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terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Subjetivismo e Movimentos Sociais: Ou quando o feitiço se volta contra o feiticeiro



Subjetivismo e Movimentos Sociais: 
Ou quando o feitiço se volta contra o feiticeiro


Daniel dos Santos Simon de Carvalho

Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás, graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


O fenômeno do subjetivismo começou a tomar conta dos movimentos sociais na segunda metade do século XX, e suas conseqüências são sentidas até hoje. Por movimentos sociais tomo o conceito de Gohn (2011, p. 335) como “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas de a população se organizar e expressar suas demandas”. E por subjetivismo, entendo o que Alonso (2009, p. 61) coloca como uma demanda de movimentos que “em vez de demandar democratização política do Estado, demandaria uma democratização social, a ser construída não nos planos das leis, mas dos costumes”.
A partir da década de 1960, muitos fenômenos que até então eram delegados como questões de “segunda ordem” ou tratados como “problemas menores”, passaram a figurar no debate político. Partindo das questões de quem produz o discurso, muitos movimentos se pautaram na crítica de sua produção. Nos anos 1960, pode-se considerar que três movimentos que emergiram: De negros por direitos civis, pelo direito das mulheres, movimentos críticos ao estilo de vida ocidental (como os hippies) e o ambientalismo. Movimentos anticolonialistas em diversos países da África e da Ásia, também datam a década de 1960 e 1970. A partir da década de 1980 e 1990, as questões que envolvem identidade de gênero e sexualidade também ganham o cenário político. Tornando-se conhecidos como “novos movimentos sociais”, que deslocaram a crítica do mundo do trabalho e da questão de classe, para o corpo e a cultura. Focando-se em contestações em “pós-materialistas”, em contraponto as lutas fabris e sindicais. (Melucci, 1989).
Esses novos grupos, em toda sua efervescência, dirigiam sua critica não só aos seus respectivos antagonistas, mas também a movimentos de cunho classista acusados de centrar suas análises em homens, brancos, heterossexuais e euro-estadunidenses, tratando tal movimento como universal. Por isso, no desenrolar das tramas, muitos discursos hegemônicos foram fragmentados, defendendo a pluralidade, a polifonia e a sobreposição de narrativas.
As críticas intelectuais e políticas desses movimentos passaram a figurar posteriormente aos eventos da década 1960 naquilo que ficou conhecido como “pós-modernidade”, focando em um ataque feroz as metanarrativas (como o marxismo), buscando refugio em argumentos mais subjetivos, que buscavam conservar a multiplicidade a partir da individualidade de respectivos grupos sociais[1].
Na atualidade, a “pós-modernidade” e sua crítica (mesmo que muitas vezes esta apenas culmine em novas narrativas pós-modernas), se deflagram em novos confrontos que vemos cotidianamente. O aspecto subjetivo (ou pós-material) e a defesa das múltiplas narrativas continuam presente no discurso dos novos movimentos sociais. No entanto, é preciso destacar que algumas questões bem objetivas que não são abordadas por esses movimentos. Ainda vivemos sob a égide do capitalismo e suas leis, e as opressões que esses diversos grupos sofrem não serão superadas integralmente, se não passarem também pelas questões de classe. Inclusive, a desconsideração desses aspectos podem minar as próprias lutas dos respectivos movimentos citados.
Tornou-se comum que membros de movimentos sociais façam defesas apaixonadas, recorrendo para argumentos de uma suposta “vivência” (palavra da moda), que dá apenas aos participantes a capacidade e a compreensão daquilo que se passa e se discute em seu interior, e, portanto de sua crítica (ou melhor, da autocrítica neste caso), e da respectiva opressão que se combate. Isso muitas vezes se traduz em frases de efeito como: “somente o negro pode falar sobre o racismo”, “somente a mulher pode falar sobre machismo”, “somente os gays podem falar sobre homofobia”.
Primeiro, que por mais que seus membros não queiram que agentes externos dêem “palpites” sobre sua militância, isso não vai deixar de acontecer, justamente porque esses movimentos estão em evidência. Segundo, considero extremamente problemático, quando um movimento se fecha as críticas. Como ele poderá avançar se não se propõe a um debate? E terceiro, apelar para argumentos subjetivistas de vivência é uma forma cômoda de fugir da crítica, porém também desarma aquela outra crítica que se destina ao respectivo “opressor” antagonista.
 Atualmente, o capitalismo vive mais uma crise. E claro, que os ideólogos dominantes estimulam a inversão da realidade, retirando a culpa da crise de seu caráter “sistêmico” e transportando a culpa em outros elementos idealistas, como por exemplo, os imigrantes que vão de países periféricos para os centrais. A questão material se estende para questão simbólica, gerando uma luta cultural, mas o cerne da questão continua na base material. E claro nos momentos de crise, acentuam-se as opiniões diversas. Tanto a esquerda – podendo ser reformista ou revolucionária – como a direita – liberal e conservadora – começam a propor suas pautas.
No Brasil e outros países do mundo, nota-se um avanço do conservadorismo, muito por culpa de uma esquerda inoperante[2]. Tornou-se comum na atualidade a relativização de formas de opressão como o racismo, o machismo e a homofobia. Pode-se dizer que existe uma espécie de lugar comum, que justifica esse relativismo a partir de termos como: “o racismo só acabará quando pararmos de falar dele”[3], “não sou machista e nem feminista, sou humanista”[4] ou “se temos um dia do orgulho LGBTT[5], por que não se pode ter um dia do orgulho heterosexual?” Esses argumentos possuem o mesmo cunho subjetivista (e relativista) que busca a individualização das interpretações, mas neste caso para fins de conservar relações de poder hegemônicas. Existem grupos e páginas em redes sociais com nomes do tipo “orgulho de ser hetero”, “orgulho de ser branco”, aliás, recentemente o atual presidente da câmara dos deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ) propôs um projeto de lei para criação do “dia do orgulho heterossexual”[6] Todos esses argumentos se justificam na mesma premissa da suposta crítica dos movimentos sociais. O homofóbico, o racista, o machista, o xenófobo, podem muito bem – a partir dessa retórica – justificar seus preconceitos, usando subterfúgios de experiências pessoais. E por isso o título do artigo: “Quando o feitiço se volta contra o feiticeiro”. Pois a mesma retórica argumentativa usada pelos novos movimentos sociais, pode voltar contra eles próprios.
No entanto, por trás desses preconceitos existem questões bem materiais e objetivas, mas que, no entanto são camufladas por aspectos simbólicos e subjetivos, jogando os membros da classe trabalhadora uns contra os outros. Como por exemplo, um estadunidense que culpa os imigrantes latinos pelo aumento desemprego em seu país, não levando em conta aspectos muito mais o processo de reestruturação produtiva e as políticas neoliberais.
Opressões existem, e reconheço à legitimidade da luta dos novos movimentos sociais. Não nego a importância das lutas de emancipação de mulheres, negros, gays, lésbicas e etc. e sim esses movimentos tem muito a nos ensinar, no entanto isso não descarta o debate crítico que deve ser travado, de cunho mais material que está para além dos próprios movimentos. É necessária uma intersecção uns com os outros, e principalmente resgatarem as questões de classe. É curioso notar que esse fenômeno tem um aspecto dialético, já que ao mesmo tempo em que serve como defesa dos movimentos sociais, também desarma o ataque contra seus alvos. O caráter predominantemente subjetivista (ou pós-material) desses movimentos mina sua ação, e permite que esse mesmo caráter seja usando por aqueles que se pretende criticar. Ficar limitados a aspectos de auto percepção, ou de “aparência”, em sentido marxista, impede a compreensão da totalidade e por consequência a práxis que levaria a ruptura das relações de dominação.

Referências:

ALONSO, Angela. As Teorias dos Movimentos Sociais: Um Balanço do Debate. Lua Nova, São Paulo, v. 1, n. 76, pp. 49-86, 2009.

GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais na Contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 47, mai-ago, 2011.

MELUCCI, Alberto. Nomads of Present. Social moviments and individual needs in contemporany society. Filadélfia: Temple University Press, 1989.




[1] O fim da união soviética também reforçou mais ainda as narrativas pós-modernas ao culminar no surgimento de muitos países novos, reforçando mais ainda a fragmentação e a polifonia.
[2]  Os motivos disso são diversos. Se tratando de Brasil, a meu ver, o Partido dos Trabalhadores (PT), conseguiu desmobilizar e cooptar diversos movimentos e sindicatos, lhes retirando autonomia e combatividade. No entanto, este tema é muito complexo para ser abordado neste artigo.
[3] Frase distorcida que foi atribuída ao ator estadunidense Morgan Freeman durante uma entrevista, cujo objetivo é querer dizer que o racismo não acaba, porque as pessoas sempre trazem essa temática a tona.
[4] Frase geralmente proferida por pessoas que buscam deslegitimar o feminismo, tratando-o com uma espécie de “machismo reverso”, apelando para uma vaga noção de “humanismo” que abrangeria uma luta por todos os seres humanos, mas que nada tem a ver, por exemplo, com os estudos humanistas realizados por Karl Marx.
[5] Movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
[6] Link do site do deputado: http://www.portaleduardocunha.com.br/projeto-de-lei-n%C2%BA-1672-de-2011/11/616.html. Acessado no dia 07 de março de 2015.


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