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segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Marx: Uma Ideologia do Estatismo ou a Legitimação de uma mentira?


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Uma ideologia do estatismo
(seguido de comentário crítico de Nildo Viana)
Legitimação de uma burguesia de Estado não veio de Lênin, mas do próprio Marx




"Os proletários não têm nada a perder numa revolução comunista, além de seus grilhões. Proletários de todos os países, uni-vos!" (Marx e Engels).


LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES *

especial para a Folha


Escrever algo novo sobre o "Manifesto" é uma pretensão que esse artigo não tem. Quero apenas levantar alguns pontos provavelmente já tratados por outros. Sem dúvida, o "Manifesto" não é, nem se destinava a ser, um escrito estritamente teórico, mas de militância política. Esse objetivo, amplamente atingido, talvez tenha sido uma das razões de seu êxito. A vantagem do "Manifesto", em matéria de difusão, sobre outros escritos de Marx e Engels (M&E) deve-se à combinação hábil (mas superficial) de uma interpretação da evolução da história, da descrição de aspectos da industrialização e da situação do trabalho na Inglaterra com uma doutrina política militante recheada de frases de efeito, mas de difícil comprovação empírica: "Na sociedade burguesa, o passado domina o presente; na sociedade comunista, é o presente que domina o passado". "Nossos burgueses, não contentes em ter à sua disposição as mulheres e as filhas dos proletários, sem falar da prostituição oficial, têm o singular prazer em se cornearem uns aos outros." Segundo P. Johnson, algumas das frases mais famosas do "Manifesto" não vieram de M&E: de Karl Shapper teria vindo: "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!"; de Marat: "os trabalhadores não têm pátria" e os "trabalhadores não têm nada a perder, a não ser suas cadeias". Ademais, do ângulo comercial, trata-se de um livro pequeno, barato, acessível em matéria de preço e compreensão para os milhões de trabalhadores que aderiam aos sindicatos e partidos de esquerda. Além disso, era aceito por todas as tendências marxistas e um investimento editorial seguro, com mercado garantido e sem direitos autorais.

Os marxistas, especialmente os que não passaram da leitura do "Manifesto", tendem a relacionar a força do "Manifesto" ao fato de ter dado bases científicas ao socialismo (daí a tese do "socialismo científico"). O socialismo não resultaria mais (ou apenas) de uma vontade política, de um repúdio moral ao mundo burguês, mas de um desenvolvimento fatal de leis econômicas ligadas a uma filosofia da história que trazia também um método de interpretação. Desse ponto de vista, o "Manifesto" é modelar: mistura observações econômicas e sociológicas corretas com outras que não são nem falsas nem verdadeiras porque são inespecíficas e, assim, irrefutáveis. É o caso da afirmação de que a história da humanidade é a história da luta de classes, cientificamente tão válida como dizer que a história da humanidade é o desenvolvimento da tecnologia, da cooperação dos homens entre si ou do conflito entre religiões.

Outras vezes, seguem-se conclusões que não derivam das proposições anteriores ou proposições contraditórias diante do que havia sido dito antes, tal como a afirmação de que a mesma burguesia, que em páginas anteriores é a classe dinâmica e revolucionária, seria apenas um "agente passivo e inconsciente do progresso da indústria". Mas o êxito do "Manifesto" vem também da parte formal, do estilo adotado, ou seja, o tom apocalíptico, profético, irônico, indignado, auto-suficiente, nada acadêmico e muito adequado para a mobilização política. Desse ângulo, poucos escritos foram tão perfeitos.

O início do "Manifesto" começa com uma síntese do papel revolucionário e civilizatório da burguesia na modernização do mundo: "Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. (...) Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos países. Para o desespero dos reacionários, ela retirou da indústria sua base local". Os marxistas mais empedernidos podem dizer que M&E já haviam previsto a globalização... se bem que talvez não endossassem a conclusão de que "a burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras".

Mas subitamente a exaltação da ação civilizatória da burguesia e do colonialismo é deixada de lado. O "Manifesto" passa a apontar os malefícios do capitalismo. A classe capaz de levar a civilização aos quatro cantos do mundo e para dentro de seus próprios países deve desaparecer. Aqui vem uma das teses centrais no pensamento marxista: a revolta das forças produtivas contra as relações de produção e de propriedade. E por quê? Porque as forças produtivas liberadas não mais favoreceriam a expansão de relações de propriedade burguesa. A única evidência oferecida no "Manifesto" seriam as crises, que destruiriam regularmente parte das forças produtivas e da massa de produtos. É aí que entra o proletariado salvador. Como um messias, sofredor sob o capitalismo, ele se levantaria para conduzir a humanidade ao paraíso. Mas o raciocínio é falho do ponto de vista lógico, para não falar da prova dos fatos. M&E citam a ocorrência das crises econômicas como um fator desencadeador da revolução.

Não discutamos a evidência de que sob o capitalismo há crises. Acontece, porém, que acontecimentos econômicos não encontram a mesma expressão política. Historicamente, nenhum regime socialista resultou de uma crise econômica, mas de eventos políticos e militares (guerras e crises institucionais profundas). Crises econômicas (e políticas) no mais das vezes conduzem é a regimes ditatoriais de direita. Do ponto de vista lógico, como conciliar a ideia de aumento constante da produção (e do consumo) com o crescente aumento da miséria de uma massa cada vez maior de pessoas, quer dizer, com a diminuição geral do poder de compra? "O trabalhador cai no pauperismo... (A burguesia) não pode exercer o seu domínio porque não pode assegurar a existência de seu escravo (...)". Note-se que M&E não estão se referindo a uma crise econômica súbita, mas a um processo contínuo de empobrecimento marchando junto com o aumento da produção e dos lucros capitalistas.

Essas contradições (não-dialéticas) do "Manifesto" atormentaram os intelectuais marxistas. Longas discussões (e comparações com outros escritos, em especial "O Capital") foram travadas para saber se se trataria da pauperização relativa ou absoluta do proletariado. Uma das soluções foi introduzir o papel do mercado externo para explicar que uma parte minoritária do proletariado (a "aristocracia operária") se beneficiaria com as migalhas que cairiam da mesa farta da burguesia devido à exploração dos povos coloniais. Finalmente, diante da evidências do aumento geral do padrão de vida das classes trabalhadoras sob o capitalismo, o tema da pauperização caiu no esquecimento.

Mas não cremos que o sucesso do "Manifesto" deva ser avaliado somente (ou principalmente) em termos da correção de suas interpretações e previsões. Nenhuma doutrina se impõe pela validez científica de seu corpo de idéias, mas dos interesses sociais a que acaba servindo. O êxito do "Manifesto" não se deve às suas "verdades", mas a outros fatores.

Começou servindo a uma parte do movimento operário, especialmente a social-democracia da Europa do Norte. No entanto, as lideranças sindicais, mais pragmáticas, assim que obtiveram um espaço no sistema de poder das sociedades capitalistas, logo se desinteressaram pelas complicadas e esotéricas análises da "intelligentsia ligada à classe operária". O marxismo foi saindo do movimento sindical, mas encontrou novos porta-bandeiras: deslocou-se para as universidades. Deixou de ser o marxismo militante de uma "intelligentsia" marginal (como era o próprio Marx). Transformou-se na ideologia de um segmento da intelectualidade de classe média burocrática, dando origem ao marxismo acadêmico. Já nos países em que os partidos comunistas chegaram ao poder, transformou-se na doutrina oficial da nova classe dominante que controlava o partido-Estado.

Entendo que esses desenvolvimentos não aconteceram por acaso. O marxismo (e o "Manifesto", sua melhor vulgarização) servem admiravelmente bem para a legitimação (e ocultação) do poder de uma burguesia de Estado e de uma intelectualidade (quer dizer, dos que têm saber, instrução, informação) na sua disputa com a burguesia privada e com as estruturas de poder e riqueza decorrentes do mercado. Pela ótica marxista, todas as desigualdades sociais e políticas vêm da propriedade privada. É como se fora do mercado (ou seja, no aparelho estatal, na igreja, no Exército, nas universidades, nos partidos, nos sindicatos etc.) não houvesse dominação ou, se houvesse, derivaria da existência do capital e desapareceria com a estatização dos meios de produção.

O estatismo não veio do leninismo ou do stalinismo, mas do próprio marxismo. Vale a pena citar as principais medidas de transição para o socialismo propostas no "Manifesto": expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra em proveito do Estado; centralização do crédito, dos transportes em mãos do Estado; multiplicação das fábricas e dos instrumentos de produção pertencentes ao Estado, trabalho obrigatório para todos e, antecedendo Trotsky, organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura.

Essas propostas devem ser lembradas quando a esquerda "não-stalinista", defensora do "verdadeiro socialismo" (que não seria o "socialismo real"), argumenta que o estatismo soviético seria um desvio das idéias de M&E. Muito antes de qualquer outro, Bakunin havia posto o dedo na ferida, ou perto dela. Falando de Marx, escreve: "Trata-se de um comunista autoritário, um partidário da libertação e da reorganização do proletariado pelo Estado. Consequentemente, de cima para baixo, pela inteligência e o saber de uma minoria esclarecida que professa, bem entendido, o socialismo e exerce, a seu proveito, uma autoridade legítima sobre as massas estúpidas e ignorantes".




A LEGITIMAÇÃO DE UMA MENTIRA

NILDO VIANA**


Esse texto do Leôncio Martins Rodrigues é ruim e equivocado. O título do texto é apenas uma estratégia de chamar a atenção, pois, no fundo, o que o autor faz é discutir o Manifesto Comunista e só no final aborda o suposto estatismo do marxismo. 

E em quê ele se baseia para dizer que a ideologia do estatismo é algo do marxismo e tentar recusar a afirmação de que isso não é uma concepção de Marx e Engels? Nada além de uma passagem do Manifesto ComunistaAlém de desconsiderar toda a produção teórica além desse texto-manifesto, e de desconsiderar o processo de evolução intelectual de Marx (ele ainda não havia aprofundado vários aspectos, entre os quais a questão da exploração capitalista, sendo que a teoria do mais-valor vai ser produzida posteriormente), e diversos problemas analíticos (não entender, por exemplo, o significado histórico da burguesia e, por conseguinte, a posição de Marx a respeito dela), o autor ainda usa apenas uma passagem do Manifesto Comunista para fazer sua afirmação. 

Ora, o mesmo autor, quando escreveu sobre Lênin, encontrou dezenas de afirmações, vários textos e livros para mostrar sua "ideologia estatista". Em Marx, consegue apenas um pequeno trecho do Manifesto Comunista. E esse pequeno trecho é interpretado de forma equivocada, pois é descontextualizado e nem sequer busca entender o que é "estado" no contexto citado, e nem relaciona com a ideia defendida anteriormente que é o proletariado (a classe inteira, em sua totalidade, e que nessa época era a maioria da população nos países capitalistas já consolidados, como a Inglaterra), que toma o Estado para si e não partidos ou outras organizações. 

Além disso, o autor simplesmente desconsidera o prefácio no qual Marx afirma que as medidas  provisórias (justamente as citadas por Leôncio Martins Rodrigues, o autor do texto) que foram apresentadas estavam superadas depois da experiência autogestionária da Comuna de Paris. Ou seja, o único trecho que o autor conseguiu achar em Marx em que haveria "estatismo" é descontextualizado, mal interpretado, etc., e, ainda por cima, foi superado pelo próprio Marx... 

Logo, é um texto muito ruim, equivocado e que somente leitores desatentos ou que não conhecem a obra de Marx poderiam levar a sério.

(Texto postado no Facebook em resposta a postagem do texto anterior).

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* Leôncio Martins Rodrigues é professor do departamento de ciência política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

** Nildo Viana é professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFG (Universidade Federal de Goiás).

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