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terça-feira, 14 de janeiro de 2020

PRÁTICA, IDEOLOGIA E AUTONOMIA OPERÁRIA ENTREVISTA COM JOÃO BERNARDO




PRÁTICA, IDEOLOGIA E AUTONOMIA OPERÁRIA
ENTREVISTA COM JOÃO BERNARDO*



APRESENTAÇÃO

João Bernardo é português e possui uma biografia que inclui a expulsão da universidade por motivos políticos e a participação no coletivo que criou e manteve o jornal “Combate”, na época da revolução portuguesa. Hoje se destaca como autor de diversas obras publicadas em Portugal, Brasil, Espanha, Estados Unidos, França, etc. Suas obras mais conhecidas são: Para Uma Teoria do Modo de Produção Comunista, Marx crítico de Marx, Crise da Economia Soviética, Capital, Sindicatos e Gestores, Economia dos Conflitos Sociais, Dialectica da Prática e da Ideologia, entre outras.

Qual é a questão que marca a obra e a entrevista de João Bernardo? É a questão da autonomia operária. Neste sentido, trata-se de algo que nos interessa. Desde que surgiu o movimento socialista,  o seu ponto de referência tem sido geralmente a classe operária, seja para se auto-intitular sua “vanguarda”, seja para ser mero espectador de sua luta; seja para justificar o voluntarismo, seja para justificar o espontaneísmo, dois extremos que refletem uma “oposição binária” para usar expressão do famoso ideólogo da antropologia, a mais democrática (no sentido burguês do termo) das ciências burguesas, Lévi-Strauss. Tal como a burguesia, que vai do romantismo ao iluminismo, do racionalismo ao irracionalismo, da modernidade à pós-modernidade, do “objetivismo” ao “subjetivismo” e assim por diante, aqui se vai de um extremo ao outro, embora sejam extremos de uma mesma ideologia, a burguesa.

 Se o movimento socialista tem como ponto de partida a classe operária, então nada é mais justo que partir da análise desta classe para buscar compreender o processo revolucionário. Mas, qualquer que seja a visão da classe e da revolução, nada nos libera da obrigação de pensarmos como nos inserimos na realidade da sociedade capitalista. Há duas posições em relação ao que o revolucionário deve ser: pessoalmente interessado ou desinteressado na revolução. Ninguém será um autêntico revolucionário se for desinteressado, ou seja, se o for apenas por “pena” dos trabalhadores, tal como os filantropos. O mesmo se pode dizer daqueles que são interessados no sentido que a ideologia burguesa fornece a idéia de  “interesse pessoal”. É verdade que a alienação fundamental é a do trabalho, mas também não deixa de ser verdade que ela se expande para todas as outras relações sociais e assim nos atinge pessoalmente. Se, como dizia Marx, o proletariado ao se libertar liberta toda a humanidade, então o que está em jogo é nossa própria libertação e isso significa que não podemos nos omitir da luta e mais ainda separar “luta privada” de luta de classes. Por conseguinte, precisamos articular nossas lutas com a dos trabalhadores e, acima de tudo, lutar sempre. É uma questão ética e existencial, marcada pela recusa da alienação. Não lutar, no final das contas, significa compactuar com o mundo existente e servir para a reprodução da alienação da classe operária e a nossa própria alienação, o que alguns fazem sem saber . Isto é mais necessário ainda quando se tem a consciência de que o resultado do processo não está garantido, pois nesse caso temos que buscar formas efetivas de intervir buscando influenciar neste resultado. Toda prática é política e por isso não há omissão, mas apenas práticas conservadoras sob justificativas do tipo “isto não adianta”. Em síntese, a luta operária é também  nossa luta, pois o que está em jogo é a libertação da classe operária e também nossa libertação.

João Bernardo concorda com estas teses? Pelo que conhecemos dele diríamos que concorda em alguns pontos e discorda em outros. Entretanto, há algo mais importante do que isso, há a luta. As reflexões de João Bernardo são interessantes e abrem espaço para se pensar a revolução operária sem vanguardismo e, esquecendo as possíveis discordâncias, a obra deste pensador é uma rica colaboração ao marxismo.  


ENTREVISTA

Ruptura: O modo de produção capitalista está entrando numa fase que, segundo muitos, será marcada por uma grande crise do capital. Como fica, desse modo, a luta operária diante desta nova realidade?

João Bernardo: Desde que milito politicamente, há muitos anos, ouço falar da crise do capital, mas o que eu vejo é o capitalismo se desenvolvendo. Não entendo como pode haver crise do capital sem avanço dos trabalhadores. Parece unânime hoje a percepção de que há um grande recuo dos trabalhadores. Estes perderam uma etapa de lutas. Essa foi a última grande etapa de lutas. O final desta etapa começa nos finais dos anos 50 e início dos anos 60 na Europa e nos Estados Unidos, quando se tratou de movimento negro, direitos cívicos. Isto foi um dos componentes de um processo muito mais longo e complexo. A revolução cultural chinesa é de uma importância enorme e é neste contexto que a gente tem que ver a guerra do Vietnã, e os últimos momentos foram Portugal em 74 e 75; a Polônia do Solidariedade, o Brasil do ABC.

O que nós vivemos hoje são os resultados de uma derrota dessa fase de lutas. O capitalismo de estado soviético se desagregou, mas não foi devido a qualquer processo revolucionário como nós tivemos no caso do Solidariedade na Polônia. Isto é outro indício de até que ponto a classe operária hoje está desorganizada. Hoje, é o capital que dita as regras do jogo. Ele está organizando a classe operária quase como quer. Quase, porém, não inteiramente, tais como se vê nas “novas formas de gestão”. As organizações operárias tradicionais ou já não existem ou estão defendendo o supraclassismo, etc., e as organizações sindicais quando não defendem inteiramente essas formas de gestão, tudo o que fazem é negociar sua aplicação. A ideia de uma luta contra a exploração parece perdida pelas organizações da classe e a classe localizada, não digo pelos trabalhadores, não digo na cabeça dos trabalhadores individuais, pois não se sabe o que vai na cabeça de cada um. Então o que vejo hoje é um avanço do capitalismo e um recuo profundíssimo dos trabalhadores. Isto não é crise nenhuma do capital, ao contrário. Agora que há contradições no capitalismo é claro, ele é um processo, o capitalismo é contraditório, então é claro que há contradição.

Resumindo: me parece completamente errado confundir contradições com crise. O capitalismo vive de sua capacidade de recuperar, assimilar e reconverter as suas contradições. Crise é outra coisa. É preciso para haver crise que haja uma classe ofensiva, numa etapa ofensiva.

Ruptura: Nós não poderíamos dizer que não há, realmente, uma ascensão do movimento operário mas que isto estaria latente e, nesse sentido, poderíamos falar que se aproxima uma nova crise, que ainda não existe mas que já se esboça? 

João Bernardo: Se, como eu disse, os processos são contraditórios, então a classe operária irá dar uma resposta. Se ela agora está obedecendo relativamente grande parte dessa restruturação, depois ela pode lutar contra essa restruturação. De que maneira ainda não sabemos. O que me parece ser hoje mais importante é tentar manter o mais possível um contato com as lutas reais, entender que novas formas estão se gestando nessas lutas reais, tentar estabelecer relações, unificar por um, nós próprios entrarmos em contato. Bom, são objetivos muito modestos, mas em todas as grandes fases de refluxo os objetivos são modestos e não são completamente irrealistas. Eu acho preferível ter objetivos modestos que objetivos utópicos, no mal sentido da palavra, paranoicos, manias das grandezas.

Ruptura: Segundo alguns ideólogos, a revolução tecnológica e a sociedade de consumo produz o fim da classe operária. Daí colocamos a seguinte pergunta: é possível ocorrer o fim da classe operária no interior do capitalismo?

João Bernardo: Se nós assistimos algum fenômeno nas últimas décadas é a avassaladora expansão da classe trabalhadora, a proletarização de ramos profissionais que antes não eram proletários. A eletrônica serviu em grande parte para isso. O comércio hoje, pelo menos em grande parte dos países, que antes se exercia tradicionalmente em âmbito familiar, hoje está inteiramente proletarizado. O que desapareceu foi não a classe operária no sentido marxista e sim num sentido sociológico, descritivo. Neste sentido, sem dúvida, a classe operária desapareceu. Essa classe operária é uma criação relativamente recente, ela data do período entre as duas guerras mundiais. Antes havia outro perfil cultural da classe trabalhadora e antes desse havia outro ainda. E toda as vezes que isto ocorre os ideólogos dizem isso.

Se alguma coisa resta do marxismo, na minha opinião, é a teoria da exploração. A teoria do poder de Marx está ultrapassada e, no meu entender, as teorias da ação política revolucionária dele conduziram a resultados catastróficos, mas a teoria da exploração de Marx, a teoria da mais-valia relativa e tudo que daí se deduz, foi inteiramente confirmada. O modelo da mais-valia relativa é o único que permite analisar criticamente o desenvolvimento do capitalismo. O capitalismo da abundância significa um número cada vez maior de onde é incorporado cada vez menos tempo de trabalho. Quanto maior é a  qualificação de um trabalhador, maior está sendo sua exploração, pois ele está produzindo um trabalho cada vez mais complexo. Por conseguinte, uma hora de trabalho dele vale muitas horas de trabalho de um estivador de Manaus. Bem, para manter este grau de qualificação não se pode manter este trabalhador como um estivador de Manaus, vivendo de miséria e cachaça. É isto que eles chamam de sociedade de consumo. Na verdade, isto chama-se como extrair o máximo do trabalhador e dar-lhe cada vez mais produtos com cada vez menos tempo de trabalho. Então se fala de fim da classe operária, de sociedade do ócio e coisas assim. Isto é meramente jornalístico e quando emprego a expressão jornalístico isto tem um sentido pejorativo.                                

Eu aconselho as pessoas a não lerem a Folha de São Paulo, é melhor ler a Gazeta Mercantil. As pessoas dizem que a Gazeta é chata, ora ela é chata para as pessoas não a lerem. A Gazeta Mercantil não diz que a classe trabalhadora acabou, diz o contrário. Não diz que a exploração acabou, diz o contrário. Diz como que se aumenta a produtividade e é este tipo de texto que tem bom sentido de classe. Os documentos da FIESP não vão dizer que a classe trabalhadora acabou. Leiam os ideólogos da gestão de empresas. Eu me recordo, há muito tempo atrás, de falar em tempo de trabalho, de tempo de duração do trabalho, e ver da parte de ex-marxistas reações muito críticas: o que é isso, tempo de trabalho? Eu nem precisei me defender, pois o cara da gestão de empresa acabou me defendendo: “não, tem toda a razão, tempo de trabalho é com o que o gestor de empresa trabalha, trabalhador para nós é tempo de trabalho.

Ruptura: Então esta tese seria equivocada por partir de um ponto de vista descritivo, sociológico, e, sendo assim, não marxista, que define a classe operária em sua relação com o capital, que é a relação instaurada na produção de mais-valor.

João Bernardo: O sentido em que eu defino classe é exclusivamente este. As classes, tenham consciência ou não, resultam deste processo. Você já imaginou que é fazer uma medicina baseada na consciência. Se a pessoa não tivesse consciência que tinha um cancro, ela não tinha um cancro. “Há, você tinha um cancro”, “como, eu não posso, eu não tinha consciência”.  As classes evoluem, quer tenham ou não consciência. A consciência, pra mim, vale muito pouco. E quando se diz que o processo de luta de classes tem que ter consciência? ela acaba como sendo um resultado do que a gente já fez. A ideologia é uma reflexão sempre a posteriori sobre uma prática que nós fizemos. Esse é o grande dilema do ser humano. A gente atua no escuro e depois reflete, ou seja, nós refletimos sobre coisas materiais e as coisas materiais são a prática que nós fizemos, nós sempre estamos refletindo sobre práticas que já fizemos.

Por que a classe operária deveria ter um único perfil cultural? Pode haver uma classe trabalhadora com múltiplos perfis culturais. Por que não, se as relações de solidariedade podem existir com outros perfis culturais. Aliás, é aquilo que em geral ainda existe entre nós. Se a gente tem uma base prática que ultrapassa estas diferenças de formação e essa base prática se faz nas lutas dos trabalhadores, então você tem um sistema de gestão capitalista, que consiste em criar uma multiplicidade de perfis culturais para dividir a classe, e a luta dos trabalhadores, que consiste em reunificar, refazer e restabelecer a solidariedade, apesar desses perfis culturais diferentes.

Ruptura: Há um problema que pode ser levantado aí: se a autogestão pressupõe o controle do ser humano sobre as forças produtivas, sobre a natureza, o que significa autogoverno ou planificação autogerida da sociedade, não haveria a necessidade da consciência  e neste caso ela não deixaria de ter uma importância secundária e passaria a ter uma importância fundamental?

João Bernardo: Até poderia dizer sim, mas a experiência...Eu, suspeitou-se, sou ideólogo por profissão, mas um ideólogo mais descrente da ideologia que vocês podem imaginar. Eu acho que a gente é obrigado a se agregar a uma ideologia. O homem, o ser humano, não vive sem isso. Mas não acredito em feitos práticos da ideologia. Eu escrevi um livro que foi editado aqui no Brasil, pela Cortez, e em Portugal, pela Afrontamento, que se chama Dialética da Prática e da Ideologia e é aí que pretendo, entre outras coisas, dizer isso mesmo: a ideologia é ineficaz. Bem, vou pegar um exemplo. Você está falando da autogestão como um princípio político. Eu vi a autogestão somente, diretamente, em Portugal, em 74 e 75. A primeira empresa em Portugal que entrou em autogestão produzia três mil peças de roupas e tinha oito mulheres. Era essencialmente uma empresa estrangeira e tinha em sua linha parte da costura. Por que elas entraram em autogestão? Porque o administrador estrangeiro bloqueou e fugiu com o dinheiro da empresa. Mas, é claro, deixou lá uma montanha daquela roupa. Então, como elas tinham que sobreviver, começaram a ir costurando aquilo e ir vendendo. Foi por isso que elas assumiram uma consciência revolucionária. Quando elas se deram conta do que estavam fazendo, ou seja, só depois. Eram mulheres que não tinham qualquer luta anterior.

A segunda empresa que entrou em autogestão também era de costura, mas essa era nacional. Com a ditadura, o patrão fugiu para o Brasil, a esta altura sob o  governo Garrastazu Médici que estava aqui e toda essa gente fugia para cá. Ele fugiu com o dinheiro e elas foram produzindo e todas as outras que entraram no processo de autogestão raramente foi por pressupostos ideológicos. Elas entravam em autogestão porque os caras fugiam sempre. Eu tive nessa época uma discussão com um dirigente de um grupúsculo internacional que era contrário à autogestão, que achava que a autogestão era uma alienação dos trabalhadores. Eu disse: “bem, os trabalhadores têm que viver, não é? têm que comer de alguma maneira, eles não podem viver de direitos do autor de livros que criticam a autogestão”. Esse cara disse: “eles deviam assaltar os supermercados”. Eu lhe respondi: “você sabe que as principais cadeias de supermercados estão em autogestão?” e era verdade, então eles estariam o que, roubando uns aos outros. Essa que foi a realidade dos fatos. Depois de terem feito isso, e é isso que foi espetacular em Portugal em 74 e 75, que para mim era uma experiência inesquecível, que embora eu tivesse rompido com o leninismo nessa altura, continuava com aquela ideia de que a revolução ia surgir das grandes concentrações operárias.

Essas mulheres e essas empresas sem passado de luta remodelaram as suas relações de trabalho, reformularam a ligação entre a peãozada e as chefias internas, reestruturaram as hierarquias, remodelaram o sistema do pessoal do escritório e começou a passar pela linha de produção, coisas assim. E o que foi realmente prodigioso, maravilhoso, foi ver essas pessoas tomarem consciência do que tinham feito e tinham conseguido fazer algo de revolucionário. Aí elas assumiram a consciência e foi assim que se fez o processo de autogestão. Então, é claro que, quando elas assumem esta consciência, elas se radicalizam, mas isso me parece que já é o andar natural do processo.

Ruptura: Eu li o seu livro Dialética da Prática e da Ideologia e fiquei com a dúvida de como, na sua concepção, surge a mudança. Neste caso, segundo você, a mudança vem da prática e num segundo momento a consciência acaba tendo um papel, que seria o de reforçar aquela nova prática.

João Bernardo; Neste livro, se bem me recordo, a consciência serve para fazer entrar em contato pessoas. Estas, uma vez em contato, podem facilitar unificações e lutas posteriores. Isto me parece mais importante do que o modelo que proponho ou o que lhe digo. Isso é muito mais importante do que o conteúdo ideológico que pode ser divulgado. Ponha de lado a Dialética da Prática e da Ideologia e pegue no caso das mulheres em Portugal. Em Portugal, na época de Salazar, as mulheres eram mais oprimidas do que geralmente o são, então experiências de lutas era uma coisa quase que de homem. As mulheres que vendiam peixes, não sei porque razão, eram mulheres muito ativas, mas as outras eram muito submissas, pelos próprios maridos. Você já imaginou que essas mulheres ocuparam as fábricas, as instalações, se revezaram, passavam a noite lá. Ela chegava e dizia que “hoje é meu dia de dormir na fábrica”. Sabe o que significava isso para um marido operário tradicional, bem tradicional? Elas, quando nós as entrevistávamos, diziam: “os nossos maridos, felizmente,  têm nos ajudado muito”. Bom, havia o pessoal das fábricas ao redor e os maridos iam lá para vigiá-las, mas só que não podiam dizer isso, precisavam criar estratégias e aí diziam que iam lá para ajudá-las. Apesar disso, elas estavam levando este processo de transformação muito mais longe, surgindo no local de produção e chegando até a família. Isso eu vi e posso garantir que existe. Bom, quando eu leio ou ouço uma pessoa dizer que a sociedade não pode mudar, eu digo: pode  e eu vi este exemplo.

Certa vez, conversando com uma amiga, que, inclusive tinha também vivido esta época de lutas, eu criticava grupos de certo modo como vocês, não eram vocês, porém outros. Eles tinham uma visão meramente literária do processo autogestionário, como uma nova teoria que surge. Eu disse: “que visão tens eles do processo? Pessoas que nasceram depois dessa vaga de lutas ter acabado”. Ela me disse: “ já é muito ter esta visão livresca”. Mas é uma coisa que quem viveu não pode transmitir, a gente pode transmitir sob forma literária mais uma vez, que vocês assimilam sob forma literária. Mas aquilo que a gente pode viver é muito mais rico do que uma pessoa pode dizer. Uma prática é muito mais multifacetada e a gente viu transformações efetivas e eu sublinho este aspecto de terem surgido essas transformações em locais onde não havia tradições nenhuma, de pessoas que nunca haviam lutado. Certamente tinham lutado em sua vida privada, a gente nunca pode dizer que as pessoas não lutaram, mas lutaram de uma maneira, enfim, alienada. A gente diria, não tão alienada assim, pois foram capazes de dar uma resposta e foram as que mais aguentaram a luta depois.

É assim que vejo um movimento autônomo. Não se pode pensar que um movimento autônomo surge por uma ação tão planejada assim, porque ele é autônomo mesmo, ele nos ultrapassa.

Ruptura: Bom, agora temos que fazer a defesa do grupo. Você mesmo diz que toda “ideologia” decorre de uma prática e aí você coloca que tem grupos, como o MSL (MOVAUT)**, que teriam uma concepção puramente livresca de autogestão. Não há uma contradição aí ? Afinal, por que pegaríamos essa cultura de livros e aceitaríamos ela? Isto também não decorreria de uma prática? Neste sentido, pode-se dizer que se trata de uma prática diferente, uma outra prática. Esta crítica parece com uma crítica que me foi endereçada por leninistas (alguns, hoje, ex-leninistas) que me acusavam de defender idéias autogestionárias por não ter  uma “prática”. Que prática era essa? Obviamente, é a prática deles.

João Bernardo: Você tem toda a razão. Mas eu fiz uma autocrítica. Fiz quando relatei  que minha crítica tinha sido rebatida por uma companheira. É claro que vossa visão do processo autogestionário, produzida numa situação de refluxo da classe trabalhadora, tem que ser diferente. E resultou da vossa prática, da vossa prática, sem dúvida alguma. Agora o que eu quero dizer é o seguinte: bom, não estou dizendo que a minha prática foi mais importante do que a vossa. A minha prática me permitiu ter uma dada visão do processo autogestionário e autônomo. Vocês têm aí outra prática, qual é a mais adequada, a minha ou a vossa? Eu diria, talvez, na medida em que estamos vivendo numa situação de grande refluxo, a vossa prática seja a mais adequada.

Agora uma coisa que nós devemos ter em conta, o leninista, staliniano, para não falar dos outros, ele tem um objetivo, ele pretende enquadrar a realidade e tudo que saia do modelo ele pretende desarticular, destruir e as técnicas leninistas e stalinistas para desarticular a realidade social sob a qual  o partido não tem controle é uma técnica extremamente elaborada, continua a existir e com ótimos frutos para quem a pratica. É preciso que o movimento seja muito forte para ultrapassar isso. Bem, então, nós vamos ter que fazer o mesmo e é um risco muito grande quando um grupo se constitui em torno de uma plataforma ideológica. Há o risco de vocês se tonarem cegos a uma prática que não entre dentro de sua plataforma ideológica. Como é que se ultrapassa isso? Não sei, pois se os momentos de refluxos são precisamente para separações, para cisões. Eu diria que constituir uma revista mais de choque, confronto, mais crítica, é uma dificuldade enorme ter pessoas de correntes diferentes que aceitem fazer choque e confronto respeitando regras de jogo democráticos. Isto é quase tão utópico quanto qualquer outra coisa.

Então, essas são as limitações das situações de refluxo, tudo contribui para desagregar. E a gente se agrega em torno do que? Há, uma prática comum, mas este é o problema, numa situação de refluxo não há práticas tão fortes assim, então a gente se agrega em torno de uma plataforma ideológica. Aí tem um inconveniente: ou você desarticula ou pelo menos a pessoa corre o sério risco de ficar cego ao que está exterior à plataforma ideológica. Como uma pessoa sai dessa situação? Não sei, é uma contradição que a gente tem que viver.

Ruptura: O conteúdo do socialismo é a autogestão. Entretanto, as diversas e rápidas experiências autogestionárias foram derrotadas pelo capital.Hoje, o modo de produção capitalista ao mesmo tempo que demonstra força demonstra suas  fraquezas. Quais são as perspectivas da autogestão neste quadro histórico marcado pela ambiguidade?

João Bernardo: Olhe, eu não sei. Eu espero não ser daquelas pessoas que  morrem dizendo: eu morro, mas estou seguro. Há um poeta português (...), que conta uma história de um cara que depois que foi fuzilado disse: “atenção! da próxima vez que me fuzilar ao menos dê-me tempo de morrer gritando: Viva a Revolução!“. As perspectivas são as seguintes: não vejo a possibilidade de demonstrar que ao capitalismo se sucederá inelutavelmente uma sociedade sem classes. Marx, lamentavelmente, confundiu essa grande concentração de capital com o socialismo. O máximo que se pode dizer, com os pés no chão, é que no capitalismo existem esplêndidas condições para se ultrapassar a sociedade de classes, mas acho que vai ser um processo muito longo, de muitos séculos. Eu não creio que a classe trabalhadora vá rapidamente derrubar o capital. Ela conseguirá avançar e dentro destes ciclos de recuperação avança a recuperação da classe trabalhadora por parte do capital e cada vez que a classe trabalhadora faz um novo avanço, faz num terreno recuperado pelo capital. Veja-se os grandes ciclos revolucionários, em 1848, depois a Comuna de Paris, as grandes lutas de 16 à 21 e depois as lutas autônomas. Você começa a ver antes de 48 até a revolução cultural e o Solidariedade na Polônia. A luta de 1848 parece até infantil pelas reivindicações e problemáticas que colocavam. A luta se torna cada vez mais profunda, não como um círculo vicioso, mas como uma espiral em crescimento.

Podemos constatar também que o capitalismo tem contradições e só pode viver da exploração e que as pessoas lutarão contra a exploração. Mas temos ao mesmo tempo divisões e se os trabalhadores conseguirem ultrapassar estas divisões os capitalistas conseguirão os obrigar a novas divisões. O grande problema prá mim está no interior da classe trabalhadora. Este é o problema central, o problema da reorganização no interior da classe trabalhadora.

Muitas vezes me perguntei como foi possível haver um movimento autônomo em Portugal durante 74/75 com esta amplitude. Saímos em 48 horas do fascismo. O fascismo tinha desorganizado tudo. Vocês não imaginam o que era a repressão em Portugal, não que houvesse a polícia, torturas como as da argentina. Tinha tortura e polícia mas a questão não é essa: era uma repressão moral a um ponto inacreditável. Era proibido dar beijo em público. Bom, eram coisas inacreditáveis. Como é que foi possível este movimento? A classe trabalhadora era proibida de se organizar politicamente, era proibida de se exprimir, a fazer greves, a ter sindicatos propriamente dito. Ela constituiu mecanismos defensivos, nos bairros, nos botecos, nas associações populares e recreativas e nós, marxistas, maoístas, leninistas chamavam-nas de alienadas, pois elas não queriam política e tinham toda razão em não querer, era a condição para elas sobreviverem. A gente ia lá fazer o nosso trabalho, recrutar e os caras não queriam. E eles tinham razão estrategicamente, eles estavam criando mecanismos de defensivos, e foram estes mecanismos que lhes permitiram rapidamente depois fazer comissões de bairros. No Brasil se passou o mesmo durante a ditadura militar, ela desorganizou as fábricas e as pessoas se organizaram nos bairros. Vocês já repararam que o movimento do ABC surge depois dos militares terem exterminado fisicamente e ideologicamente toda uma geração de militantes, com o extermínio daqueles caras criados da época de Vargas até Goulart, os novos caras, os jovens trotskistas, os católicos. Foi a própria classe que fez este movimento. Isto é sinal de que são garantias, são indícios muito sérios de uma continuação dum processo revolucionário. Você sabe o nome do cara que só luta quando sabe que vai vencer? É um covarde.

 A gente luta historicamente e tem que lutar sem a garantia que vai vencer. Isto é que torna interessante o processo, com garantia não vale a pena, mas com sérios indícios para não sermos completamente paranoicos. Vocês vivem num país que tem, por exemplo, um movimento sindical, para não falar de universidades, com contradições tão grandes que se pode trabalhar lá dentro. Não é por acaso que o movimento dos trabalhadores aqui ainda tem uma força. Os sindicatos não são menos burocráticos no Brasil do que os de qualquer outro lugar, mas as pressões dos trabalhadores são tão grandes que os sindicatos têm que abrir esta demanda, assim como as universidades. Não é porque querem fazer, mas porque têm que fazer. Então são espaços de organização que vocês aproveitam e tem que aproveitar e que são exemplares para nós. Muitas vezes no Brasil se acredita de que a Europa é que é o exemplo. A Europa não é exemplo de nada a não ser de velhice.

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Publicado originalmente em:
* Revista Ruptura. Publicação do MSL (MOVAUT). Ano 3, No 04, Janeiro de 1996.
** MSL - Movimento Socialista Libertário, anteriormente "Movimento Conselhista" e alguns anos depois MOVAUT - Movimento Autogestionário. Para mais informações, veja o site e blog do coletivo: http://movaut.com.br http://movaut.blogspot.com 

  

                   


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