CRÍTICA AO ANARQUISMO*
GUY DEBORD
É na própria luta histórica que é
preciso realizar a fusão do conhecimento e da ação, de tal modo que cada um
destes termos coloque no outro a garantia da sua verdade. A constituição da
classe proletária em agente ativo é a organização das lutas revolucionárias e a
organização da sociedade no momento revolucionário: é aqui que devem existir as
condições práticas da consciência, nas quais a teoria da práxis se confirma
tomando-se teoria prática. Contudo, esta questão central da organização foi a
menos considerada pela teoria revolucionária na época em que se fundava o
movimento operário, isto é, quando esta teoria possuía ainda o carácter
unitário vindo do pensamento da história (e que ela se tinha justamente dado
por tarefa desenvolver até uma prática histórica unitária). É, pelo contrário,
o lugar da inconsequência para esta teoria, ao admitir o retomar de métodos de
aplicação estatais e hierárquicos copiados da revolução burguesa. As formas de
organização do movimento operário desenvolvidas sobre esta renúncia da teoria
tenderam por sua vez a interditar a manutenção de uma teoria unitária,
dissolvendo-a em diversos conhecimentos especializados e parcelares. Esta
alienação ideológica da teoria já não pode, então, reconhecer a verificação
prática do pensamento histórico unitário que ela traiu, quando uma tal
verificação surge na luta espontânea dos operários; ela pode somente concorrer
para reprimir-lhe a manifestação e a memória. Todavia, estas formas históricas
aparecidas na luta são justamente o meio prático que faltava à teoria para que
ela fosse verdadeira. Elas são uma exigência da teoria, mas que não tinha sido
formulada teoricamente. O soviete não era uma descoberta da teoria. E a mais
alta verdade teórica da Associação Internacional dos Trabalhadores, era já a
sua própria existência na prática.
***
Os primeiros sucessos da luta da
Internacional levavam-na a libertar-se das influências confusas da ideologia
dominante que nela subsistiam. Mas a derrota e a repressão que ela cedo
encontrará fizeram passar ao primeiro plano um conflito entre duas concepções
da revolução proletária, ambas contendo uma dimensão autoritária, pela qual a
auto- emancipação consciente da classe é abandonada. Com efeito, a querela
tornada irreconciliável entre os marxistas e os bakuninistas era dupla, tendo
ao mesmo tempo por objeto o poder na sociedade revolucionária e a organização
presente do movimento, e ao passar dum ao outro destes aspectos, as posições
dos adversários invertem- se. Bakunin combatia a ilusão de uma abolição das
classes pelo uso autoritário do poder estatal, prevendo a reconstituição de uma
classe dominante burocrática e a ditadura dos mais sábios, ou dos que serão
reputados como tal. Marx, que acreditava que um amadurecimento inseparável das
contradições econômicas e da educação democrática dos operários reduziria o
papel de um Estado proletário a uma simples fase de legalização de novas
relações sociais, impondo-se objetivamente, denunciava em Bakunin e seus
partidários o autoritarismo duma elite conspirativa que se tinha
deliberadamente colocado acima da Internacional, e que formulava o extravagante
desígnio de impor à sociedade a ditadura irresponsável dos mais
revolucionários, ou dos que se teriam a si próprios designado como tal. Bakunin
recrutava efetivamente os seus partidários sob tal perspectiva: «Pilotos
invisíveis no meio da tempestade popular, nós devemos dirigi-la, não por um
poder ostensivo, mas pela ditadura coletiva de todos os aliados. Ditadura sem
faixa, sem título, sem direito oficial, e quanto mais poderosa menos terá
aparências de poder». Assim se opuseram duas ideologias da revolução operária,
contendo cada uma delas uma crítica parcialmente verdadeira, mas perdendo a
unidade do pensamento da história e instituindo-se, a si próprias, em
autoridades ideológicas. Organizações poderosas, como a social-democracia alemã
e a Federação Anarquista Ibérica, serviram fielmente uma e outra destas
ideologias; e em toda parte o resultado foi grandemente diferente do que era
desejado.
***
O fato de olhar a finalidade da
revolução proletária como algo imediatamente presente constitui, ao mesmo
tempo, a grandeza e a fraqueza da luta anarquista real (porque nas suas
variantes individualistas, as pretensões do anarquismo permanecem irrisórias).
Do ponto de vista do pensamento histórico da moderna luta de classes, o
anarquismo coletivista retém unicamente sua conclusão, e sua exigência absoluta
desta conclusão traduz-se igualmente no seu desprezo deliberado pelo método.
Assim, sua crítica da luta política permaneceu abstrata, enquanto sua escolha
da luta econômica não se afirmou, ela própria, senão em função da ilusão de uma
solução definitiva arrancada de uma só vez nesse terreno, no dia da greve geral
ou da insurreição. Os anarquistas têm um ideal a realizar. O anarquismo é a
negação ainda ideológica do Estado e das classes, isto é, das próprias
condições sociais da ideologia separada. É a ideologia da pura liberdade que
iguala tudo e que afasta toda a ideia do mal histórico. Este ponto de vista da
fusão de todas as exigências parciais deu ao anarquismo o mérito de representar
a recusa das condições existentes no conjunto da vida, e não em torno de uma
especialização crítica privilegiada, mas esta fusão, ao ser considerada no
absoluto, segundo o capricho individual, antes da sua realização efetiva
condenou também o anarquismo a uma incoerência demasiado fácil de constatar. O
anarquismo não tem senão a redizer e a repor em jogo, em cada luta, a sua
simples conclusão total, porque esta primeira conclusão era desde a origem
identificada com a concretização integral do movimento. Bakunin podia, pois,
escrever em 1873, ao abandonar a Federação do Jura: «Nos últimos nove anos
desenvolvemos no seio da Internacional mais ideias do que o necessário para salvar
o mundo, [como] se as ideias por elas mesmas pudessem salvá-lo, e desafio quem
quer que seja a inventar uma nova. O
tempo já não está para ideias, mas para fatos e atos». Sem dúvida, esta
concepção conserva do pensamento histórico do proletariado a certeza de que as
ideias devem tornar-se práticas, mas ela abandona o terreno histórico ao supor
que as formas adequadas a esta passagem à prática já estão encontradas e não
variarão mais.
***
Os anarquistas, que se distinguem
explicitamente do conjunto do movimento operário pela sua convicção ideológica,
vão reproduzir entre si esta separação das competências, ao fornecer um terreno
favorável à dominação informal, sobre toda a organização anarquista, pelos
propagandistas e defensores da sua própria ideologia, especialistas, via de
regra, medíocres na medida em que sua atividade intelectual se reduz
principalmente à repetição de algumas verdades definitivas. O respeito
ideológico da unanimidade na decisão favoreceu antes de mais nada a autoridade
incontrolada, na própria organização, dos especialistas da liberdade; e o
anarquismo revolucionário espera do povo liberto o mesmo gênero de unanimidade,
obtida pelos mesmos meios. De resto, a recusa de considerar a oposição das
condições entre uma minoria agrupada na luta atual e a sociedade dos indivíduos
livres alimentou uma permanente separação dos anarquistas no momento da decisão
comum, como o mostra o exemplo de uma infinidade de insurreições anarquistas na
Espanha, limitadas e esmagadas no plano local.
***
A ilusão, sustentada mais ou
menos explicitamente no anarquismo autêntico, é a iminência permanente de uma
revolução que deverá dar razão à ideologia, e ao modo de organização prático
derivado da ideologia, ao realizar-se instantaneamente. O anarquismo conduziu
realmente, em 1936, uma revolução social e o esboço, o mais avançado de todos
os tempos, de um poder proletário. Nesta circunstância, é preciso ainda notar,
por um lado, que o sinal de uma insurreição geral tinha sido imposto pelo
pronunciamento do exército. Por outro lado, na medida em que esta revolução não
se concluiu nos primeiros dias, pela existência de um poder franquista em
metade do país, apoiado fortemente pelo estrangeiro no momento em que o resto
do movimento proletário internacional já estava vencido, e pela sobrevivência
das forças burguesas ou de outros partidos operários estatistas no campo da
República, o movimento anarquista organizado mostrou-se incapaz de alargar as
meias-vitórias da revolução, e até mesmo de defendê-las. Os seus reconhecidos
chefes tornaram-se ministros e reféns do Estado burguês que destruía a
revolução para perder a guerra civil.
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Trecho do livro "A Sociedade do Espetáculo".
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Trecho do livro "A Sociedade do Espetáculo".
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