O CANCELAMENTO DA ANTROPÓLOGA BRANCA
E A PAUTA IDENTITÁRIA
Ataques a Lilia Schwarcz
refletem disputa pelo 'mercado epistêmico' da questão racial, diz professor
Wilson Gomes
Professor titular da Faculdade
de Comunicação da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e coordenador do
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, é autor de
"Transformações da Política na Era da Comunicação de Massa" (Paulus),
entre outros livros.
[RESUMO] Autor discute os termos
do cancelamento da antropóloga Lilia Schwarcz nas redes sociais na última
semana, depois da publicação na Folha de artigo crítico ao novo álbum visual de
Beyoncé. Em sua avaliação, o episódio revela disputas acirradas entre
militantes identitários que, por meio de práticas autoritárias e ofensivas,
tentam se firmar como os únicos debatedores legítimos de temas raciais.
Aconteceu
nestes dias o cancelamento ou linchamento digital nº 4.984.959.569, realizado
por defensores de pautas identitárias, desta vez identitários negros.
Cancelamentos e linchamentos são hoje das ações mais banais das estratégias dos
identitários, sejam esses de esquerda ou de direita, principalmente depois que
grande parte das nossas vidas passou a transcorrer em direta relação com
ambientes digitais.
Nesses
ambientes é que se consegue facilmente mobilizar enorme montante de pessoas,
insuflar em grandes massas um estado de indignação moral ou furor ético e,
enfim, colocar alvos em pessoas, instituições e atos na direção dos quais toda
a fúria deve ser dirigida.
Para o
linchamento e o cancelamento digitais se requer, antes de tudo, uma multidão
unida por algum sentido de pertencimento recíproco, motivado pela percepção de
que todos estão identificados entre si por algum aspecto essencial da sua
própria persona social. Um recorte comum, por meio do qual são separados e
antagonizados, de um lado, o “nós”, de dentro do círculo, e, de outro, “eles”,
os de fora.
Em geral, o
ponto de corte formará grupos de referências ou comunidades baseadas em etnias,
cor, gênero, orientação sexual e origem geográfica ou até mesmo em posições
políticas. Desde que estas últimas possam naturalmente ser vistas como alguma
coisa que constitui essencialmente um conjunto de pessoas, como é o caso da
nova extrema direita.
Em segundo
lugar, há que haver uma motivação moral. Linchar ou cancelar não é como inventar
fake news ou disseminar teoria da conspiração, seus parentes mais próximos na
família dos comportamentos antidemocráticos digitais, que podem ser realizados
amoralmente, isto é, sem que valores estejam em questão.
O grupo que
faz um linchamento digital, por sua vez, parte da premissa de que, pelo menos
naquele ato especificamente, é moralmente superior a quem está sendo justiçado.
A comunidade de linchadores se sente justificada porque um dos seus
patrulheiros, em seu turno de guarda das fronteiras da identidade, constatou um
erro, um pecado, uma violação de alguma das suas crenças por parte de algo ou
alguém.
Cabe ao
patrulheiro tocar a corneta e chamar às armas os vigilantes da identidade para
que a punição seja aplicada e o valor pecaminosamente violado seja restaurado e
reafirmado.
O
cancelamento pode se seguir a linchamentos, só que o primeiro é reservado a
poucos. Todo mundo pode ser um dia linchado digitalmente, mas só pessoas com
visibilidade e importância social e, o que é mais importante, que pareciam
vinculadas a ou simpatizantes da pauta identitária, é que podem ser canceladas.
O cancelamento envolve ruptura e luto, uma vez que o cancelado tem que ter
representado alguma coisa para quem o cancela, mas o sentido de ultraje moral e
a fúria linchadora é mesma.
Desgostoso,
li nesses dias os textos do cancelamento/linchamento de Lilia Schwarcz pelos
identitários negros. Os termos dos decretos de cancelamento são repugnantes
para o meu paladar liberal-democrático, uma vez que, na grande maioria dos
casos, são autoritários, ofensivos, humilhantes e, vejam só, frequentemente
racistas.
Se, pelo
menos, ainda fosse justa a indignação, por ter a Lilia publicado um texto
racista ou ofensivo, ainda assim ficaria envergonhado pelos termos do
cancelamento, mas compreenderia. O pior de tudo é que não, não há nada de
errado com o artigo usado como desculpa para linchar. Divergir do que os outros
dizem é normal e esperável, ainda mais quando se trata de artistas endeusados
por fãs e pessoas identificadas com eles, mas o que veio depois disso foi
violência.
Li ou vi uma
centena de vídeos, posts e comentários para entender os “termos do
cancelamento”, e vamos ser francos de uma vez por todas: não se trata aqui
meramente de uma luta por superioridade moral, como costumava ser em casos como
esse, mas simplesmente de uma disputa pelo "mercado epistêmico" dos
temas da questão racial.
Uma luta
concorrencial entre certos negros que pretendem o monopólio exclusivo e os
concorrentes não negros que falam e discutem os temas por serem especialistas
neles ou simplesmente porque se interessam pelo assunto e que precisam ser
retirados do mercado.
Notem duas
coisas a este ponto do argumento. Primeiro, os que podem reivindicar o
monopólio dos temas não são todos os negros em geral, mas apenas o que
pretendem ter os certificados de autênticos representantes e vozes autorizadas.
Outros negros que não se atrevam a negar-lhes o direito de falar em seu nome,
pois arriscarão a ser, eles próprios, excluídos, como se arrisca, mais uma vez,
este escriba.
Em segundo
lugar, todos os outros títulos e predicados que antes autorizavam as pessoas a
falar sobre "temas negros" —formação acadêmica, interesse cultual,
empatia etc.— foram unilateralmente cancelados. Que este caso sirva de exemplo
a todos: só negros autorizados™ podem dizer qualquer coisa sobre qualquer negro
(mesmo porque são todos partes de um mesmo monólito) e seus problemas.
Claro, isso
não pode ser apresentado em termos mercadológicos, mas sempre em jargão moral:
“uma mulher branca dizer o que uma artista negra deve fazer é ofensivo”, por
exemplo. Resta saber se, em vez de Beyoncé o criticado fosse Justin Bieber, por
exemplo, o que poderia ser feito dessa sentença.
É curioso
como só nos damos conta desta luta pelo monopólio epistêmico quando há essas
escaramuças que vemos nos cancelamentos, linchamentos e assédio digitais. Uma
blitzkrieg eficiente sempre rearranja o campo. Para os atacantes, são chances
de melhor se posicionarem no mercado epistêmico: quem mais lacrar e mais
humilhar mais acumula capital. Naturalmente, quem já está bem posicionado no
campo acumulará ainda mais prestígio e distinção.
O padrão,
que já vimos repetidos milhares de vezes, é sempre o mesmo. Um patrulheiro dá o
alarme após detectar aquilo que, na sua sensibilidade identitária, é uma
violação das suas crenças. Em seguida, se já não tiver sido o caso, uma voz
autorizada™ acionará a sua rede, composta por pessoas que compartilham
dogmaticamente as suas crenças, para a denúncia do comportamento inadequado,
para a exposição do infrator ou para envergonhá-lo publicamente.
E como, na
dinâmica dos ambientes digitais, uma rede inevitavelmente toca a outra, em
pouquíssimo tempo toda a ecologia midiática da comunidade identitária, composta
por vozes autorizadas, mas também por pretendentes a influenciadores digitais e
abelhinhas de combate, estarão atacando em enxame para fazer desse caso um
exemplo para intimidar futuros infratores.
Reafirmados
os valores tribais, seguem a vida, a vigilância, as patrulhas, o alarme e novos
ataques. Foi só mais um honesto dia de trabalho da polícia identitária.
E ai dos
atacados, que são vítimas, mas nem isso podem alegar, uma vez que no
linchamento identitário são justamente "as vítimas ontológicas",
portanto, imunes às circunstâncias, os que lhes arrancam pedaços da reputação,
eventualmente empregos e vida, enquanto choram pela opressão estrutural.
É luta por
acúmulo de autoridade em termos de raça e de etnia. Um capital que depois vai
render no mercado de palestras, livros, produtos culturais, posições
acadêmicas, convites internacionais, empregos na mídia, cargos públicos e
autoridade tribal.
O mercado
epistêmico é um mercado como qualquer outro, claro, mas não pode aparecer assim
e precisa se camuflar como disputa moral pela superioridade no horizonte dos
valores. E há os crentes e simpatizantes que juram que há apenas questões
morais em jogo.
O que me
assusta, em todos esses ataques, é a enorme complacência e cumplicidade da esquerda
na tentativa de tornar nobre aquilo que, no fundo, é um discurso e um
comportamento de um tremendo autoritarismo. O que li nos termos do cancelamento
foram coisas como “cala a boca”, “racista”, “se eu fosse você estaria com
vergonha agora”, “a antropóloga branca não sabe o seu lugar”. É um filofascismo
sem oposição dos antifascistas, porque os antifascistas são cúmplices.
Lamentavelmente.
A própria
Lilia Schwarcz publica um mea-culpa em que aceita, empática, uma por uma as
premissas dos que a atacam e que estão lutando por monopólio no mercado
epistêmico. Não as examina, não as discute, nada. Renuncia docilmente ao exame
racional das alegações e aceita dogmaticamente que quem a ataca tem razão.
Mas, vamos
ao que deveria ser essencial. É Lilia Schwarcz racista? Não me parece possível.
O seu texto é racista? Nada nele dá a entender isso. Por que, então, aceitar as
acusações de racista e as descomposturas em que se lhe acusam de ter exorbitado
por ter falado sobre o que está proibida de falar simplesmente por não ser da
raça ou da cor que reivindica o monopólio do tema?
Ora, é muito
simples. Porque Lilia Schwarcz é de esquerda —ou progressista ou liberal, vocês
escolhem. Na estrutura mental, sentimental e política de um progressista, ela
não pode desafiar o dogmatismo, o autoritarismo, o dedo na cara e a interdição
quando vêm dos “oprimidos”. Tem que aceitar, pedir desculpa, jurar que não fará
de novo.
A esquerda
pede desculpas aos linchadores-oprimidos até quando sabe que não está errada.
“Não desista ainda de mim, posso melhorar”, suplica o progressista. E, em todo
caso, torna-se o cúmplice que retroalimenta a fera.
Não se
iludam: tem muita gente na esquerda que acha que linchamentos, cancelamentos,
assédio e assassinatos de reputações só são feios quando praticados pela
direita. Pelos identitários, é justiça.
Claro, os
identitários negros radicais não são bestas. Não cancelam nem lincham os
racistas, a direita conservadora. Sabem que os seus ataques seriam inúteis
contra um Sérgio Camargo, que ocupa as cotas da direita identitária no governo
Bolsonaro e está ali só para que o bolsonarismo tenha uma prova de que não é racista,
mas cujo único objetivo na administração púbica parece ser provocar
diuturnamente os identitários negros —e todos os outros negros, de sobra.
Ou um Olavo
de Carvalho, um Weintraub, ou mesmo um dos “garotos” do presidente, que vivem
de provocá-los só para ver se vem algum ataque orquestrado dos enxames
identitários de esquerda, uma vez que isso lhes daria Ibope, currículo e
distinção no bolsonarismo. Que, diga-se de passagem, é estruturalmente um
identitarismo de direita, que se alimenta justamente do ressentimento criado
pelos identitários de esquerda.
Afinal,
Bolsonaro passou a vida agitando panos vermelhos para atiçar a fúria dos
identitários de esquerda e capitalizar com isso, com o sucesso eleitoral que
todos conhecemos.
Os
identitários de esquerda, portanto, atacam justamente onde podem machucar, ou
seja, só arremetem contra pessoas de esquerda ou pessoas com empatia. Afinal,
ninguém pode difamar uma outra pessoa se o alvo justamente desejar a
"fama" que se quer imputar-lhe.
Sérgio
Camargo acorda todo santo dia para tentar preencher as cotas de insultos de
“racista” e “capitão do mato” que os identitários de esquerda vão preencher,
inocuamente. Depois vai "printar" e colocar na parede.
Já Lilia...
bem, Lilia vai pedir desculpas e dizer que aprendeu a lição. Afinal, passou a
vida lutando contra o racismo, ensinando contra o racismo, publicando contra o
racismo. Nela deve doer ser acusada de racista e, pior, usurpadora do lugar de
falar, uma pessoa sem noção que acha que pode compartilhar uma episteme que
doravante é monopólio dos negros. Triste isso.
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