AS
CONTRADIÇÕES DE HANNAH ARENDT
Russel Jacoby*
Uma rua leva seu nome em sua homenagem. Conferências
consecutivas a celebraram. Novos livros a defendem vigorosamente. Hannah
Arendt, que em outubro teria completado 100 anos, pertenceu ao restrito mundo
dos heróis filosóficos. E toda essa atenção que ela desperta não foi granjeada
apenas depois da sua morte, em 1975. Em vida, recebeu graus honoríficos de
instituições como Princeton, Smith, e outras faculdades e universidades. A
Dinamarca concedeu–lhe o prêmio Sonning pelo “admirável trabalho que beneficiou
a cultura europeia”, também recebido por Albert Schweitzer e Winston Churchill.
Em suas conferências, os estudantes se aglomeravam nos corredores e às portas
de entrada da sala.
Arendt se ajustou ao papel de herói filosófico. Era uma
refugiada judia alemã submersa na educação clássica e conhecedora do mundo. Com
suas frequentes referências a termos gregos ou latinos, seus escritos
irradiaram reflexão. Ela não temeu abordar grandes temas – a justiça, o mal, o
totalitarismo – ou se envolver em questões políticas de atualidade, como a
Guerra do Vietnã, direitos civis, o julgamento de Adolf Eichmann. Era ao mesmo
tempo metafísica e realista, profunda e sexy. Alfred Kazin, crítico de Nova
York, lembra de Hannah como uma mulher de grande charme e vivacidade – mesmo
uma femme fatale.
Porém, se sua estrela brilha tão intensamente é porque o
firmamento intelectual americano está muito obscurecido. Afinal, quem ou onde
estão os outros filósofos políticos? O último grande filósofo político
americano, John Dewey, morreu em 1952. Desde então a filosofia americana, com
exceção, em parte, de Richard Rorty, desvaneceu nos temas técnicos; no campo da
filosofia política, a maior das suas figuras, John Rawls, continua abstrato e
com visão estreita. Seu trabalho pode ter contribuído para acelerar os
batimentos cardíacos atenuados dos filósofos acadêmicos, mas não comoveu o
restante de nós.
Aqueles pensadores que pertenceram à geração europeia de
Hannah Arendt não conseguiram atrair tanto quanto ela. Podemos citar dois
exemplos claros: Jean–Paul Sartre, que, por causa do seu extremismo perene e da
sua política imprevisível, hoje desperta cada vez menos entusiasmo; e Isaiah
Berlin que, por causa da extrema prudência e grande moderação, inspira muito
pouco. Ao contrário de Hannah Arendt, Berlin evitou tanto o compromisso
político como escrever livros sobre grandes temas. (Na verdade ele nunca
escreveu realmente um livro.) Enquanto Hannah Arendt escreveu obras como A
Condição Humana, que teve como subtítulo Um Estudo dos Dilemas Cruciais Enfrentados
pelo Homem Moderno, Berlin escreveu ensaios como Alleged Relativism in Eighteen
– Century European Thought e Two Concepts of Liberty. Enquanto Arendt assumiu
posição, Berlin vacilou.
Não é unicamente a paisagem sombria geral que faz brilhar a
estrela de Arendt. Seu trabalho consegue cintilar, especialmente os seus
ensaios. No entanto, com a grande exceção de Eichmann em Jerusalém, seus
maiores livros sofrem de uma grande nebulosidade. Ironicamente, quanto mais
filosófica Arendt procurou ser, mais obscura se tornou. Mesmo depois das mais
atentas leituras, é difícil saber o que ela está tentando dizer. Isso vale
tanto para A Condição Humana como As Origens do Totalitarismo,
livro que concentrou pela primeira vez as atenções sobre ela. Mas Hannah Arendt
se beneficia da crença generalizada de que obscuridade filosófica sinaliza
profundidade filosófica.
Seus devotos às vezes reconhecem que As Origens do
Totalitarismo é um livro desorganizado e malsucedido. Ela pretendia
apresentar o nazismo e o stalinismo como representantes gêmeos do
totalitarismo, mas deixou de fora o stalinismo até a conclusão. Algumas sessões
do livro, sobre imperialismo e racismo, coerentes e intuitivas, carecem de uma
relação com o totalitarismo stalinista, que não derivou nem de um nem de outro.
Para defender seu argumento, ela juntou nazismo e stalinismo com um palavrório filosófico sobre ideologia e solidão. De certa forma a “solidão” das massas estimula o totalitarismo. “Embora seja verdade que as massas são obcecadas por um desejo de fugir da realidade porque, nesse desabrigo essencial não conseguem mais suportar os aspectos incompreensíveis, acidentais dessa realidade, também é verdade que o anseio pela ficção tem alguma relação com essas capacidades da mente humana, cuja consistência estrutural é superior ao mero acontecimento”. Hum!
Arendt conseguiu a sua obscuridade honestamente. Foi
estudante de fato e amante de Martin Heidegger, filósofo existencialista alemão
que, como sofista crítico, transformou o fato da morte em um segredo
profissional dos filósofos. Embora sua ligação com Heidegger tenha ocasionado
muita fofoca de alto nível – na universidade de hoje o caso do Herr Doktor
Heidegger com uma formidável estudante de 18 anos seria ainda mais atroz do que
as simpatias que ele nutriu pelo nazismo – o que estão em questão são as
lealdades intelectuais dela. Arendt nunca rompeu conceitualmente com Heidegger
e até pretendia dedicar A Condição Humana a ele. Não o fez, explicou
numa carta dirigida a Heidegger, porque as coisas não “andaram muito bem” entre
eles. Porém, ela quis que ele soubesse que o livro “se devia inteiro
praticamente a ele, em todos os aspectos”.
De fato, o idioma “heideggeriano” semirreligioso sobre
angústia, solidão e desenraizamento influenciou o trabalho dela. As massas que
apoiaram Hitler (e Stalin) não sofreram por falta de emprego ou de fome, mas de
“solidão”. O totalitarismo “se baseia na solidão, na experiência de não se
pertencer absolutamente ao mundo, o que é uma das experiências mais radicais e
desesperadas do homem”.
Certamente Eichmann em Jerusalém, sua obra mais famosa e
mais controvertida, é bem diferente. Um trabalho lúcido e contundente. Vale
observar que foi o único de seus livros escrito por encomenda para a revista The
New Yorker, aparecendo pela primeira vez em 1963 como uma série de ensaios
separados sob a rubrica de Repórter à Solta. Talvez o fato de escrever
para o lendário editor da The New Yorker, William Shawn, famoso pelos
cortes implacáveis do texto, levaram Hannah Arendt a engavetar seus escritos
filosóficos grandiloquentes.
O que também é espantoso no caso de Eichmann em Jerusalém,
e a frase que lançou a obra, “a banalidade do mal”, é até que ponto Arendt
mudou completamente suas idéias desde seu livro As Origens do Totalitarismo.
Nesse livro ela concluía que o totalitarismo oferecera ao mundo algo
inteiramente novo.
O totalitarismo procura “a transformação da própria natureza
humana”. Foi um “mal radical”, um fenômeno fora de “toda a nossa tradição
filosófica... Nós na verdade não temos nada a que recorrer para compreendermos
um fenômeno que... destrói todos os padrões que conhecemos”.
No entanto, quando, dez anos depois, ela cobriu o julgamento
de Eichmann em Israel, chegou a uma conclusão oposta. A natureza humana não
fora transformada; o mal totalitário não era radicalmente novo, mas
extremamente prosaico. “Não se pode extrair qualquer profundidade diabólica ou
demoníaca de Eichmann”, ela escreveu. Como sugeriu o corrosivo filósofo e
crítico Ernest Gellner, “Depois dela ter apresentado um tipo de exposição de
totalitarismo que era metade o Trial (O Processo) de Kafka, e metade Wagner, a mediocridade de Eichmann
veio impressioná–la e confundi–la.”
Assim, os dois livros mais famosos de Arendt apresentam
argumentos opostos, já que ela nunca os conciliou. Seus subordinados
tergiversam sobre as contradições, ou tentam afetadamente harmonizar a noção do
mal banal e radical. Outros são menos flexíveis. Gershom Scholem, estudioso do
misticismo judaico, protestou numa carta dirigida a ela, dizendo que seu livro
totalitário fornecera uma tese “contraditória” para sua reportagem sobre
Eichmann. “Naquela época, aparentemente você ainda não tinha feito a sua
descoberta, de que o mal é algo banal.” Arendt concordou. “Você está certo.
Mudei de idéia e há muito tempo não falo de mal radical.” A honestidade dela é
restauradora mas arruína seu estudo Origins. Significa que seu mais
importante livro – o relatório sobre Eichmann – continua algo singular dentro
da sua obra; não é apenas seu livro menos filosófico, mas sua noção do mal
debilita a teoria do seu livro anterior.
Seus defensores não são tão francos como ela própria é, e
tentam dissimular essa fissura. “Contra Scholem, que afirma que o mal radical e
a banalidade do mal são coisas contraditórias, quero defender a compatibilidade
dessas concepções do mal”, escreveu o filósofo Richard J. Bernstein. Não se
deve esquecer que, neste ponto, Arendt concordou com Scholem. Outro estudioso
sugere que Arendt sofreu com o “mal–entendido” da sua própria obra e a de Kant,
onde o termo “mal radical” apareceu pela primeira vez. Um terceiro defensor
resolve a contradição usando a frase “A banalidade do mal radical”. Ele adota o
idioma usado por Arendt, e nos informa que “Arendt sugeriu que a banalidade do
mal radical reside no repúdio da nossa própria nulidade, nossa própria solidão
e impossibilidade de ser”.
O sucesso de Arendt, no fim das contas, repousa em Eichmann
em Jerusalém, como também em alguns ensaios meticulosos e esboços
biográficos sérios. Algumas vezes ela ficou lamentavelmente fora de foco, como
no caso de suas reflexões sobre fatos ocorridos em Little Rock, Arkansas, onde
viu, de forma vaga, uma “força de mobilização popular” (e a violação dos “direitos
de privacidade”) quando o presidente Eisenhower usou tropas federais para
obrigar a integração escolar. Por outro lado, seus ensaios sobre sionismo e
Israel comportam uma releitura. Hannah Arendt foi uma crítica vigorosa do
militarismo sionista. Em 1948, advertiu que o sionismo intransigente poderia
vencer a próxima guerra, mas questionou a que isso levaria. “Os judeus
vitoriosos viverão cercados por uma população árabe totalmente hostil, isolados
dentro de fronteiras sempre ameaçadas, absorvidos com sua autodefesa”, escreveu
em The Jew as Pariah (O judeu como pária).
Essas observações estão entre as que mais se destacaram no
seu trabalho. Diz muito sobre a cultura e a erudição de Arendt o fato de que,
num recente livro do seu mais importante defensor e biógrafo, esses ensaios
passaram despercebidos. E no livro Why Arendt Matters, de Elizabeth
Young–Bruehl, que procura mostrar sua importância para a política
contemporânea, os corajosos ensaios de Arendt sobre Israel e o sionismo não
mereceram atenção, muito menos uma discussão.
Arendt se identificava como uma escritora free lance e
às vezes contestava o fato de ser chamada de filósofa. De fato, ela estaria
melhor situada fora dos círculos intelectuais de Nova York, esses escritores e
críticos de meados do século 20 difíceis de categorizar.
Foi amiga de Mary McCarthy, parceira de Philip Rahv e Edmund
Wilson, e contribuiu para revistas como Commentary, Partisan Review, New
York Review of Books, Dissent e, naturalmente, a The New Yorker,
periódicos dos intelectuais de Nova York. Um pouco do vigor polêmico e coragem
do grupo influenciou seus melhores trabalhos, seus ensaios e Eichmann em
Jerusalém. E são mais do que suficientes para celebrar Arendt. E são também
seus trabalhos menos filosóficos.
Tirando esses livros, sua obra consiste de tomos confusos
influenciados pelo jargão existencialista. Ela é celebrizada hoje porque todos
as nossas celebridades estão cerceadas e neutralizadas. Certa vez, Isaiah
Berlin comentou – ele era bastante cauteloso para fazer comentários impressos –
que Arendt foi a mais superestimada filósofa do século. Berlin devia saber.
Mesmo se compartilha a honra, poderia estar parcialmente correto.
* Russell
Jacoby (nascido em 23 de abril de 1945) é um acadêmico americano e professor de
história na Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), autor de diversos
livros, entre os quais “Os Últimos Intelectuais”; “O Fim da Utopia”; “Amnésia
Social”.
Tradução de Terezinha Martino.
Revisão do blog.
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