado por sua
simplificação prevalecendo a melodia estereotipada na posse desenfreada de
fitas cassetes, CD’s, DVD’s etc.
A Indústria Cultural[[6]]
- originada a partir da realidade criada pela burguesia - delineia
fervorosamente o novo caminho a ser trilhado pela música (a arte num âmbito
geral é influenciada por essa indústria), ou seja, o caminho do negócio, do
comércio. Como instrumento ideológico dessa classe ela encara o homem como
objeto, como coisa e tem como objetivo ocultar a realidade do capitalismo. Além
disso ela proporciona ao homem necessidades que ultrapassam as necessidades
básicas e necessárias para se viver (casa, comida, lazer, etc), ou seja,
incube-se de produzir em larga escala, objetos, coisas voltados para o consumo
incessante. O desejo sofre interferência desta indústria que causa à sociedade
uma sensação de querer cada vez mais a posse de tais objetos. Esta indústria,
“só se interessa pelos homens como clientes e empregados” (ADORNO, 1985, p.
137).
Esse imaginário consumista passa a
ser difundido pelos meios de comunicação (Televisão, rádio, revistas, jornais,
panfletos etc.), sendo legitimado como mera reação “natural” do indivíduo. O
comportamento de uma população está alicerçado nos jogos ocultos do estado, ou
seja, através das diversas instituições[[7]]
existentes na sociedade o comportamento dos indivíduos passa a ser manipulado
para servir aos interesses da classe dominante. Portanto, a música entra nesse
jogo ideológico onde a quantidade de discos vendidos expressa, ocultamente, o
jogo armado pela burguesia para o benefício próprio, o que é recebido e aceito
passivamente pela sociedade. O anseio consumista, ou o desejo de ter aquilo que
é propagado pela mídia advém dos valores da burguesia.
A felicidade propagada
a partir do imaginário burguês está ligada ao consumo e posse dessas coisas
materiais. Assim, essa felicidade passa a depender fervorosamente da posse de
uma quantidade elevada de capital, definido pela mesma como o mediador de suas
relações. O capital, por sua vez, só pode ser conseguido através da exploração
da força de trabalho da classe operária (mais-valia). Dessa forma, a música,
como mercadoria, se transforma num fator importante para a classe dominante,
onde além de ter a função de agente manipulador se transforma em um meio fácil
de acúmulo de capital. A música então é elevada a uma coisa, reduzida a uma
mercadoria (simbolizada em discos, CDs, fitas cassetes, DVDs, etc.), cuja
função agora é a obtenção de lucro.
O rádio, como parte
integrante da indústria cultural também teve seu papel fundamental na
reprodução desse ideário consumista. Ele foi naturalmente desenvolvendo esta
habilidade indutiva. Foi o meio didático/pedagógico mais eficaz na educação da
sociedade para o consumo dessas produções. Assim, com o monopólio das emissoras
radiofônicas asseguradas, as grandes gravadoras puderam escolher o que colocar
à venda ou não. Para perceber essa técnica desenvolvida basta entender a lógica
de suas trançadas ações, onde, ao produzir uma música, enviam-nas para as
emissoras de rádio mais legitimadas, as quais estão sob o poder dessas mesmas
gravadoras. A música então passa a ser veiculada sucessivamente. Conta-se ainda
que acorda-se a quantidade de vezes a veicular a música ao dia e mesmo a hora.
Esta última se define nos momentos de pique do comércio, o que atingiria um
maior número de indivíduos. Na atualidade há estimativas de músicas que são
reproduzidas dezoito mil vezes ao dia, somando todas as veiculações em âmbitos
nacionais, o que pode ser ultrapassado por aqueles que atingem as fronteiras
internacionais. Naturalmente, essa amplitude alcançada pela música atinge
diretamente o consciente do indivíduo que, em consequência das repetições, é
estimulado a adquiri-la por meio da compra de fitas, CD’s, DVD’s, etc,.
Neste momento pode-se
notar que ao buscar a aquisição de uma dessas mercadorias em lojas legalizadas[[8]]
um indivíduo da classe operária não consegue adquiri-la devido ao “alto custo”
cobrado. Não conseguindo a aquisição por meios “legais” resta então recorrer ou
estimular à “pirataria[[9]]”.
A pirataria, por sua vez, passa a ser perseguida pelo estado o qual defende o
monopólio e exclusividade das grandes gravadoras. Porém, paradoxalmente, mesmo
sendo tachada como ilegal, a pirataria acaba por cair nas intenções almejadas
pelo sistema e aceita pelo mesmo. Embora as “mercadorias” produzidas e vendidas
via “mercado livre” sejam de acesso aos indivíduos subalternos, não fazem nada
mais do que reproduzir e legitimar a realidade baseada nas relações entre
dominantes e dominados. Essas ações legitimistas da população, por mais
perseguidas que sejam, recebem uma aceitação por parte do estado, pois, tira
dele a responsabilidade sobre a mesma. Assim como os filmes de animação, a
música:
Faz mais do que habituar os
sentidos ao novo ritmo, eles inculcam em todas as cabeças a antiga verdade de
que a condição de vida nesta sociedade é o desgaste contínuo, o esmagamento de
toda resistência individual. Assim como o Pato Donald nos cartoons, assim
também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para que os espectadores
possam se acostumar com a que eles próprios recebem (ADORNO, 1985, p. 130).
As músicas
comercializadas via clandestinidade recebem um maior consumo pelos indivíduos
das classes oprimidas. Portanto, essas aquisições surtem um outro efeito na
consciência do indivíduo, isto é, o efeito simbólico. Os intérpretes das
músicas, massificados nas estampas das mercadorias, passam a ser reverenciados
e idolatrados pela sociedade recebendo um tratamento diferenciado. Os programas
televisivos, instrumento fundamental da Indústria Cultural, estruturam
programas “fast-food cultural, alimento cultural pré-digerido, pré-pensado” (BOURDIEU,
1997, p. 41), no intuito de um outro comércio paralelo, o do lucro via
audiência. Eles conduzem:
a um mundo musical fictício dominado pelos nomes de
personalidades, etiquetas estilísticas e valores pré-digeridos que não podem
ser ‘experienciados’ pela audiência destes programas; na verdade, o programa
apresenta o material de modo a fomentar, de modo proposital ou não, atitudes
estereotipadas e convencionais, ao invés de levar à compreensão concreta do
sentido musical (ADORNO, 2003, p. 480).
Por outro lado, com a reprodução
em massa da imagem dos intérpretes musicais, acabam recebendo uma espécie de
seguidores como é o caso dos coveres[[10]].
Essa consciência da busca do sucesso pode ser encontrada nos indivíduos das diversas
bandas que surgem em fundos de quintais e principalmente bandas de adolescentes
que se espelham em “grandes artistas” na tentativa de um reconhecimento
comercial. Contudo, essa busca se torna contraditória. Uma vez enfatizada a
idolatria dificulta-se a percepção dessa mesma realidade. A realidade
paternalista, do poder centralizado, individualista, vinculado ou suportado
pelas relações voltadas para os interesses das classes dominantes, a qual está
em constante contradição com o imaginário coletivo, verdadeiramente libertário,
autogestionário.
Essa
consciência comercial, fetichizada, coisificada, vem sendo propagada a todo
instante, especificamente, pelos meios de comunicação de massa. A música,
produzida com finalidades comerciais, legitima e reproduz maciçamente a cultura
dominante do ter. Marx já chamava atenção a isso quando ele falava do valor de
uso e valor de troca. O ter no sistema capitalista prevalece sobre o ser, sobre
a vida. A vida passou a ser valorizada pelo ter. No entanto, aquele que possui
um maior poder econômico/material, recebe uma “valorização” maior do que aquele
que não possui nada além de sua força de trabalho. O valor do ser humano dentro
da lógica do capitalismo – a realidade criada pela e para a classe dominante –
dá lugar às suas produções. Prevalece o valor material enquanto que o valor
humano passa para um segundo plano. Para a burguesia importa a quantidade de
mais-valor extraído, não importa a forma pela qual perpassa essa extração.
Dessa forma, a vida deixa de ser o fator relevante, pois, o imaginário
difundido por ela é o de que a continuação da vida humana (ser) depende do
capital (ter). Isso é somente uma forma de fazer a sociedade continuar
aceitando essa forma invertida de vida, o que, naturalmente, mantém os seus privilégios
enquanto classe dominante. Sendo a vida condicionada pela existência do capital
então por que as sociedades que são desprovidas do mesmo, onde o ser prevalece
sobre o ter, conseguem continuar vivendo mesmo em condições desumanas? a
resposta pode ser encontrada com facilidade na própria realidade, o lugar onde
a burguesia está em constante conflito com as classes oprimidas na busca
constante da continuação e manutenção de seus privilégios e status de
classe dominante. Ou seja, a dependência do capital é uma crença criada pela
burguesia a partir da realidade por ela estabelecida. A possibilidade de uma
realidade destituída de relações superficiais é consistente e dispensa as
críticas ideológicas. O contexto almejado pela classe oprimida é imune dessas
interpretações abstratas. Nela o capital não tem vez, a vida sim.
Portanto, a música almejada pela
burguesia fortalece os laços do ter. A cultura do ter é o valor almeja por esta
classe e a característica essencial do capitalismo. O ter acaba sendo reproduzido
pela sociedade, recebendo sua legitimação através da música, que é levada a
acreditar que esse valor de posse é um valor natural do ser humano, universal,
que não pode ser extinto. Erich Fromm diz que:
A maioria das pessoas acha muito difícil renunciar a
tendência a ter. Qualquer tentativa no sentido dessa renúncia suscita intensa
ansiedade e sentimento de perda de toda segurança, como o jogar-se no mar sem
saber nadar. Essas pessoas não sabem que ao desfazer-se das muletas da
propriedade, podem começar a utilizar suas próprias forças e andar por si
mesmas. O que as mantém atadas é a ilusão de que não poderiam andar por si
mesmas, e que entrariam em colapso se não estivessem amparadas pelo que possuem
(FROMM, 1976, p. 98).
Essa dificuldade na qual ele fala
está diretamente relacionada às relações estabelecidas pelas classes
dominantes. As músicas culturalmente industrializadas transferem e reproduzem o
imaginário dependente do ter. Além disso, instigam à seleção, à concorrência[[11]],
imprimindo de uma maioria a força do trabalho ao privilégio de uma minoria,
legitimando um sistema global. Contudo, a música enquanto expressão humana
desprovida de ideologia terá seu apogeu juntamente com a transformação
estrutural desta sociedade na qual vivemos. Enquanto a sociedade estiver
assentada nos moldes sistematizados pelo capitalismo, prevalecerão as produções
musicais voltadas para o consumo, além disso, continuarão prevalecendo as
práticas voltadas para o domínio do capital.
Em
âmbitos políticos globais se torna difícil pensar a música como algo que
pudesse trazer para a sociedade subalterna um conhecimento verdadeiro e
consciente da atual realidade, já que predomina a música comercialmente
produzida. As letras, em sua maioria, são dotadas de um vazio conceitual e não
instigam o indivíduo a conhecer as relações sociais que o cercam. Consequentemente,
mantendo um contato constante com a sociedade, essas músicas passam a agir na
consciência do indivíduo, através de sua técnica harmônica, privando-o do
verdadeiro conhecimento da realidade, munindo-o de conhecimentos e ou valores
falsos. A análise da música requer uma contextualização. Não basta simplesmente
criticá-la com finalidade em si mesma. Não caiamos no erro de buscar
compreendê-la em sua estrutura simplesmente. Façamos do estudo da música um
meio de compreensão de um contexto global o qual é o causador primeiro das
mudanças regionalizadas e localizadas. Mudanças essas responsáveis pelo
adiamento de uma verdadeira transformação.
Referências Bibliográficas
ADORNO,
Theodor W e HORKHEIMER, Marx. Dialética do Esclarecimento. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
BAGDIKIAN,
Bem H. O Monopólio da Mídia.
São Paulo: Scritta, 1993.
CARONE, Iray. Adorno e a educação musical pelo rádio.
Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, 2003.
BOURDIEU. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1997.
FROMM, Erich.
Ter ou Ser?. 4ª edição,
Rio de Janeiro: Guanabara, 1976.
MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo:
Centauro, 2002.
MARX, Karl. O Capital. Crítica da
economia política: livro II, 9ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003.
VIANA, Nildo.
A Questão
dos Valores. Revista Cultura & Liberdade, Goiânia, ano 2, nº 2, Abril de
2002.
VIANA, Nildo.
O Que é Autogestão. Revista Ruptura, ano 3, nº 4, Goiânia,
1996.
VIANA, Nildo.
O Que São Partidos Políticos.
Goiânia: Edições Germinal, 2003.
*
Professor da Universidade Estadual de Goiás; Doutor em História/UFG e
pós-doutor/UFG.
[3] O fetichismo é um
processo no qual o indivíduo produz algo e não se reconhece neste seu produto,
tomando-o como algo independente e assim passa a adora-lo. O criador passa a
adorar sua criatura e pensar que ela tem vida própria (VIANA, 2003, p. 85).
[[5]] Embora reduzimos o
capital aqui à moeda, ao papel dotado de valor econômico (dinheiro), expomos a
importância do entendimento da face oculta dessa “coisa”, que remete,
“fundamentalmente, uma relação social, uma relação de produção” (VIANA, 1996,
p. 32) enfim, um contexto de servidão e exploração.
[[6]] “A Indústria Cultural
permanece a indústria da diversão. Seu controle sobre os consumidores é mediado
pela diversão” (ADORNO, 1985, p. 128). E diversão significa “estar de acordo.
Isso só é possível se isso se isola do processo social em seu todo, se idiotiza
e abandona desde o início a pretensão inescapável de toda obra, mesmo da mais
insignificante, de refletir em sua limitação o todo. É não ter que pensar
nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado” (ADORNO, 1985, p.
135).
[[9]] A palavra “pirataria”
é derivada de pirata referente aos ataques realizados no período colonial por
piratas a navios em busca de ouro, que em termos ideológicos pode ser entendido
como a apropriação da propriedade do outro. Modernamente, em um linguajar
burguês, a pirataria é definida como o ato de copiar algum produto, ideia ou
serviço, tentando fazer com que não se note a diferença entre a cópia e o
original. O que não foge do conceito anterior. Um indivíduo que tem sua vida
suportada na troca do que produz pelo capital e a partir de certo momento essa
sua produção começa a ser reproduzida e apropriada por outra pessoa,
naturalmente ocorre a diminuição da sua renda e, consequentemente, do seu
lucro. Contudo, lucro é propriedade, um fator que estimula a luta de classe. As
contradições não acabarão no simples fato de se extinguir a pirataria ou a
“ilegalidade”, essa é uma visão conformista para com a realidade. Precisamos
sair dessas interpretações axiológicas e partir para uma libertação dessas
entranhas burguesas, atingindo seu apogeu na autogestão.
[[10]] Relacionando-se com a
música, o Cover é aquele que segue o estilo musical, ou mesmo físico
(aparência), de outro intérprete já reproduzido e legitimado pelos meios de comunicação
de massa. É uma espécie de contrafação do outro. O cover geralmente toma para
si o nome daquele que está imitando.
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