A Comuna Revolucionária I
Karl Korsch
Existem a este
respeito alguns fatos históricos e algumas palavras de Marx, Engels e Lênin
relacionadas com eles que, na conjuntura atual, depois de meio século de
propaganda social-democrata – durante todo o período do pré-guerra – e da série
de acontecimentos verdadeiramente transcendentais dos últimos quinze anos,
passaram a tomar parte decidida da consciência proletária, por muito que nas
escolas da atual república “democrática” se fale, apesar de tudo, tão
escassamente dessas questões como nas escolas da velha monarquia imperial.
Trata-se da história e do significado profundo da gloriosa Comuna de Paris, que
desfraldou a bandeira vermelha da revolução proletária em 18 de março de 1871 e
a manteve desfraldada durante setenta e dois dias de lutas encarniçadas contra
um mundo exterior armado até os dentes e empenhado em um ataque de morte contra
ela. Trata-se, enfim, da comuna revolucionária do proletariado parisiense de
1871, da qual Marx disse no Manifesto do Conselho Geral da Associação
Internacional dos Trabalhadores de 30 de maio de 1871 sobre a guerra civil na
França, que “seu verdadeiro segredo” foi ter sido, fundamentalmente, um governo
da classe operária, “o resultado da luta da classe produtora contra a
classe que se apropria do trabalho alheio, a forma política finalmente
encontrada que permitia realizar a emancipação econômica do trabalho”.
Friedrich Engels, de maneira similar, vinte anos depois, jogava na cara dos
filisteus aterrorizados, no momento em que a fundação da Segunda Internacional
e a instituição da comemoração proletária do primeiro de maio[1]
como forma de ação direta de massas a nível internacional voltava a encher de
temor as classes proprietárias, as seguintes frases cheias de orgulho: “Querem
saber a forma dessa ditadura? Olhem a Comuna de Paris, eis a ditadura do
proletariado”. E mais de duas décadas depois, o maior político revolucionário
de nossa época, Lênin, retornou a este tema, levando a cabo, na parte central
da mais importante de suas obras políticas, O Estado e a Revolução, uma
detalhada análise das experiências da Comuna de Paris e da luta contra a
deformação oportunista e a mistificação dos importantes ensinamentos que já Marx
e Engels souberam extrair daquele período histórico. E quando, poucas semanas
depois da revolução russa de 1917, que começou em fevereiro como revolução
nacional e burguesa e acabou por converter-se, superando suas limitações de
cunho nacional e burguês e ampliando e aprofundando suas perspectivas, em primeira
revolução proletária do mundo, tanto Lênin e Trotski como as massas
operárias da Europa ocidental e os setores mais progressistas da classe
operária de todo mundo saudaram a nova forma de governo criada por essa ação
revolucionária de massas, isto é, o sistema revolucionário dos conselhos,
como o prolongamento direto da comuna revolucionária gestada meio século
pelos operários de Paris.
Até aqui está
tudo bem. Por mais confusa que tenha sido a ideia que os operários
revolucionários, no período de ascensão e impulso revolucionários que seguiu em
toda Europa as comoções políticas e econômicas desencadeadas pelos quatro anos
de guerra mundial, sustentaram ao pronunciar a fórmula “todo o poder aos conselhos”
e por muito profundo que tenha sido o abismo que já começava a abrir-se entre
dita imagem e a realidade que ia forjando-se na nova Rússia sob o rótulo de
“República socialista dos conselhos”, não cabe dúvida de que naqueles anos a
luta pelos conselhos representava uma forma de evolução política da vontade
política de uma classe proletária e revolucionária em plena urgência de
realização. Na verdade, unicamente os filisteus amargurados podiam
protestar então contra a indefinição que inevitavelmente cercava essa ideia,
tal como toda ideia não realizada, e só os pedantes triviais podiam investir na
tentativa de remediar esta deficiência através de “sistemas” artificialmente
elaborados no terreno da imaginação, como o desacreditado “sistema de caixinhas”
de Däumig e Richard Müller. Em todos aqueles lugares nos quais, da mesma forma
tão efêmera na Hungria e Baviera em 1919, o proletariado constituiu sua
ditadura revolucionária de classe, a concebeu, denominou e constituiu como “governo da classe operária”, governo que
era o resultado da luta da classe
produtora contra a classe que explora o trabalho alheio, e cujo objetivo último se consolidava na plena realização
da “libertação econômica do trabalho”, um governo definido, enfim, como “governo revolucionário de conselhos”. E
se o proletariado tivesse triunfado naquela época em algum dos grandes países
industriais – na Alemanha, por exemplo, quando a grande greve da primavera de
1919 ou em resposta ao putsch de Kapp em 1920, ou ainda, na seqüência, da greve
de 1923 contra a ocupação do Ruhr e a inflação; ou na Itália durante a época
das ocupações de fábricas, em Outubro de 1923 – teria constituído seu poder sob
a forma duma república dos conselhos
e se unido à “república federativa socialista soviética da Rússia”, já
existente, no quadro duma confederação mundial das repúblicas
revolucionárias dos conselhos.
Nas atuais
circunstâncias, contudo, a ideia dos conselhos e a existência de um governo
dos conselhos pretensamente "socialista" e
"revolucionário" têm um significado completamente distinto. Hoje – em
que a superação da crise econômica mundial de 1921 e as conseqüentes derrotas
dos operários alemães, poloneses e italianos, ao que se seguiu uma série de
novas derrotas proletárias até a greve dos mineiros e greve geral inglesa de
1926 e o capitalismo europeu inaugurou um
novo ciclo de sua ditadura sobre uma classe operária derrotada – quando,
portanto, nos encontramos diante de novas condições objetivas, os lutadores da
classe proletária e revolucionária de todo o mundo não podem seguir
agarrando-se de maneira acrítica e estática à nossa velha fé na importância
revolucionária da ideia dos conselhos
e no caráter revolucionário do governo
dos conselhos como manifestação recente e evoluída da forma política da ditadura proletária “encontrada” há meio século
pelos comunardos franceses.
Hoje, frente às
contradições flagrantes que existem entre o nome e a realidade efetiva da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas, não podemos dar-nos por satisfeitos com
a constatação, por exemplo, de que os atuais mandatários russos “traíram” o primitivo
princípio revolucionário dos conselhos, de forma similar como Scheidemann,
Müller e Leipart “traíram” seus princípios socialistas “revolucionários”
do pré-guerra. Limitar-se a isso seria ao mesmo tempo superficial e
errôneo. É obvio que se trata de uma dupla verdade inquestionável. Os
Scheidemann, Müller e Leipart traíram, sem dúvida, seus princípios socialistas.
E, por outro lado, a “ditadura” que hoje é exercida pela cúpula máxima do
aparato de um partido governamental extremamente exclusivista – e que apenas o
nome recorda o primitivo partido “comunista” e “bolchevique” – sobre o
proletariado e toda a Rússia soviética com a ajuda de uma burocracia
extremamente desenvolvida, tem em comum com as ideias revolucionárias dos
conselhos de 1917 e 1918 exatamente a mesma coisa que tem com elas a ditadura
do partido fascista do velho social-democrata revolucionário Mussolini na
Itália. Porém, em ambos os casos é tão pouco o que se explica falando de
“traição”, que é muito mais o fato da própria traição que necessita ser
explicado.
A verdadeira
tarefa que esta evolução contraditória – que levou do velho lema revolucionário
de “todo o poder aos conselhos” ao atual regime capitalista e fascista do
pretenso “estado socialista soviético” – coloca para todos nós, socialistas
revolucionários com consciência de classe, de uma forma realmente urgente, não
é, na verdade, senão uma tarefa de autocrítica
revolucionária. Temos que reconhecer que não só para as ideias e
instituições do passado feudal e burguês, mas também para as diversas formas de
pensamento e organização engendradas pela própria classe operária nos
anteriores e sucessivos períodos de sua luta pela autolibertação histórica, tem
validade essa dialética revolucionária
em virtude da qual “o bem de ontem se converte no mal de hoje”, para utilizar
palavras de Goethe, ou, como Karl Marx veio a dizer de forma mais clara e
incisiva, todo estágio histórico de uma forma evolutiva das forças produtivas
revolucionárias e da ação revolucionária, assim como a evolução da consciência,
pode converter-se, em um determinado ponto do seu processo evolutivo, em um obstáculo para o mesmo. A esta
contradição dialética da evolução revolucionária estão submetidas, tal como as
demais ideias e produções históricas, também essas formações na ordem do pensamento e na da organização próprias de uma
determinada fase histórica da luta revolucionária de classe, como a forma
política “finalmente encontrada” à quase sessenta anos pelos comunardos franceses e estruturada como
forma de governo próprio da classe operária ao modo da comuna revolucionária e seu herdeiro, o “poder revolucionário dos conselhos”, oriundo de um novo período
histórico de luta através dos impulsos do movimento revolucionários dos
operários e camponeses russos.
Ao invés de
lamentarmos a “traição” à ideia dos conselhos e a degeneração dos conselhos,
devemos realizar uma síntese, de maneira sóbria, serena e historicamente
objetiva, da evolução da totalidade desse processo, elaborando uma visão
histórica de conjunto que dê conta de suas fases sucessivas,
fazendo-nos, por último, a pergunta crítica: qual é, de acordo com essa
experiência histórica, o significado real da ordem histórica e classista
desta nova forma de governo, cristalizada inicialmente na comuna
revolucionária de 1871, aniquilada pela força ao fim de setenta e dois dias de
vida, e que encontrou sua expressão mais concreta e recente na revolução
russa de 1917.
Procurar uma nova
imagem, muito mais profunda e orientadora, do caráter histórico e classista da
comuna revolucionária e sua continuação no sistema revolucionário dos
conselhos, resulta duplamente necessário se se pensa que inclusive a crítica
histórica mais superficial mostra o totalmente infundado dessa concepção tão
divulgada hoje entre os revolucionários. Dita concepção, apesar de depreciar
teoricamente o parlamento como
instituição burguesa por sua origem e sua função e praticamente indica a
necessidade de “aniquilá-lo”, no chamado “sistema
de conselhos” e em sua forma precedente, a “comuna revolucionária”,
vislumbra, ao mesmo tempo, uma forma de governo total e essencialmente
proletária, oposta, por sua própria natureza, de maneira inconciliável e
contraditória ao estado burguês. Na realidade, a “comuna” representa, ao longo
de sua evolução quase milenar, não só uma forma de governo burguês mais antiga
que o parlamento, mas que constitui – desde seus começos no século XI até seu
ponto culminante no momento auge do movimento revolucionário da burguesia, isto
é, na grande revolução francesa de 1789-1793 – a forma mais pura, precisamente, na ordem da luta de classes que, sob distintas modalidades, levou a
cabo durante todo este período histórico a então revolucionária classe burguesa
para conseguir a transformação da ordem social feudal existente até o momento e
edificar a nova ordem social de cunho burguês.
Quando,
na frase que citamos anteriormente – tomada de A Guerra Civil na França –,
Marx celebrava a comuna revolucionária dos operários parisienses do ano de
1871 como “a forma finalmente encontrada que permitia realizar a emancipação
econômica do trabalho” era, ao mesmo tempo, consciente de que a forma
herdada das seculares lutas burguesas de libertação da “comuna” só podia
assumir este caráter novo ao preço de
uma transformação radical de sua essência
anterior. Toma posição expressamente contra as falsas concepções de todos
que queriam ver, em seu tempo, nesta “nova
comuna, aniquiladora do poder de estado” uma “versão renovada das comunas
medievais anteriores a dito poder estatal e que assentaram, na realidade, as
bases do mesmo”. E estava muito longe, portanto, de esperar qualquer tipo de
efeitos milagrosos para a luta de classes do proletariado da forma política do regime comunal
enquanto tal, considerada independentemente do conteúdo classista específico com
o qual, em sua opinião, haviam preenchido os operários de Paris esta forma
política por eles conquistada e posta ao serviço de sua autolibertação
econômica em um determinado momento histórico. De acordo com sua análise desse
problema, os operários de Paris fizeram de sua forma herdada da “comuna” um
instrumento de seus fins revolucionários – opostos radicalmente à finalidade
histórica original da mesma – em virtude, precisamente, de seu caráter pouco evoluído e relativamente indeterminado.
Enquanto que no estado burguês plenamente
desenvolvido, tal e como foi formando-se – na França, por exemplo – em sua
versão clássica, isto é, como estado representativo moderno centralizado, o
poder estatal não é mais do que, de acordo com a conhecida expressão do Manifesto Comunista, outra coisa que “um
comitê de administração do conjunto de negócios da burguesia”, nas formas provisórias e pouco desenvolvidas da estrutura estatal
burguesa, entre as quais é preciso situar a comuna “livre” medieval, este
caráter classista especificamente burguês, consubstancial a todo estado, exige
uma fisionomia completamente diferente. Frente ao posterior e cada vez mais
evidente e cada vez mais elaborado caráter do poder estatal burguês de
“instrumento público repressivo para a opressão da classe operária”, de
“máquina para o domínio classista” (Marx), nesta fase primitiva de sua evolução
pesa, todavia, mais a finalidade original da organização burguesa de classe
como órgão da luta revolucionária de libertação da classe burguesa oprimida
contra o domínio feudal medieval. Por muito pouco que esta luta da burguesia
medieval tinha em comum com a luta proletária de emancipação da época histórica
contemporânea, era, não obstante, uma luta
de classes histórica, e nesta medida – ainda que, desde já, somente nela –
os instrumentos criados pela burguesia de acordo com as necessidades de sua
luta revolucionária não deixam de oferecer também um ponto de partida puramente
formal para a luta de emancipação revolucionária que atualmente, sobre bases totalmente
distintas, em condições extremamente diferentes e com vista a outros objetivos,
protagoniza a classe proletária.
Marx chamou prontamente a atenção sobre a especial
importância que essa série de experiências e conquistas provisórias da luta de
classes realizada pela burguesia, cuja expressão mais importante pode ver-se
nas diversas fases evolutivas da comuna revolucionária burguesa da Idade
Média, foi-lhe correspondendo na formação tanto da moderna consciência
proletária de classe como da luta de classe do proletariado, e o fez muito
antes, inclusive, do que o grande acontecimento histórico da sublevação dos comunardos parisienses de 1871 lhe
induzira a saudar esta nova comuna revolucionária dos operários de Paris como a
forma política finalmente encontrada da emancipação econômica do trabalho.
Devemos a Marx, a este respeito, a demonstração da analogia histórica
existente entre a evolução política da burguesia como classe oprimida e
em luta por sua libertação no seio do estado feudal medieval e a evolução do
proletariado na moderna sociedade capitalista. Uma analogia da que se
serviu, por certo, como importante ponto de partida em sua teoria dialética e
revolucionária sobre a importância dos sindicatos e das lutas sindicais
– uma teoria ainda não compreendida plena e adequadamente, nem sequer em nossos
dias, por um bom número de marxistas tanto de inspiração esquerdista como
direitista. Marx, nessa teoria, comparou as modernas coalizões de
operários com as comunas da burguesia medieval, sublinhando o fato histórico de
que também a classe burguesa começou sua luta contra a ordem social feudal
com a formação de coalizões. Já em seu escrito polêmico contra Proudhon
encontramos a seguinte referência, hoje verdadeiramente clássica, sobre esta
questão:
“Fizeram-se não poucos estudos para apresentar as
diferentes fases históricas percorridas pela burguesia desde a comunidade
urbana (comuna) até sua constituição com classe. Porém, quando se trata de
tomar boa nota das greves, coalizões e outras formas das que os proletários se
servem para culminar ante nós sua organização como classe, alguns são presa de
verdadeiro espanto e outros fazem gala de um desdém transcendental” (A
Miséria da Filosofia, cap. 2, parágrafo 5).
O que aqui expressa o jovem Marx em meados dos anos
quarenta, quando ainda é recente sua evolução ao socialismo proletário, e
repete sem maiores variações anos depois em sua exposição dos diversos estágios
evolutivos da burguesia e do proletariado no Manifesto Comunista, volta
novamente a expressá-lo vinte anos depois na conhecida Resolução do
Congresso de Genebra da Associação Internacional dos Trabalhadores concernente
aos sindicatos. Ali se afirma destes que já em sua anterior evolução, e sem
ser conscientes disso, mas além de suas tarefas cotidianas imediatas de defesa
dos salários e da jornada de trabalho dos operários contra as incessantes
investidas do capital, “haviam chegado a converter-se em pontos
verdadeiramente culminantes da organização da classe operária, de maneira
similar a como as municipalidades e comunidades medievais haviam sido para a
burguesia”, de tal modo que no futuro haveriam de trabalhar já de
maneira consciente como bases da
organização do conjunto da classe operária.
[1] A chamada Segunda Internacional, acatando
proposta de Raymond Lavigne, em 20 de junho de 1889, convoca uma manifestação
anual com o objetivo de lutar pela redução da jornada de trabalho a oito horas
diárias. O dia escolhido foi o 1º de Maio, em homenagem às lutas dos
trabalhadores de Chicago/EUA, quando pelo mesmo motivo e no mesmo dia, os
trabalhadores norte-americanos fizeram manifestações de ruas que se desdobraram
em conflitos e mortes no dia seguinte.
Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.
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